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ToggleDurante a cerimônia de comemoração dos 200 dias de governo, em 18 de julho, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) modificou, por meio de um decreto, a composição do Conselho Superior de Cinema, colocando mais representantes do governo do que do mercado audiovisual e da sociedade. Na mesma semana, Bolsonaro ameaçou mudar a sede da Agência Nacional do Cinema (Ancine) para Brasília e afirmou que se não pudesse “filtrar” o conteúdo que é financiado pela agência, iria então extingui-la ou privatizá-la.
A fala do presidente gerou revolta entre integrantes do audiovisual brasileiro, que afirmam que o fim da Ancine significa interromper todos os avanços obtidos nos últimos anos em um setor que gera R$ 25 bilhões ao ano, o equivalente a 0,46% do PIB brasileiro – valor que está acima do movimentado pelas indústrias farmacêutica, têxtil e de informática, por exemplo. O setor também é responsável por empregar 98 mil pessoas em todo o país. “Terminar com a Ancine é inviabilizar toda uma atividade econômica que tem uma importância muito grande. A indústria criativa cresce no mundo inteiro, então, o Brasil vai andar para trás se entender que tem que impedir o funcionamento de uma indústria que é uma atividade econômica”, afirma a cineasta Ana Luiza Azevedo, que é uma das sócias da Casa de Cinema de Porto Alegre.
De acordo com a cineasta, muitos dos avanços do setor audiovisual brasileiro se devem a políticas públicas criadas no início dos anos 2000, como a Ancine e o Conselho Superior de Cinema, ambos instituídos em 2001 pela Medida Provisória 2.228-1. A Ancine é uma autarquia, ou seja, possui autonomia em relação ao governo que está em exercício, e atua como uma agência reguladora, sendo responsável por fomentar e fiscalizar o setor audiovisual, cuidando dos incentivos públicos destinados às obras nacionais e fiscalizando as normas que envolvem todo o setor.
Agência Brasil
“Um possível término da Ancine vai de encontro a todo o desenvolvimento que chegamos até aqui e a um setor que foi criado de forma coletiva”
Além disso, representantes da área apontam que o fim da Ancine pode significar o enfraquecimento de todo reconhecimento que a indústria audiovisual brasileira tem recebido mundialmente. O vice-presidente da Fundação de Cinema do Rio Grande do Sul (FUNDACINE), Luiz Alberto Cassol afirma que, desde a criação da Ancine, “o setor se desenvolveu muito e deixou o mercado audiovisual completamente organizado, desenvolvendo uma série de produtos, como séries, filmes, e conteúdos audiovisuais reconhecidos em festivais internacionais, como [Festival de] Berlim e [Festival de] Cannes”. “Um possível término da Ancine vai de encontro a todo o desenvolvimento que chegamos até aqui e a um setor que foi criado de forma coletiva”.
Para o presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual do Rio Grande do Sul (SIAV), Rogério Rodrigues, o setor audiovisual brasileiro tinha um objetivo de crescimento que vinha sendo cumprido, principalmente pela atuação da Ancine. “Esse setor tem um peso muito grande para um país. A gente sabe que os Estados Unidos é o que é em função do seu cinema. Um país que tem um audiovisual forte consegue também se fortalecer, isso é importante. Não sei a quem interessa enfraquecer o cinema nacional”, afirma.
Apesar dos riscos de ameaça ou de privatização da Ancine, a cineasta Ana Luiza pontua que não é uma tarefa que está nas mãos do presidente. “A extinção não é assim tão simples, porque ela foi criada por lei. Então, a não ser que a gente esteja realmente vivendo em um estado de exceção, ela não pode ser extinta pelo canetaço de um presidente, ela tem que passar pelo Congresso”, afirma. Até mesmo a possibilidade de privatização é questionada pelos representantes do audiovisual brasileiro.
Entretanto, a cineasta enxerga as mudanças do Conselho Superior de Cinema já como uma forma de facilitar o “dirigismo que o Governo está querendo”. Com o decreto de Bolsonaro, o Conselho, que tem a função de orientar e tomar decisões dentro do setor, além de formular as diretrizes da política audiovisual no país, passou a ter sete membros do Governo, três representantes da indústria audiovisual e apenas dois da sociedade civil. Até a decisão, o Conselho era composto igualmente por nove membros do Governo e nove do mercado e da sociedade. “Enquanto tu tens representação da sociedade civil diversa dentro do Conselho tu tensiona, tu tem uma voz que tá ali representada. No momento que tu tira essa voz e coloca só as pessoas que pensam como tu, tu vai ter um único tipo de coisas sendo feitas”, diz Ana Luiza.
Ela lembra ainda que o Conselho já havia sido atacado no Governo de Michel Temer (MDB), quando foram retirados representantes da sociedade civil e colocados no lugar representantes da indústria americana. “Antes da mudança [de Temer] o Conselho tinha representantes de toda a cadeia, dos distribuidores, dos produtores e todos estavam ali para discutir, para o melhor da indústria audiovisual brasileira”, afirma.
‘Filtro’
Além de modificar o Conselho, Bolsonaro tentou atacar a Ancine por meio do filme ‘Bruna Surfistinha’, longa que foi lançado em 2011 e conta a história da ex-prostituta Raquel Pacheco. Em seu discurso, o presidente disse não ser possível admitir que “com dinheiro público, se façam filmes como o da Bruna Surfistinha”. “Não pode dinheiro público ser usado para fins pornográficos”, disse Bolsonaro.
Para Rodrigues, há uma falta de informação por parte do presidente acerca das regras da Ancine para acusar a obra de pornografia. “A própria Ancine, com base em suas normativas, não permite que seja feito filmes pornográficos e, além do mais, Bruna Surfistinha não é um filme pornográfico, é um drama baseado em uma história real”, afirma Rodrigues, que pontua que “não cabe ao presidente da República fazer essa censura”, uma vez que existe dentro da Ancine regras e normas para a aprovação dos projetos que receberão incentivo.
Em uma carta aberta, três entidades do audiovisual gaúcho pontuam que o filme criticado por Bolsonaro foi responsável por levantar cerca de “R$ 3 milhões em incentivos fiscais” e que estimativas apontam que “mais de R$ 10 milhões foram arrecadados pelos cofres públicos na forma de impostos, recolhidos sobre a venda de ingressos, receitas das empresas envolvidas e tributos incidentes sobre a contratação de profissionais, serviços prestados à obra, alimentos consumidos nas salas, licenciamento para TV, entre outros”. O longa também gerou mais de 400 empregos.
Ainda em seu discurso sobre o longa, Bolsonaro afirmou que tentaria filtrar as produções financiadas pela Ancine. A frase do presidente foi vista por grande parcela da sociedade como uma tentativa de censurar as produções audiovisuais brasileiras. Para a cineasta Ana Luiza, a afirmação de Bolsonaro trata-se de uma volta à censura. “É Absurdo que a gente esteja voltando a isso. O governo pode, junto com uma sociedade civil, determinar o que se quer, mas fazer filtros e dizer que devem ser feitos projetos que sejam bons para as famílias, é uma deformação, um dirigismo. Uma censura que a gente achava que já tinha superado, que tinha ficado lá na ditadura [militar]”, afirma.
De acordo com a cineasta, o setor audiovisual brasileiro vive atualmente um momento muito importante de reconhecimento internacional, devido, em grande parte, justamente à produção de obras diversas. “Tem filmes de todos os tipos porque o Brasil é diverso e, então, produz filmes sobres diversos assuntos. Essa é a função do filme, ele tem que refletir uma sociedade, tem que fazer pensar, a gente tem que se enxergar nele. É pra isso que as obras de arte existem”, afirma.
O mesmo ponto é levantado por Cassol e, segundo ele, é justamente a pluralidade da produção feita no Brasil que faz com que o audiovisual brasileiro seja cada vez mais valorizado em serviços de streaming, como HBO e Netflix, em festivais internacionais e em salas de cinema. “Hoje, temos uma possibilidade de serviços em tela do mundo inteiro exatamente pela pluralidade da nossa produção. Temos uma pluralidade estética, abordamos todos os assuntos, produzimos filmes e séries, temos uma qualidade de mercado sendo valorizada no mundo inteiro”, diz Cassol. Ele destaca ainda que, para que as produções brasileiras possam continuar abordando diversos assuntos, não é possível que exista nenhum filtro.
Fundo Setorial Audiovisual
Para o presidente do SIAV, é possível que também haja um desconhecimento de Bolsonaro sobre a procedência e funcionamento do dinheiro utilizado como incentivo pela agência, uma vez que o presidente da República mencionou o uso de dinheiro público para as produções financiadas pela Ancine. Atualmente, o valor fomentado pela Agência para os projetos audiovisuais deriva do Fundo Setorial Audiovisual (FSA), que foi criado pela Lei nº 11.437/2006 e tem como função gerar investimentos e financiamentos para o desenvolvimento de toda a cadeia produtiva da indústria audiovisual brasileira, podendo fomentar diversas atividades do setor, como produção, comercialização, exibição, infraestrutura e distribuição, por exemplo.
De acordo com Rodrigues, o FSA é abastecido pela Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine). “É importante dizer que a Condecine é o que a gente chama de Cide, que é uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, ou seja, é um imposto que existe em um setor para ser utilizado naquele mesmo setor. Não é, por exemplo, o imposto de renda ou o ICMS, que são impostos que vão para União usar em várias coisas”, afirma Rodrigues. A cineasta Ana Luiza explica que a Condecine é paga por todo o setor audiovisual. “Se eu termino um filme e eu vou exibir no cinema, eu pago a Condecine. A produtora também paga, o exibidor paga, as emissoras de televisão para exibir seus produtos audiovisuais pagam. Ele é um fundo específico. Esse dinheiro não está sendo tirado de outra pasta, não estamos deixando de fazer outras coisas para fazer isso”, afirma.
Dessa forma, embora o FSA seja abastecido pela Condecine e, por tabela, regulado pela Ancine, o presidente da SIAV também pontua que o Fundo é administrado pelo Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) e trata-se de um “dinheiro de um fundo setorial”. “Não é um dinheiro que pode ser usado, por exemplo, na saúde. Se fechar a Ancine hoje, esse dinheiro não pode ser alocado para outra função”, diz Rodrigues. Ele pontua ainda que o FSA é responsável pelo crescimento e pela grande produção cinematográfica feita atualmente no Brasil.
Ana Luiza explica que os projetos audiovisuais que receberão incentivos do FSA são escolhidos por meio de um júri, composto por representantes do Governo, do mercado audiovisual e da sociedade civil. “A Ancine abre um edital, as pessoas inscrevem seus projetos. Supomos que de 300 projetos vão ser escolhidos cinco. Aí tem um júri que lê todos os projetos, analisa e discute quais os melhores cinco para aquele edital. Uma vez aprovado, aquele projeto que ganhou tem um tempo específico para produzir”, explica.
A cineasta também afirma que quando um projeto é escolhido para receber o incentivo financeiro há uma “extremamente rigorosa” prestação de contas. “Normalmente, os projetos ganham só uma parte do dinheiro, quase nenhum recebe o dinheiro integral que será usado na produção toda. A prestação de contas é extremamente rigorosa e detalhista. Duvido que tenha um outro lugar que trabalhe com lei de incentivo de outro fundo que seja tão rigoroso e tão transparente como o FSA”, afirma Ana Luiza.
Entretanto, é possível que a Ancine deixe de administrar o FSA, segundo afirmou o porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, na última terça-feira (23). De acordo com ele, a retirada da agência da gestão do FSA está sendo analisada pela área jurídica do Palácio do Planalto e, caso ocorra, o Fundo seria repassado para a Secretaria Especial da Cultura, vinculada ao Ministério da Cidadania e a Ancine seria responsável apenas pela regulação e supervisão do audiovisual, deixando de ser uma fomentadora do setor.