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ToggleO direito foi definido como o conjunto de normas que ordenam a conduta humana de relação social¹, e a norma como a unidade do direito que estabelece uma sanção material para o caso de que se infrinja a regra de conduta que ela contém.
No entanto, estas definições, que são corretas, só consideram o direito no plano normativo. E o direito existe também em outro plano, no das relações humanas, como a forma destas, o que lhes dá seu caráter legal.
O direito como norma
Vejamos, em primeiro lugar, como evoluiu o direito como norma.
As primeiras regras do que viria a ser denominado direito apareceram há uns 12.000 anos, quando a humanidade – por obra das mulheres, assim como a linguagem que em grande parte desenvolveram – inventou a agricultura e a pecuária. Com estas atividades aumentou a disponibilidade de bens para alimentar-se, em relação à caça, e criou-se um excedente que podia ser destinado à troca. Estas primeiras regras estabeleceram a equivalência nos intercâmbios. Na Roma antiga recuperou-se mais tarde esta primeira noção do direito; e, assim, no Digesto, as fórmulas do intercâmbio foram: do ut des (dou para que dês), do ut facias (dou para que faças), facio ut des (faço para que dês) e facio ut facias (faço para que faças). Tal preceito se estendeu à integridade física e familiar e aos bens das pessoas, como um direito reparador cuja expressão fora nos primeiros tempos a lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Depois, o direito expressaria mais abstratamente a igualdade: direito subjetivo, de um lado, e obrigação de dar, fazer ou não fazer, do outro; e, no âmbito econômico: crédito, de um lado, e débito, do outro.
Desde então, o direito como norma ou como conjunto de normas passou por três etapas: a religiosa, a régia e a popular.
Nos primeiros tempos, as normas jurídicas foram consideradas a expressão da vontade dos deuses dada a conhecer pelos sacerdotes. Só estes sabiam tudo das leis e das intrincadas fórmulas para aplicá-las que eles tinham criado e, como uma consequência, também resolviam os conflitos judiciais.
As primeiras compilações de normas evidenciam sua natureza religiosa. Por exemplo, o Código de Hamurabi da Babilônia, de 1780 antes de Cristo, aparece como dado pelo deus Sol da Justiça a Hamurabi. Este código se encontra agora no museu do Louvre em Paris. É um bloco de pedra de diorito negro de mais de dois metros de altura sobre a qual estão gravadas as normas em escritura cuneiforme. Na parte superior foram talhadas as figuras do deus Sol, transmitindo verbalmente o código ao rei Hamurabi. Outro exemplo deste período são os mandamentos da lei que, segundo a Bíblia, Moisés recebeu de Deus no monte Sinai, possivelmente por volta do ano 1250 antes de Cristo. Os judeus conservam estas prescrições devidas a Moisés e outros sacerdotes e escribas no documento chamado Torá, integrado pelos cinco livros do Pentateuco que formam a Bíblia.
O direito começou a laicizar-se na Grécia com as leis que Sólon, rei de Atenas, fez aprovar uns 500 anos antes de Cristo. O direito passou a ser assim uma criação daqueles que detinham o poder do Estado. Esta tendência continuou em Roma, por volta do ano 454 antes de Cristo, com a compilação de normas disposta pelo Senado para dar aos plebeus revoltados direitos civis similares aos que tinham os patrícios. Esta compilação, denominada Lei das Doze Tábuas, reproduzia em parte as leis de Sólon que uma comissão trouxe de Atenas. Tempos depois, lá pelo ano 270 antes de Cristo, o censor Ápio Claudio fez divulgar em Roma os arquivos pontifícios com as normas sobre as ações judiciais que haviam sido secretas.
Com a expansão do Império Romano, que abrangeu quase toda a Europa, a Ásia Menor e o norte da África, o direito romano, constituído por regras ditadas como constituições, sentenças, ditames e comentários, tornou-se universal. No século V de nossa era, este enorme conjunto foi compilado por ordem do imperador Justiniano. Foi o Corpus Iuris Civilis, obra de um grupo de juristas dirigidos por Triboniano e graças à ideia de fazê-lo de Teodora, a esposa de Justiniano, que tinha sido artista, muito inteligente e de muito caráter. Viveram em Ravena, Itália, sobre o mar Adriático. Na cabeceira da Basílica de São Vital desta cidade, cuja construção dispuseram, há dois grandes mosaicos feitos naquele momento com as ilustrações: em um, Justiniano e seu séquito de homens, e no outro Teodora e sua corte de mulheres.
Mas, se bem o direito fosse formalmente uma criação do Estado, na realidade expressava a vontade da realeza: reis, imperadores e príncipes que governavam os estados e seus territórios como bens de sua propriedade.
O advento do capitalismo
Tal situação só pode mudar com o advento do sistema capitalista nos séculos XV e XVI. Com o desenvolvimento das empresas, sobretudo na Grã-Bretanha e na França nos séculos XVII e XVIII, surgiu uma intelectualidade burguesa que logo tomou consciência da necessidade de uma mudança radical na sociedade europeia. A corrente ideológica assim criada foi denominada Iluminismo. Na França dizia-se que, ao lado da burguesia dos negócios, havia uma burguesia do talento.
Em 1762, foi publicado o livro de Jean Jacques Rousseau O Contrato social que definiu o que devem ser a sociedade e o governo do Estado. Disse ali, em síntese que, sendo todos os homens iguais, eles deviam subscrever um contrato social para dar-se as leis e o governo que desejassem. Seguia a rota que tinham traçado Thomas Hobbes – O Leviatã, 1651– e John Locke –Ensaio sobre o governo civil, 1690. Foi uma revolução no pensamento social e jurídico que levou à Revolução Francesa de 1789. Com esta se chegou à terceira etapa na evolução do direito como norma, cujo fundamento é a declaração de que sendo os seres humanos iguais perante a lei, eles ou seus representantes aprovam as leis por seu voto majoritário e elegem os membros dos poderes do Estado. Tais preceitos, plasmados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Convenção francesa em agosto de 1789, foram dali em diante a base jurídica da sociedade e do Estado.
Alguns anos depois, Napoleão Bonaparte, quando tinha 34 anos e já tinha se coroado imperador da França, fez redigir o Código Civil, por dois juristas conhecedores do direito romano e dois do direito consuetudinário para ordenar legalmente a sociedade civil que nascia da Revolução Francesa. Napoleão não só foi o poder armado da França que levou a Revolução a outros países da Europa, mas também seu organizador jurídico e administrativo. Este Código, de 1804, foi divulgado no mundo e suas normas povoam os códigos civis em quase todos os países.
Seguiram-se outros conjuntos de normas para regulamentar outros aspectos das atividades humanas.
O Estado e a burocracia: Como a superestrutura política mudou ao longo do tempo
A construção teórica mais adequada ao que é o direito como norma é, a meu ver, a obra do professor austríaco Hans Kelsen. Ele a expôs em seus livros Teoria pura do direito, publicado em 1936, quando ensinava na Universidade de Genebra, e Teoria geral do Estado, publicado em 1945, sendo professor da Universidade de Harvard. Kelsen viu no direito uma pirâmide normativa em que as normas inferiores devem seu conteúdo e hierarquia às normas superiores. Na cúspide desta pirâmide se encontra a constituição política e sobre ela o poder constituinte. Embora tenha sido qualificada de formalista, esta teoria levou à convicção generalizada de que deve haver uma instância jurídica que controle a constitucionalidade das leis e a legalidade das normas de nível inferior às leis. Esta instância é o Tribunal Constitucional que foi criado em numerosos países e, em outros, a Corte Suprema.
O direito como relação social
Como já disse anteriormente, o outro plano do direito é o da relação social. Neste plano o direito existe nas relações sociais como sua forma ou como uma maneira determinada de ser, o que lhes confere o atributo da legalidade.
Mas, como as normas podem ser acatadas ou não, vale dizer que as pessoas podem cumprir suas obrigações com outros ou com a sociedade ou não fazê-lo, deliberadamente, por negligência ou inexperiência, o plano da relação social é muito conflituoso, o que obrigou a sociedade a criar uma entidade para resolver os conflitos judiciais. Além disso, o plano das relações sociais pode exigir novas normas ou uma mudança das existentes. De maneira geral, ao evoluir a sociedade, e em particular as relações econômicas, surge a necessidade de mudar as normas legais.
A solução técnica para resolver os conflitos jurídicos, erradicando a arbitrariedade, foi delineada por dois grandes teóricos do direito: Irnerio e Beccaria.
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Irnerio viveu na cidade de Bolonha, Itália, entre 1050 e 1130. Sua proeza foi ter incorporado o silogismo de Aristóteles à solução dos conflitos jurídicos, opondo-se à autoritas ou o poder dos juízes religiosos e laicos de resolver como quisessem. Para isso considerou que a lei é a premissa maior de um silogismo que define um fato como legal; o fato que se julga é a premissa menor que deve ser comparada com o modelo que traz a lei; e a conclusão é que este fato é legal se é igual à premissa maior ou, inversamente, é ilegal se é diferente da premissa maior.
Mas não foi só isso que Irnerio fez. Sua obra abrangeu também a recuperação do direito romano, que estava esquecido, para ter um corpo de normas que servissem de base à legalidade. Portanto, ele e seus discípulos Bulgarus, Martinus, Hugolinus e Jacobus, os mais eminentes, retomaram o Corpus Iuris Civilis que fora compilado cerca de 600 anos antes por disposição do imperador Justiniano. Estudaram-no fazendo anotações nas margens, as glosas, razão pela qual foram chamados os glosadores. Para criar um corpo de profissionais do direito, Irnerio, que só tinha então 38 anos, fundou a Universidade de Bolonha em 1088, que foi a primeira do mundo ocidental, uma universidade autônoma do poder dos príncipes e da Igreja e que se mantinha com as pensões dos alunos. Esta universidade continua sendo uma das mais importantes da Europa. Sua denominação é Alma mater studiorum – Università di Bologna.
O outro grande teórico da aplicação do direito foi Cesare Beccaria, que viveu na cidade de Milão. Em 1764, quando tinha 26 anos, publicou seu livro Dos delitos e das penas, seguindo os ensinamentos de Rousseau, Montesquieu e outros iluministas franceses. Neste livro expôs a necessidade de tipificar os delitos pela lei, a publicação das leis para estabelecer o começo de sua vigência e a aplicação do silogismo aristotélico para determinar se um fato que se julga como delituoso entra nos pressupostos de ilegalidade previstos pela lei. Seu livro obteve um êxito imediato e, depois de sua publicação em Paris, seus princípios foram incorporados à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Daí em diante, não só o direito penal se baseia nos preceitos de Beccaria, como também os outros ramos do direito quanto a tipificação indicar estritamente os casos de ilegalidade.
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Compreende-se que, sendo tão importante na sociedade a função de resolver os conflitos judiciais, aqueles que a assumam devem deter os conhecimentos pertinentes, a probidade, a inteireza e uma cultura geral notável. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa de 1789 estabelecera que “Todos os cidadãos sendo iguais perante a lei são igualmente admissíveis a todas as dignidades, postos e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outra distinção que a de suas virtudes e talentos.” (art. 6º). Isto quer dizer que o ingresso na função pública deve ser por concurso de méritos ante jurados imparciais.
Foi esta também uma revolução institucional que acabou com a designação dos juízes pelos reis e seus súditos de confiança, que vendiam estes cargos como bens transmissíveis por herança.
Daí em diante, a aplicação do direito, que Irnerio tinha simplificado, foi condicionada cada vez mais por procedimentos formais, exigidos pelas necessidades da economia, a divisão social do trabalho, a evolução social, a complexidade dos aparatos judicial e administrativo e as exigências ou a comodidade da burocracia judicial e administrativa. Não é possível exigir o cumprimento de um direito sem adequar-se às regras vigentes, às inumeráveis normas que são publicadas todos os dias, que por uma ficção sem fundamento fático, todas as pessoas devem conhecer. Continua assim necessariamente o monopólio da prática jurídica por advogados formados a partir de certo momento nas universidades, uma espécie de retorno, dir-se-ia, ao exercício cativo e ritual da advocacia nos primeiros tempos.
A administração da justiça no Peru
Em nosso país, até 1969, a nomeação dos juízes, segundo as constituições, competia ao Congresso da República e ao Presidente da República. Contra esta situação surgiu uma corrente de opinião no Colégio de Advogados de Lima, na década de sessenta do século passado, para que a nomeação dos juízes se efetuasse por concurso público. Esta corrente foi determinante para que o governo do presidente Juan Velasco Alvarado criasse em 1969 o Conselho Nacional de Justiça como a entidade que devia nomear os juízes de todas as instâncias por concurso público. Deviam integrar este Conselho dois delegados do Poder Executivo, dois do Poder Judiciário, um da Federação de Colégios de Advogados do Peru, um do Colégio de Advogados de Lima e dois das faculdades de direito das universidades mais antigas. Na Constituição de 1993 assumiu-se este modelo que agora é personalizado pela Junta Nacional de Justiça.
Mas só a nomeação por concurso público não basta para assegurar uma justiça imparcial. É necessário um controle permanente da atividade jurisdicional dos juízes, o que se obtém com um regime de sanções adequadas, aplicáveis caso estes resolvam contra a lei ou sem considerar os fatos provados.
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Em nosso país, no entanto, fez-se desaparecer as sanções para os juízes pela emissão de sentenças e outras decisões contra a lei que estavam previstas na Lei Orgânica do Poder Judiciário. A Lei 29.277 da Carreira Judiciária, de 4 de novembro de 2008, derrogou-as e não contém a tipificação como faltas graves dessas infrações². Embora subsista no Código Penal a figura da prevaricação, sua denúncia fica restrita à decisão do Procurador ou da Procuradora da Nação, depois de um trâmite desnecessariamente longo e cheio de obstáculos. Em suma, é muito difícil que os juízes respondam por suas decisões ilegais e isto os inclina ao exercício de um poder arbitrário. Aquela Lei foi feita a instâncias de um governo e por parlamentares que queriam sua impunidade e a de seus próximos por seus feitos delituosos, e cuja culpa poderia ser declarada depois por juízes complacentes, atemorizados ou corrompidos.
Creio que algo temos que fazer na cátedra universitária, nos colégios de advogados, nas associações de advogados, nas associações civis e nos partidos políticos que realmente sustente a democracia, para erradicar esta anomalia e assegurar a independência funcional dos juízes e procuradores e sua imparcialidade, sujeitando-se irrestritamente à Constituição.
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(18/8/2023)
- Havia sido previsto que eu pronunciaria uma conferência sobre o direito como norma e como relação social no ato do Colégio de Advogados de Lima, de 18 de agosto de 2023, no qual esta instituição devia declarar-me advogado emérito, a mais elevada distinção que confere e que só foi outorgada a cinco colegas, incluindo-me. No entanto, como os discursos de apresentação e fundamentação e meu agradecimento tinham se prolongado além do programado, estimulados pela presença dos distintos membros da Junta Diretora do Colégio, de outros convidados e de uns 200 assistentes que enchiam o salão de atos, tive que anunciar que divulgaria o texto preparado depois. É este que segue. A expressão O direito como norma e como relação social é o título de meu livro sobre teoria do direito, cuja primeira edição foi publicada em Lima, em 1984 e cuja quarta edição data de 2000 e 2004. Esta conferência foi publicada na Revista de Direito do Trabalho e Seguridade Social, editada pela Oficina de Pesquisa José Matías Manzanilla da Universidade Nacional Maior de São Marcos, Lima, dezembro de 2023, Nº 8.
- Esta Lei foi uma iniciativa do governo de Alan García, evidentemente para possibilitar a emissão de sentenças exculpatórias nos casos de corrupção ou ditando decisões arbitrárias.
“O Genocídio Será Televisionado”: novo e-book da Diálogos do Sul Global denuncia crimes de Israel