Pesquisar
Pesquisar
Presidente da República do Mali durante o período de transição, Assimi Goita, o Presidente do Conselho Militar no Níger, General Abderrahmane Chiani, e o Presidente do Conselho Militar no poder em Burkina Faso, Ibrahim Traoré.

Corporação do Sahel: como aliança entre Mali, Burkina Faso e Níger pode inspirar América do Sul

Coalizão no Sahel combina desenvolvimento com identidade regional, soberania financeira e reacomodação geopolítica, mostrando à América do Sul que é possível se livrar do extrativismo e da inflação

Alejandro Marcó del Pont
El Tábano Economista
Buenos Aires

Tradução:

Ana Corbisier

Nos últimos anos, a região do Sahel protagonizou uma das transformações geopolíticas mais ousadas do século 21. Sob a liderança das juntas militares de Mali, Burkina Faso e Níger, o que começou como uma aliança defensiva — a Aliança dos Estados do Sahel (AES) — evoluiu para um projeto integral de soberania econômica, independência financeira e reconfiguração estratégica. A criação da Corporação do Sahel, como braço executor dessa visão, não apenas marca um ponto de inflexão para esses três países, como também oferece um modelo inspirador para regiões como a América do Sul, atadas à dependência do dólar e à exploração assimétrica de seus recursos naturais.

Exploraremos os três pilares fundamentais que sustentam a revolução saheliana:

  1. O desenvolvimento econômico com identidade regional, que prioriza a autossuficiência e a integração.
  2. A soberania financeira, com a ruptura do franco CFA e a criação de uma moeda própria respaldada por recursos estratégicos.
  3. A reacomodação geopolítica, em que novos parceiros, como Rússia, China e Irã, substituem as antigas potências coloniais.
Manifestantes celebram a saída de Níger da Comunidade Econômica de Estados da África Ocidental (CEDEAO/ECOWAS) em Niamey, Níger, em 28 de janeiro de 2025. (Foto: Issifou Djibo)

A decisão de abandonar a Comunidade Econômica de Estados da África Ocidental (CEDEAO) em janeiro de 2024 — e seu efeito irreversível em 2025 — simboliza o repúdio a uma ordem neocolonial. As juntas militares, longe de serem meros governos provisórios, canalizaram o descontentamento popular para uma agenda soberanista que combina panafricanismo e pragmatismo econômico. Cada medida — desde a expulsão de tropas francesas até a nacionalização de minas — reforçou sua legitimidade interna e seu peso internacional.

A seguir, entenda os três eixos da Corporação do Sahel.

Desenvolvimento econômico com identidade: do extrativismo à integração

Durante décadas, o Sahel foi objeto de saque para corporações estrangeiras: ouro, urânio e petróleo foram extraídos com benefícios mínimos para as populações locais. A Corporação do Sahel está revertendo essa lógica mediante uma política de nacionalismo de recursos, na qual o Estado recupera o controle estratégico de setores-chave.

O caso da Barrick Gold Corporation, a segunda maior produtora de ouro do mundo, empresa canadense presente no Mali, é emblemático. Em 2025, após uma disputa legal, o Estado malinês assumiu a administração da mina Loulo-Gounkoto — uma das mais ricas da África —, graças ao novo código minerário do Mali de 2023, que permite ao Estado adquirir até 35% de participação em novos projetos, um aumento significativo em relação ao máximo anterior, de 20%.

A região do Sahel (Imagem: Reprodução)

Apesar das pressões — foram confiscados carregamentos de ouro e bloqueadas as exportações da mina —, a empresa canadense não deixou o país: o aumento de 70% no preço do ouro tornou insustentável sua retirada. Esse episódio demonstra que, quando os Estados priorizam seus interesses, as multinacionais não têm outra opção senão negociar — uma lição crucial para a América do Sul, onde empresas como Chevron e Glencore operam com margens abusivas.

A agricultura, que emprega 80% da população, é outro eixo central. O Mali planeja ampliar sua produção de cereais em 2025, enquanto Burkina Faso investe 170 milhões de dólares em insumos para alcançar a autossuficiência. A criação da Aliança de Produtores de Sementes do Sahel (APSA-Sahel) reduz a dependência de variedades estrangeiras, um modelo replicável em países sul-americanos como Argentina ou Brasil, onde o agronegócio é dominado por transgênicos patenteados.

Em infraestrutura, os projetos solares e ferroviários — como a conexão Bamako-Uagadugú-Niamey — buscam superar o isolamento herdado do colonialismo. Burkina Faso inclusive explora a construção de uma usina nuclear com apoio russo, um salto tecnológico impensável sob a órbita francesa.

Manifestantes em Burkina Faso apoiando o abandono da Comunidade Econômica de Estados da África Ocidental (CEDEAO). (Imagem: Reprodução)

Soberania financeira: a morte do franco CFA e o nascimento de uma moeda própria

Um pilar central do projeto soberanista da AES é sua ambição de se libertar do franco CFA, uma moeda que muitos na região consideram um símbolo de subjugação econômica. Entre os pontos-chave de discórdia estão a paridade fixa com o euro, a centralização de 50% das reservas de divisas no Tesouro francês e a ausência de uma política monetária independente. Os defensores de uma nova moeda argumentam que esse sistema atua como um freio à industrialização e ao desenvolvimento econômico, perpetuando um estado de neocolonialismo.

Um modelo teórico para essa nova moeda, proposto em um artigo acadêmico, sugere um sistema monetário de dois níveis: uma moeda nacional para cada país e uma moeda regional respaldada por uma cesta de produtos básicos estratégicos. O modelo teórico “Moeda-Recurso” segue o estilo da cesta de moedas do Brics, com um respaldo tangível: ouro (o Mali é o terceiro produtor da África), urânio (o Níger possui 5% das reservas mundiais), petróleo e gás (jazidas em desenvolvimento em Burkina Faso).

Esse modelo desafia o domínio do dólar e do euro, mostrando que uma moeda comum não requer submissão a potências externas. Um Banco Confederal para o Investimento e o Desenvolvimento (BCID-AES) financiaria projetos sem condicionamentos, ao contrário do Fundo Monetário Internacional (FMI). Para a América do Sul, onde o uso do yuan ou das “moedas digitais” é discutido timidamente, o Sahel demonstra que a chave está em respaldar a divisa com recursos reais (lítio, cobre, soja).

Abderrahmane Chiani, Assimi Goita e Ibrahim Traoré (Imagem: Reprodução)

Reacomodação geopolítica: o novo eixo do Sahel

A expulsão da França em 2023 abriu espaço para alianças inéditas:

  • Rússia (segurança militar com o África Corps).
  • China (infraestrutura sem as cláusulas leoninas do Ocidente).
  • Irã e Turquia (tecnologia de drones e soft power islâmico).

Esses parceiros oferecem cooperação sem colonialismo, em contraste com a dívida estranguladora do Banco Mundial, FMI ou dos acordos comerciais assimétricos da União Europeia. Para a América do Sul, a mensagem é clara: a multipolaridade existe e pode ser negociada a partir de uma posição de força.

O Sahel ensina que a soberania não é um slogan, mas sim uma cadeia de decisões audaciosas:

  1. Recuperar o controle dos recursos naturais, como fez a Bolívia com o lítio.
  2. Criar instrumentos financeiros independentes, uma moeda respaldada por commodities.
  3. Diversificar alianças, aproximando-se do Brics, da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) ou do mundo árabe.

Se a AES conseguir consolidar sua moeda e se expandir para o Chade ou a Guiné, sua influência poderá redesenhar o mapa africano. Para a América do Sul — presa ao extrativismo e à inflação —, o Sahel é um espelho incômodo, mas esperançoso: outro mundo é possível, e já está nascendo no deserto.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Alejandro Marcó del Pont

LEIA tAMBÉM

Dia Internacional das Pessoas Afrodescendentes a resistência do legado africano na Rep
Dia Internacional das Pessoas Afrodescendentes: a resistência do legado africano na Rep. Dominicana
Atentados, saques, sequestros terroristas e militares levam tormento a civis em Togo
Atentados, saques, sequestros: terroristas e militares produzem tormento a civis em Togo
1500 vítimas o que se sabe sobre massacre no Sudão ignorado pela comunidade internacional
1500 vítimas: o que se sabe sobre massacre no Sudão ignorado pela comunidade internacional
Ibrahim Traoré resgata revolução iniciada há 42 anos em Burkina Faso, diz irmão de Thomas Sankara (1)
Ibrahim Traoré resgata revolução iniciada há 42 anos em Burkina Faso, diz irmão de Thomas Sankara