Conteúdo da página
ToggleNão sou médico para comentar os aspectos epidemiológicos do vírus que nos assola. Mas algumas implicações sociais e políticas são óbvias. O primeiro ponto é que desde o golpe há uma fragilização generalizada das políticas sociais – e para efeitos de governança tudo começa já em 2013 com as manifestações, e com o boicote (“Dilma pode até ganhar, mas não irá governar”) e a inversão de prioridades em 2014 favorecendo o sistema financeiro. O teto de gastos, a perda de direitos trabalhistas, o retrocesso na Previdência, os ataques às organizações da sociedade civil, o congelamento do salário mínimo e do Bolsa Família e outras medidas tiveram como denominador comum o travamento da renda e do acesso aos bens de consumo coletivo pelo grosso da população, enquanto se expandia radicalmente o lucro dos bancos e dos grandes aplicadores financeiros.
Foi justamente isso o que paralisou a economia. Os números são claros. Na fase distributiva, entre 2003 e 2013, tivemos um crescimento médio do PIB da ordem de 4% ao ano, apesar da crise de 2008; e de lá para cá, tivemos um recuo do crescimento médio do PIB da ordem de 3,5% em 2015 e em 2016, seguido da paralisia, o fundo do poço onde nos encontramos, com crescimento em torno de 1% ao ano, o que descontando o crescimento demográfico implica que estamos parados no nível de uns 8 anos atrás. E tudo foi feito “para proteger o país do déficit” atribuído à irresponsabilidade de Dilma Rousseff que “devia ter aprendido que uma dona de casa tem de gastar apenas o que tem”. Para registro, anotem os déficits apresentados no Resultado Fiscal do Governo Central, entre 2012 e 2019. O déficit foi de R$ 61 bilhões (1,3% do PIB) em 2012, 111 em 2013, passando para 272 em 2014 (já com a reversão política), 514 em 2015, 478 em 2016, 459 em 2017, 426 em 2018, e 400 em 2019. Em suma: Joaquim Levy, Henrique Meirelles, Paulo Guedes ou quem seja viraram campeões de déficit, prejudicando seriamente a vida do grosso da população.
A questão é que esses recursos, que não foram investidos na população, tampouco entraram no governo – e se tivesse entrado teria equilibrado as contas –, mas não entrou e foi para algum lugar… Se vocês consultarem o site do Tesouro Nacional vão constatar que o governo tem transferido em juros, essencialmente para bancos e outros aplicadores financeiros, entre R$ 300 e 400 bilhões por ano, dinheiro que precisamente deixou de ir para educação, segurança e o SUS. Consultem a fonte, acessem http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/resultado-do-tesouro-nacional, cliquem em “Resultado Fiscal do Governo Central – Estrutura Nova”, e embaixo acessem a tabela 2.1. (Por alguma razão deslocaram recentemente os dados da tabela 4.1 para 2.1, vá lá entender). Vejam as linhas IX, X e XI, os números estão lá, discretos mas firmes, apontando a farsa.
Não há nenhum mistério quanto à paralisia econômica. Quando se reduziu a capacidade de compra da população, as empresas tiveram de reduzir o ritmo de produção – hoje estão trabalhando com menos de 70% da capacidade – e demitir seus empregados. O desemprego dobrou e se mantém nas alturas, com apenas um pouco de recuperação no setor informal. Ao travar o consumo das famílias e a produção das empresas (que dirá do investimento empresarial, ninguém investe com tamanha insegurança) se reduz também os impostos pagos tanto sobre o consumo como sobre outras atividades econômicas. Aprofunda-se ainda mais o déficit, ferrando com a população e as empresas.
O teto de gastos foi apresentado como medida séria, de “austeridade”, e reduziu drasticamente a capacidades de ação do SUS. Para os que tomam as decisões e têm planos de saúde sofisticados (aliás outra forma de extorsão), não havia preocupação nenhuma em travar o SUS. Estão cobertos pelo Einstein e outros hospitais. Para o grosso da população, foi um desastre, reduzindo fortemente a capacidade pública e gratuita de atendimento. Isso impacta evidentemente a expansão do coronavírus, e eis que os grupos privilegiados descobrem que o vírus não foi informado sobre a diferença entre quem tem plano de saúde e quem tem SUS. Ferrar o sistema universal e gratuito de atendimento, facilita a expansão do vírus, e isso vai atingir diretamente a todos. Aliás, as elites que viajam são as que mais contribuíram para trazer o vírus para o país, mas a generalização da vulnerabilidade cria precisamente o que se chama Crise. E é o que estamos vivendo, com C maiúsculo.
Pixabay
Devemos juntar as forças para enfrentar o vírus, mas devemos também pensar que onde funciona, a saúde é pública, gratuita e universal
Somos todos apenas seres humanos
O coronavírus é de índole democrática. Não tem preferências de classe. Os privilegiados têm sem dúvida mais meios de se proteger, com trabalho em casa pelo computador, com casa de campo, com amplos quartos que permitem evitar contatos diretos. Mas no conjunto a fragilização do sistema de saúde na massa da população agrava a vulnerabilidade do país como um todo.
Lições já estamos tirando, é um efeito indireto frequente quando surgem crises. De repente, nós lembramos que somos todos apenas seres humanos, com as mesmas vulnerabilidades, e fragilizar a saúde de uns gera tragédias para todos. E travar o Estado, em nome da “luta contra a corrupção”, quando se está desviando dinheiro do essencial (Saúde, Educação, Segurança…) para a acumulação financeira de milionários, constitui um escândalo sem tamanho que as pessoas estão começando a compreender.
A crise atinge a todos, ou quase. E neste momento (milagre!) os mesmos grupos que vieram “nos salvar” ao “nos proteger do Estado”, “enfrentar o déficit”, “privatizar bens públicos” se lembram precisamente da generosidade dos cofres públicos. Como em 2008, quando os desmandos dos bancos foram recompensados, pelo mundo afora, com o dinheiro público, no momento atual, o Estado volta a ser o salvador da pátria. São 800 bilhões de dólares nos Estados Unidos, 147 bilhões de reais no Brasil, outros tantos em diversos países. É necessário? Sem dúvida, mas vem tarde, e vem muito deformado: migalhas para os assalariados, esquecimento dos 40 milhões de informais e dos 12 milhões de desempregados, e mais dinheiro público para as empresas.
Onde funciona, a saúde é pública, gratuita e universal
A meu ver, nós devemos juntar as forças para enfrentar o vírus, mas devemos também pensar que onde funciona, a saúde é pública, gratuita e universal, porque nesta área, as atividades públicas são muito mais eficientes do que o sistema privado. Nos Estados Unidos, o sistema é em grande parte privado, e custa 10.400 dólares por pessoa e por ano. No Canadá, onde é dominantemente público, atinge-se um nível de saúde muito superior com 4.400 dólares. O setor privado é ótimo para produzir hambúrguer, bicicletas, automóveis. Na saúde, educação, segurança, intermediação financeira e outros serviços essenciais de consumo coletivo, a privatização é uma desgraça. Vira indústria da doença, indústria do diploma, indústria da dívida. Sem falar das milícias.
O que temos pela frente, além do coronavírus, é pensar uma sociedade mais solidária e resiliente, em cada país e em cada cidade.
Governança planetária
Uma outra dimensão capaz de ultrapassar a pandemia e apontar novos rumos é o desafio da governança planetária. No caso do aquecimento global, por exemplo, estamos assistindo a uma catástrofe em câmara lenta, enfileirando reuniões internacionais em que se constata que… “temos de tomar providências”. Quais providências? As providências cabíveis. Quando? No momento oportuno. Por quem? Pelas autoridades competentes. E assim por diante, o velho discurso que conhecemos. Os governos até assinam compromissos com boa vontade, mas voltando para casa, eles se preocupam mais com a sobrevivência do seu mandato do que com a sobrevivência da humanidade.
As corporações sempre conheceram perfeitamente, muito antes de nós, o tamanho dos desastres que contribuem para gerar. As empresas de cigarro conheciam, por pesquisas internas, a expansão do câncer e os milhões de mortes que ocasionavam – e que continuam a ocasionar – enquanto o negavam publicamente. A Volkswagen conhecia perfeitamente o volume de emissões de partículas que seus carros produziam, e sabia que estava contribuindo com cerca de 6 milhões de mortes que esta poluição ocasionava anualmente no mundo. A British Petroleum conhecia a tecnologia de exploração de petróleo em águas profundas, mas dinheiro para os acionistas era mais importante.
A Vale sabe como se constrói uma simples barragem segura – somos um país que tem capacidade de construir uma Itaipu, mas aqui também os interesses financeiros dominam. As empresas de petróleo e do carvão sabem há décadas que estão levando a economia mundial para o desastre. A lista aqui pode ser imensa, o denominador comum é que o rendimento das ações e o bônus do conselho de administração, e sempre no curto prazo, dominam. A partir de um certo nível de amplitude, a própria responsabilidade se dilui. Os desmandos convergem e se ampliam, mas as culpas se tornam abstratas enquanto os desastres se tornam sistêmicos.
Onde esses exemplos se cruzam com a presente pandemia? Na dimensão planetária dos desafios. A Europa está parando de produzir medicamentos porque depende de insumos da China e de outros países. Nos Estados Unidos, empresas param por falta às vezes de uma peça. A Crise atual está nos fazendo tomar consciência dê a que pontos somos hoje um sistema interligado e interdependente. Somos uma economia mundial, os seres humanos circulam freneticamente pelo planeta como milhões de formigas, o dinheiro imaterial circula na velocidade da luz sem controle provocando instabilidade generalizada, a informação se tornou uma commodity global, mas não temos governança planetária. Pelo contrário, predomina o oportunismo nefasto, que pode tomar a forma de exportação de lixo da Europa para a Ásia, de cobrança de níveis ridículos de impostos pela Irlanda (e tantos outros) para atrair empresas a qualquer custo, da manutenção de paraísos fiscais com soberania fictícia para favorecer transações ilegais e assim por diante.
Uma só humanidade terráquea
Em outros termos, somos uma humanidade terráquea que se comporta politicamente como se o mundo do século XXI pudesse conviver com tribalismo político. Mas enquanto nos feudos europeus de antigamente os deslocamentos a cavalo e os massacres com espadas tinham limites físicos, não há limites neste planeta hiperconectado e interdependente, dotado de tecnologias de impacto global, e que ainda se mobiliza em torno a gritos nacionalistas, a ódios religiosos, a demagogos histéricos. Isso não funciona. Os países mais pobres estão fechando os seus portos aos navios com lixo dos países ricos, os países ricos estão se fechando por trás de cercas de arame farpado para se proteger dos pobres. Todos os países estão fechando suas fronteiras como se o corona precisasse de visto de entrada! E a culpa pelo aquecimento global está sendo empurrada de um lado para outro. Cada um clama o seu direito soberano de defender os seus interesses a seu modo, ainda que o resultado sistêmico seja um desastre.
O que o coronavírus nos lembra, ou praticamente esfrega na nossa cara, é que estamos realmente maduros para um sistema de soberania compartilhada e regulada no plano global. A ONU apresenta o Global Green New Deal, a OCDE negocia o acordo Base Erosion and Profit Shifting (BEPS) buscando assegurar primeiros passos na regulação fiscal e financeira do planeta, o World Inequality Database (WID) sistematiza os dados básicos sobre a rupturas sociais e econômicas, grandes corporações e grupos financeiros estão acenando com possíveis reorientações no seu comportamento, até Davos apela para evoluirmos da prioridade dos acionistas para as prioridades da sociedade e do meio ambiente (From Shareholders to Stakeholders). Um simples apelo do Papa para discutir uma outra economia, a Economia de Francisco, reúne pesquisadores de primeira linha mundial.
Oportunidade de um choque de bom senso
A crise global pode gerar – e apenas pode – um choque de bom senso. Confinado em casa, tenho todo o tempo de enfrentar as 1200 páginas de Capital e Ideologia, de Thomas Piketty, na edição francesa (ainda não saiu em português, mas está disponível em inglês). Raramente vi tanto bom senso organizado. O livro trata essencialmente do nosso principal drama, a desigualdade, e é um primor de realismo na análise e de clareza nas propostas. E me impressiona o leque de trabalhos de primeira linha que estão construindo uma nova visão de como a economia e a sociedade podem ser reorganizadas. O People, Power and Profits do Joseph Stiglitz, A Economia Donut de Kate Raworth, O Estado Empreendedor de Mariana Mazzucato, A Apropriação Indébita de Gar Alperovitz e Lew Daly, The Public Bank Solution de Ellen Brown, os trabalhos de Há-Joon Chang, de Marjorie Kelly, de Ann Pettifor, de Saez e Zucman, de Jeremy Rifkin, enfim, há uma revolução teórica em curso que está transformando a forma de analisarmos o que acontece no mundo. Uma nova visão está surgindo.
Não há dúvidas que continuamos nas poderosas mãos de gigantes corporativos, que os interesses financeiros se apropriam dos próprios governos, que populações frustradas pela política que não lhes serve votam em qualquer demagogo que lhes alimente o ódio. Mas tampouco há dúvidas de que as soluções estão na construção de novos pactos sociais, não apenas de preservar ou reconquistar o que já tivemos. É tempo de pensar caminhos.
Ladislau Dowbor é professor de economia na PUC-SP e consultor de várias agências internacionais. Fundador e membro do Conselho Editorial da Diálogos do Sul
Os seus trabalhos, inclusive resenhas dos livros mencionados, podem ser encontrados em http://dowbor.org
Veja também