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A vitória de Mamdani é um fio de esperança para uma cidade que foi tomada e que, esperemos, volte a pertencer àqueles que a erguem. (Foto: Reprodução / Facebook)

NY: vitória de Zohran Mamdani coloca a islamofobia estadunidense frente ao espelho

Direita reacionária atacou mais o fato de Zohran Mamdani ser muçulmano que seu projeto político — um retrato da profunda estigmatização ainda vivida por esse povo nos EUA

Sofía R. F. González
El Salto
Madri

Tradução:

Ana Corbisier

A cidade de Nova York, nos Estados Unidos, amanheceu nesta quarta-feira (5) cheia de esperança, com a vitória do candidato democrata, o socialista democrático Zohran Mamdani. De 34 anos e originário de Uganda, Mamdani é o primeiro prefeito muçulmano da cidade.

A vitoriosa campanha do novo prefeito centrou-se em três eixos fundamentais: o acesso a uma moradia digna — com o congelamento dos aluguéis controlados pela cidade —, ônibus gratuitos como parte de um programa piloto nos Estados Unidos e supermercados e lojas de alimentos com preços regulamentados pela prefeitura. Em suma, o direito dos nova-iorquinos de viver uma vida digna e de ter acesso à sua própria cidade. No entanto, os ataques islamofóbicos da direita reacionária se dirigiram não tanto contra seu projeto político contra-hegemônico, mas contra sua própria subjetividade: homem muçulmano, imigrante e de classe trabalhadora.

Fazer do outro um estranho

Em 1978, Edward Said publicou Orientalismo, uma obra que revolucionou os estudos culturais ao analisar a forma como o Ocidente construiu uma imagem estereotipada e subordinada do Oriente para justificar o imperialismo e o domínio colonial. Fazemos do árabe o Outro, estereotipamos e estigmatizamos sua imagem. Tornamos o Ocidente o centro, e o Oriente é o que está “lá”, diante de “nós”, os “daqui”.

Como intelectual palestino que trabalhou durante 40 anos como catedrático de literatura comparada na Universidade de Columbia, Said recebeu ameaças após a publicação do livro — considerado hoje uma peça-chave dos estudos descoloniais e ensinado em qualquer curso de humanidades nas universidades do país —; foi vigiado e até ameaçado. Seu compromisso intelectual com a causa política lhe custou oportunidades profissionais e até amizades. Fazer uma crítica social tão contundente não é fácil: exige um processo de estranhamento, um afastamento do olhar colonial, imposto também ao próprio sujeito colonizado. Orientalismo nos ensina que nosso olhar não é inocente, mas atravessado pelas estruturas retóricas da hegemonia.

No caso de Mamdani, em 27 de outubro, dois dias antes do início da votação antecipada, o programa de notícias independente Democracy Now! relatou como Andrew Cuomo, candidato independente à prefeitura apoiado por Trump, no programa de rádio de Sid Rosenberg, riu e concordou quando Rosenberg afirmou que Mamdani estaria comemorando caso ocorresse outro atentado como o de 11 de setembro — apelando a uma suposta simpatia de Mamdani pela jihad. Horas mais tarde, e sem pedir desculpas nem retirar o comentário, a equipe de Cuomo publicou na rede social X um vídeo gerado por inteligência artificial que mostrava pessoas caricaturadas como criminosos apoiando a candidatura de Mamdani — homens com kufiyas, pessoas racializadas e consumidores de drogas, todos apoiando com fervor a candidatura, com a legenda: “Criminosos por Mamdani”.

O vídeo foi removido após o alvoroço de críticas, mas voltou a ser publicado por contas que denunciavam sua islamofobia. Em outro gesto xenófobo, o ex-prefeito da cidade, Eric Adams — acusado de corrupção e desvio de fundos —, declarou publicamente que os políticos não podiam permitir que Nova York “se transformasse na Europa”. Mamdani condenou publicamente o episódio, apontando não apenas a violência verbal, mas também a falta de respeito com o milhão e meio de muçulmanos que vivem na cidade. O ugandês também publicou um comunicado em vídeo no Instagram, no qual falou do medo e da repressão que a comunidade muçulmana sofreu após os atentados às Torres Gêmeas e as invasões do Iraque e do Afeganistão: “Minha tia não voltou a pegar o metrô depois de 11 de setembro de 2001 até muitos anos depois”.

A América Latina e o Caribe têm um favor a devolver aos EUA

Mas a luta pela libertação é internacionalista e, como tal, alvo do eixo ultraconservador. Pensar em conter o avanço reacionário nos Estados Unidos implica afirmar uma práxis antibélica, antirracista e anticolonial. O socialista democrático, ativo defensor da causa palestina — junto a vozes como as de Alexandria Ocasio-Cortez, Bernie Sanders e Ilhan Omar —, encontra-se no epicentro da crítica sionista.

Apesar de ter ressaltado a importância da convivência entre todas as práticas religiosas na cidade, e de ter sido apoiado pelos principais grupos judeus antissionistas do país, como Jewish Voice for Peace e Rabbis for Ceasefire, seu claro posicionamento — singular se considerarmos as práticas genocidas dos Estados Unidos contra o povo palestino — tornou-se uma das principais balas carregadas de ódio disparadas por seus adversários. Até o presidente do país chegou a ameaçar “tomar as ruas” e revogar a cidadania que Mamdani obteve por naturalização em 2018.

Na Espanha

Talvez o que ocorre neste império possa servir de advertência sobre o que pode acontecer — ou já está acontecendo — naquilo que foi, em outros tempos, o Império Espanhol, ou na visão idealizada que alguns ainda parecem ter do que o país foi há 500 anos: uma potência tremendamente sanguinária. Os saudosistas daquela Espanha imperial transformam-se agora em ávidos defensores de um Estado que nunca existiu como tal, ancorado na época dos Reis Católicos, na ideia do fanatismo religioso da coroa.

O caso Mamdani pode nos servir de alerta diante do auge de um problema endêmico: nos mostrar como o racismo está se expandindo como um vírus global através de diferentes latitudes. Segundo dados do Ministério do Interior, 43,73% dos crimes de ódio cometidos na Espanha devem-se ao racismo e à xenofobia: desde Torre Pacheco até os comentários provocados pela abertura do novo centro para menores migrantes em Monforte de Lemos, passando pelas detenções de migrantes sem documentos no cassino de Lavapiés, em Madri, o ódio se espalha como uma praga.

Uma praga que já parasitou a Europa — Itália, Portugal, Alemanha, Hungria, Argentina, El Salvador —, mas que também está nos alcançando: ela está diante de nós. No mesmo relatório ministerial espanhol, 40% das pessoas entre 18 e 24 anos afirmam ter intenção de votar na ultradireita nas próximas eleições — a mesma direita que clama contra um “avanço muçulmano em nosso território” e que pede para “deportar oito milhões de pessoas do Estado”. Jovens que não apenas se deixam seduzir por esses discursos, mas também permanecem fascinados por uma nostalgia de um momento histórico pervertido pelo relato hegemônico, despojado de uma verdade historiográfica própria.

A história, como nos ensinou a dialética, é cíclica. Dela aprendemos que não se avança em linha reta, mas que os processos ocorrem em fases. E, como nos advertiu Santayana: “O povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la.”

Um vislumbre de esperança

Nos Estados Unidos, comentaristas políticos apontaram que a campanha de Mamdani é eficaz porque consegue alcançar não apenas as classes populares — aquelas que, longe da visão idealizada projetada por séries como Sex and the City ou Gossip Girl, ganham abaixo do salário mínimo, cerca de 16 dólares por hora, e que, de Manhattan ao Bronx, sustentam o motor produtivo da cidade —, mas também a juventude. Uma juventude que herda o legado de Stonewall, que fechou universidades e estações de trem em solidariedade à Palestina e que rebatizou o Hamilton Hall da Universidade de Columbia como Hinds Hall, em homenagem a Hind Rami Iyad Rajab, uma menina palestina de cinco anos assassinada no genocídio em Gaza no ano passado, enquanto ela e sua família tentavam escapar do cerco israelense.

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Uma juventude para a qual o novo líder representa um fio de esperança diante de um império em decadência. Dados recentes mostram como o nova-iorquino médio tem dificuldade para pagar o aluguel, fazer as compras semanais ou levar os filhos à creche. Na Espanha, o reflexo é semelhante: a crise da habitação, a inflação dos alimentos, a dificuldade em decidir se ter filhos e a precariedade laboral.

“Clandestina”: as memórias da brasileira que renunciou à identidade para desafiar a ditadura

Em 1959, o poeta palestino-iraquiano Yabra Ibrahim Yabra publicou em Beirute Tammuz al-Madina, um livro que fala da perda, do exílio e da busca por uma identidade coletiva entre as ruínas da modernidade árabe. Hoje também podemos voltar nosso olhar para Yabra, que utiliza a figura de Tammuz — o deus da fertilidade na antiga Babilônia — como metáfora da esperança e da resistência diante da destruição. Em seu belo poema Em minha terra tomada, ele escreve:

Em minha terra tomada
por um teatro de serpentes
uma ruína de cães selvagens
um deserto
construí um lar com meus ossos
erguido com minhas mãos
plantado com minhas raízes
deixando que a água entrasse
por páramos e desertos
sem viver na busca
do vazio da glória
onde nada brota
na ubiquidade dos espinhos e das bestas
eles lapidaram meu lar
meus frutos desejosos de desobediência
eu ainda, com meus braços,
faço aparecer as serpentes rastejando
faço aparecer o coração, amparo diante do aturdimento.

A vitória de Mamdani é um fio de esperança para uma cidade que foi tomada e que, esperemos, volte a pertencer àqueles que a erguem.

O poema citado foi traduzido do árabe-inglês-espanhol por M. Zewar e Sofía R. F. González.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Sofía R. F. González

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