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ToggleNo prólogo do livro “Os últimos dias da humanidade”, adverte Karl Kraus, seu autor: “Os feitos mais inverossímeis aqui narrados realmente ocorreram. Pintei-os simplesmente do modo como aconteceram. Os diálogos mais inacreditáveis aqui travados foram literalmente pronunciados. As fantasias mais aberrantes são citações.”
O livro foi apresentado inicialmente como uma tragédia teatral de cinco atos e encenada pela primeira vez em 1922. Didaticamente ela apresenta três subdivisões claras: “Esta Grande Época” (princípio da Guerra), “Guerra é Guerra” e “A Última Noite” (final da Guerra), com mais de seis horas de encenação.
A essência da espetacular criação artística foi, por meio de diálogos, captar ao final de Primeira Guerra Mundial que a humanidade acabara de percorrer um caminho sem retorno, na perda da moral e da ética da “phylia”, do humanismo!
A miséria humana diante da barbárie que se implanta através da tortura e execução de prisioneiros de guerra, de massacres de populações civis, o uso de gases tóxicos e mortíferos, o uso da “morte por correspondência” realizada pelos bombardeios de aviões e dirigíveis, apenas prenunciavam os fenômenos da Segunda Guerra e que se agudizam nos dias de hoje, com a alta tecnologia a serviço do poder, do dinheiro, a exclusão social e do genocídio de populações inteiras. “O progresso técnico deixará apenas um problema: a fragilidade da natureza humana.”
Manutenção do “Estado de Guerra”
A força do texto de Kraus nos permite ver e ouvir o retrato panorâmico dos processos discursivos que instituem e mantêm o estado de guerra, e que tornam insensível o sofrimento humano, e invisível a ordem que dele se alimenta. Por exemplo, quando o pastor de uma igreja diz do púlpito: “Não há dúvidas de que o Reino de Deus prosperará e se ampliará mediante esta guerra… Matar neste caso não é pecado, antes um servir à Pátria, um dever cristão. ”
O autor realiza uma colagem documental monumental de falas de dezenas e dezenas de personagens. Trata-se de pôr em cena a própria humanidade, não como conceito, mas na concretude singular da violência histórica e do sofrimento individual, que as práticas discursivas, que reproduzem as relações sociais de poder, parecem tornar inimagináveis.
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A poética da indignação que Kraus constrói advém da sua capacidade de mostrar a ação da linguagem como produtora de um estado de coisas e, ao mesmo tempo, como um meio para imaginar o sofrimento que consegue ocultar. Maior do que toda a vergonha da guerra (nos pós-Primeira Guerra) “é a vergonha de os homens já nada quererem saber dela”, suportando que haja guerra, mas preferindo ignorar o que tenha ocorrido. Os que sobreviveram ao tempo da Primeira Guerra achavam, então, que o tempo já passara e a barbárie havia cessado! Sempre o mesmo ledo engano.
Afinal, ninguém levou tão longe a representação do mal absoluto da guerra: Kraus procurou captar o teatro de guerra como fantasmagoria tecnológica e discursiva.
“Estado de Apocalipse”
Montagem verbal e montagem cênica desenvolvem-se segundo uma lógica recursiva e centrífuga, capaz de dar ao horror dos atos e das palavras um alcance social panorâmico. A intensidade do “pathos” satírico e a multiplicação dos quadros dramáticos permitiu-lhe construir uma estética da mais alta indignação. Para o estado de apocalipse a que a humanidade se condenara, nem o testemunho do poeta era já possível.
“A guerra, a princípio, é a esperança de que a gente vai se dar bem; em seguida, é a expectativa de que o outro vai se ferrar; depois, a satisfação de ver que o outro não se deu bem; e finalmente, a surpresa de ver que todo mundo se ferrou. ”
Genocídio e genocidas: um tema do presente, passado e futuro
Notícias impressas, oratória militar, pregões, cenas de rua, dos corredores do poder e das frentes de batalha alternam num processo de montagem, cuja natureza documental só acentua a miséria da linguagem.
“Os últimos dias da humanidade” mostra de que forma as condições de inteligibilidade do presente produzidas antes pela imprensa, hoje principalmente pelas redes sociais fazem, de fato, parte da ordem da morte que alegadamente descrevem.
“Cúmplices do próprio extermínio”
Ao tornar visível essa ignóbil função de tornar invisível o sofrimento dos seres humanos, Kraus encena o moderno mercado da violência que tornou a humanidade cúmplice do seu próprio extermínio, inclusive com a destruição do meio ambiente.
“É esta a guerra mundial. É este o meu manifesto. Tudo maduramente ponderei. Tomei sobre mim a tragédia que se decompõe nas cenas da humanidade em decomposição, para que a ouvisse o espírito disposto a apiedar-se das vítimas, mesmo que ele próprio tivesse renunciado para todo o sempre à ligação com um ouvido humano. Ele que capte a nota dominante desta época, o eco da minha loucura sangrenta, que me torna cúmplice de todo este alarido. Ele que a aceite como redenção!”
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“O Pobre Diabo Face à Guerra”
“Se tivessem contado ao Diabo, que sempre teve uma enorme paixão pela guerra, que um dia haveria homens para quem a continuação desta representa um interesse comercial, que eles nem se dão ao trabalho de disfarçar e cujo produto ainda os ajuda a ocupar um lugar de destaque na sociedade, ele teria dito para irem contar isso à avó dele. Mas depois, quando se tivesse convencido do fato, o inferno teria ficado abrasado de vergonha e ele não teria outro remédio senão reconhecer que toda a vida fora um pobre diabo! ”
“O Diabo é muito otimista se pensa que pode piorar as pessoas. ” (Ele não sabe, mas) “existem imbecis superficiais e imbecis profundos. ”
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Obs.: Karl Kraus nasceu em 28 de abril de 1874 na República Checa, numa família abastada que se mudou para Viena, em 1888. Foi indicado duas vezes para o Prêmio Nobel. Faleceu em 1936, atropelado por uma bicicleta. Cravou para a posteridade: “O segredo do demagogo é de se fazer passar por tão estúpido quanto a sua plateia, para que esta imagine ser tão esperta quanto ele. ”