Parecia que tudo estava pronto para que os talibãs anunciassem o novo governo do Emirado Islâmico do Afeganistão, depois das orações da última sexta-feira (3). Mas diferentes reivindicações de diferentes grupos impediram.
Isso, e a ótica adversa de uma “resistência” desorganizada no Vale Panjshir, ainda não controlada. Essa dita “resistência” é comandada de fato por agente da CIA — o ex-vice-presidente Amrullah Saleh.
Os talibãs insistem que capturaram vários distritos e pelo menos quatro pontos de controle no Panjshir, controlando 20% daquele território. Mesmo assim, não se vê sinal de fim de jogo.
Estima-se que o Supremo Líder Haibatullah Akhundzada, intelectual religioso de Kandahar, será a mais nova alta autoridade do Emirado Islâmico, quando o governo for afinal formado. Mulá Baradar provavelmente governará logo abaixo dele, como figura presidencial ao lado de um conselho de governo de 12 membros, a Shura.
Se tudo ficar assim, haverá algumas semelhanças entre o papel institucional de Akhundzada e o do Aiatolá Khamenei, no Irã, apesar de os dois contextos teocráticos, sunita e xiita, serem completamente diferentes.
Mulá Baradar, cofundador dos talibãs com o Mulá Omar em 1994 e preso em Guantánamo então Paquistão, serviu como o mais alto diplomata dos talibãs, como chefe do gabinete político em Doha.
Foi também interlocutor chave nas prolongadas negociações com o hoje extinto governo de Cabul e a Troika expandida (Rússia, China, EUA e Paquistão).
Dizer que seriam litigiosas ou turbulentas as negociações para formar um novo governo afegão seria subestimar espetacularmente os fatos. Na prática, foram administradas pelo ex-presidente Hamid Karzai e o ex-presidente do Conselho de Reconciliação Abdullah Abdullah: Pashtun e tadjique com vasta experiência internacional.
Ambos, Karzai e Abdullah são nomes que com alta probabilidade integrarão a Shura de 12 membros.
Com as negociações parecendo avançar, deu-se violento choque frontal entre o gabinete político dos talibãs em Doha e a rede Haqqani, quanto à distribuição de postos chaves de governo.
Acrescente-se a isso o papel do Mulá Yakoob, filho do Mulá Omar, e presidente da poderosa comissão militar dos talibãs, que supervisiona a massiva rede de comandantes de campo, entre os quais goza de alto prestígio.
Recentemente, Yakoob deixou vazar que “quem vive em Doha cercado de luxo” não pode ditar ordens a quem vive na luta em campo. Como se isso já não fosse suficientemente belicoso, Yakoob também tem sérios problemas com os Haqqanis — atualmente encarregados de um posto chave: a segurança de Cabul, a cargo de Khalil Haqqani, até aqui ultra diplomático.
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Talibãs constituem coleção complexa de senhores-da-guerra tribais e regionais
À parte o fato de que os talibãs constituem coleção complexa de senhores-da-guerra tribais e regionais, o dissenso ilustra o abismo que separa o que se poderia explicar, em termos gerais, como facções centradas predominantemente em nacionalistas afegãos e outras, centradas em interesses mais pró-Paquistão.
Nesse segundo caso, os protagonistas são os Haqqanis, que operam em íntima conexão com os Inter-Serviços de Inteligência (ISI) do Paquistão.
É trabalho de Sísifo, para dizer o mínimo, construir legitimidade política, mesmo num Afeganistão que venha a ser governado por afegãos que empurraram a nação para uma ocupação estrangeira.
Desde 2002, tanto com Karzai como, depois, por Ashraf Ghani, muitos afegão viam o regime no poder como governo imposto por ocupantes estrangeiros sempre validados por eleições “cenográficas”.
No Afeganistão, tudo gira em torno de tribo, família e clã. Os Pashtuns são uma tribo imensa, com quase incontáveis subtribos as quais, todas, são regidas pelo pashtunwali, código de conduta que mistura autorrespeito, independência, justiça, hospitalidade, amor, misericórdia, vingança e tolerância.
Voltarão ao poder, como no período de Talibã 1.0, de 1996 a 2001. Os tadjiques, falantes de Dari, por outro lado, não são tribais, com maioria de moradores urbanizados em Cabul, Herat e Mazar-i-Sharif.
Assumindo-se que venham a resolver pacificamente seus conflitos internos, como pashtuns, um governo liderado pelos talibãs terá necessariamente de conquistar corações e mentes tadjiques entre comerciantes, por todo o país, burocratas e o clericato educado.
O idioma Dari, derivado do Persa, é há muito tempo a língua da administração do governo, da alta cultura e das relações exteriores no Afeganistão. Agora, tudo isso voltará ao idioma dos pashtuns. Esse é o cisma que o novo governo terá de superar.
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Ainda há surpresas no horizonte. Dmitry Zhirnov, embaixador russo extremamente bem conectado em Cabul, revelou que está discutindo com os talibãs o impasse que se vê no Panjshir.
Zhirnov observou que os talibãs consideraram “excessivas” algumas das demandas dos Panjshiris – por exemplo, querem número excessivo de assentos no governo e autonomia para algumas províncias não pashtuns, inclusive a própria Panjshir.
Não é impossível que Zhirnov, considerado altamente confiável por praticamente todos os envolvidos, venha a operar como mediador, não só entre Pashtuns e Panjshiris, mas mesmo entre facções Pashtuns opostas.
Há nisso uma deliciosa ironia histórica, clara para quem ainda se lembre da jihad dos anos 1980s, de todos os mujahideen unificados contra a URSS.
* Tradução: Vila Mandinga
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