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Quem se beneficia do suicídio-bomba em Cabul? Rússia China e Talibã contra ISIS

Os talibãs já iniciaram campanha para se desconectar do rótulo “terroristas” associado ao 11 de setembro. Só ao ISIS interessa uma guerra civil no Afeganistão
Pepe Escobar
Asia Times
Paris

Tradução:

O horrendo atentado por suicida-bomba em Cabul introduz vetor extra em situação já incandescente: visa a provar, para os afegãos e para o mundo exterior, que o nascente Emirado Islâmico do Afeganistão não é capaz de assegurar a segurança da capital.

Pelo que se sabe até aqui, houve, na quinta-feira (26), pelo menos 103 mortos — 90 afegãos (incluindo pelo menos 28 Talibãs) e 13 soldados norte-americanos; e pelo menos 1.300 feridos, segundo o Ministério da Saúde do Afeganistão.

O canal de Amaq Media, agência noticiosa oficial do Estado Islâmico (ISIS) no Telegram, publicou declaração reivindicando a autoria do ataque. Significa que a declaração partiu diretamente do comando centralizado do ISIS, ainda que os perpetradores tenham sido membros do ISIS-Khorasan (ISIS-K). 

Pressupondo-se herdeiros do peso histórico e cultural de terras da Ásia Central que, desde os tempos da Pérsia imperial, estendiam-se diretamente até os Himalaias ocidentais, esse grupo ostenta o nome de Khorasan.

O suicida-bomba que cumpriu sua “missão de martírio” próximo do aeroporto de Cabul foi identificado como Abdul Rahman al-Logari. Pode ser afegão, da província de Logar. 

E tudo isso sugere também que a explosão tenha sido organizada por alguma célula dormente do ISIS-Khorasan. Análise eletrônica sofisticada das comunicações entre eles teria meios para provar essa possibilidade — ferramentas com que os talibãs não contam.

O modo como a mídia especialista em ISIS optou por apresentar o massacre merece ser atentamente examinado. A declaração via Amaq Media culpa os talibãs de estarem “numa parceria” com militares dos EUA, para evacuar “espiões”.

Zomba das “medidas de segurança impostas pelas forças dos EUA e pelas milícias talibãs na capital Cabul,” e comenta que seu “mártir” conseguiu chegar “à distância de cinco metros das forças norte-americanas que supervisionavam os procedimentos.”

Assim sendo, é claro que o recém-renascido Emirado Islâmico do Afeganistão e a potência ocupante até há bem poucos dias enfrentam o mesmo inimigo. ISIS-Khorasan compreende um punhado de fanáticos, ditos takfiris porque declaram “apóstatas” outros muçulmanos — nesse caso os talibãs.

Fundado em 2015 por jihadistas emigrados despachados para o sudoeste do Paquistão, ISIS-K é fera esquiva. Atualmente, é liderado por um Shahab al-Mujahir, que foi comandante de nível médio da rede Haqqani, cujo quartel-general está no Waziristão Norte, nas áreas tribais paquistanesas; a rede é ela também coleção de mujahidin e jihadistas em potencial cobertos pelo guarda-chuva da família.

Washington declarou organização terrorista a rede Haqqani já em 2010, e trata vários membros como terroristas globais, incluindo Sirajuddin Haqqani, líder da família depois da morte do fundador Jalaluddin.

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Até agora, Sirajuddin foi vice-líder Talibã para as províncias orientais — no mesmo nível do Mulá Baradar, chefe do gabinete político em Doha, libertado de Guantánamo em 2014.

Crucialmente importante é o fato de o tio de Sirajuddin, Khalil Haqqani, que foi encarregado das finanças exteriores da rede, ser hoje responsável pela segurança de Cabul, e trabalhar dia e noite, sem interrupção, como diplomata. 

Os líderes anteriores do ISIS-K foram detonados por ataques aéreos dos EUA em 2015 e 2016. O ISIS-K começou a se tornar força efetiva de desestabilização em 2020, quando o bando já reagrupado atacou a Universidade de Cabul, uma ala de maternidade dos Médicos sem Fronteiras, o palácio presidencial e o aeroporto.

A inteligência da OTAN recolhida num relatório da ONU atribui um máximo de 2.200 jihadistas ao ISIS-K, distribuídos em células pequenas. Significativamente, a maioria absoluta são não afegãos: iraquianos, sauditas, kuwaitianos, paquistaneses, uzbeques, chechenos e uigures.

O real perigo é que o ISIS-K trabalha como espécie de ímã para todos os tipos de ex-Talibãs desorganizados ou senhores-da-guerra regionais também não organizados, todos sem ter para aonde ir.

Alvo soft perfeito

Civis em comoção nos últimos dias em torno do aeroporto de Cabul tornaram-se alvo soft perfeito para carnificinas que levem a marca registrada do ISIS.

Zabihullah Mujahid – novo ministro Talibã para a informação em Cabul e que, como tal, fala diariamente à mídia global — é quem, na verdade, alertou os membros da OTAN para a iminência de um atentado por suicida-bomba do ISIS-K. Diplomatas em Bruxelas confirmam essa informação.

Paralelamente, não é segredo nos círculos da inteligência na Eurásia, que o ISIS-K tornou-se desproporcionalmente mais poderoso desde 2020, por efeito de uma linha-de-rato de transporte, de Idlib, na Síria, até o Afeganistão Oriental, conhecida informalmente em dialeto dos espiões como “Daech Airlines”.

Moscou e Teerã, mesmo nos mais altos escalões diplomáticos, culparam diretamente o eixo EUA-Reino Unido por esses países serem facilitadores chaves dessas “Daech Airlines”. Até a BBC noticiou, no final de 2017, sobre centenas de jihadistas do ISIS que ganharam livre passagem para sair de Raqqa e da Síria, bem sob o nariz dos norte-americanos.

O bombardeio de Cabul aconteceu depois de dois significativos eventos.

O primeiro foi a declaração de Mujahid durante entrevista ao canal norte-americano NBC News, no início dessa semana, de que “não há prova” de que Osama bin Laden estivesse por trás do 11/9 — argumento que eu já sugeri que começava a aparecer, nesse podcast na semana anterior.

Significa que os talibãs já iniciaram campanha para se desconectar do rótulo “terroristas” associado ao 11/9. Passo seguinte talvez envolva argumentar que a execução do 11/9 foi concebida em Hamburg, detalhes operacionais coordenados de dois apartamentos em New Jersey.

Nada que tenha a ver com afegãos. E tudo mantido dentro dos parâmetros da narrativa oficial – mas essa é outra história imensamente complicada.

Os talibãs terão de mostrar que o “terrorismo” sempre teve a ver com seu inimigo mortal, o ISIS, e vai muito além da antiga escola da al-Qaeda, que eles abrigaram até 2001. Mas por que não fazem esses esclarecimentos? Afinal, os EUA já reabilitaram a Frente Al-Nusra – ou al-Qaeda na Síria — hoje consideradas “rebeldes moderadas”.

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A origem do ISIS é material incandescente. O ISIS brotou feito enxame nos campos de prisioneiros no Iraque, o núcleo duro é formado de iraquianos, tudo que sabem em matéria de competências militares é derivado de ex-oficiais no exército de Saddam, bando feroz demitido há muito tempo, em 2003, por Paul Bremmer, então dirigindo a Autoridade Provisória da Coalizão.

ISIS-K leva devidamente adiante o trabalho do ISIS, do Sudoeste da Ásia, para as encruzilhadas da Ásia Central e do Sul da Ásia no Afeganistão. Não há evidências críveis de que o ISIS-K mantenha laços com a inteligência militar paquistanesa.

Ao contrário: ISIS-K alinha-se superficialmente com o [grupo] Tehrik-e-Taliban (TTP), também conhecido como Talibã Paquistanês, inimigo mortal de Islamabad. A agenda do TTP nada tem a ver com o Talibã afegão liderado pelo moderado Mulá Baradar que participou no processo de Doha. 

A Organização de Cooperação de Xangai, OCX, põe as coisas no lugar

Outro evento significativo ligado ao bombardeio de Cabul é que aconteceu apenas um dia depois de outra conversa telefônica entre os presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping.

O Kremlin destacou que os dois presidentes estão “prontos a organizar esforços para combater ameaças terroristas e de tráfico de drogas que partam do território afegão”; destacou também “a importância de estabelecer a paz”; e de “impedir que a instabilidade alcance regiões adjacentes.”

E daí brotou a surpresa interessante: ambos os presidentes comprometeram-se, juntos, a “fazer o melhor uso possível do potencial” da Organização de Cooperação de Xangai, fundada há 20 anos como “os Cinco de Xangai”, ainda antes do 11/9, para combater “o terrorismo, o separatismo e o extremismo”.

A reunião de cúpula da OCX está marcada para o próximo mês em Dushanbe – ocasião em que o Irã, quase com certeza, será admitido como membro pleno. O bombardeio de Cabul oferece oportunidade para que a OCX entre mesmo em cena.

Seja qual for alguma complexa coalizão tribal que venha a ser formada para governar o Emirado Islâmico do Afeganistão, será entretecida com todo o aparato de cooperação regional econômica e de segurança, liderado pelos três principais atores da integração da Eurásia: Rússia, China e Irã.

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Registros mostram que Moscou tem todo o necessário para ajudar o Emirado Islâmico contra o ISIS-K no Afeganistão. Afinal, os russos puseram o ISIS para fora de todos os pontos significativos da Síria e os confinaram no caldeirão de Idlib.

No fim, ninguém, exceto o ISIS, deseja um Afeganistão aterrorizado, assim como ninguém quer guerra civil no Afeganistão. Assim sendo, a ordem dos negócios indica não apenas luta frontal comandada pela OCX contra células existentes de terroristas do ISIS-K no Afeganistão, mas também campanha integrada para drenar qualquer base social potencial que haja para os takfiris na Ásia Central e Sul da Ásia.

* Tradução Vila Mandinga


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Pepe Escobar Pepe Escobar é um jornalista investigativo independente brasileiro, especialista em análises geopolíticas e Oriente Médio.

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