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O que significa a visita de Kamala Harris à Ásia em meio ao caos no Afeganistão?

Há, nos EUA, um consenso sobre a centralidade da região da Ásia-Pacífico no âmbito da política externa norte-americana para conter o avanço da China
Robson Coelho Cardoch Valdez
OPEU
São Paulo (SP)

Tradução:

Em meio à retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão, a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, saiu em sua segunda viagem internacional (24/8), desta vez, rumo ao Sudeste Asiático. Sua visita teve o objetivo de reafirmar a imagem dos EUA como ator comprometido com seus parceiros estratégicos nos âmbitos global e regional. 

Neste sentido, a vice-presidente reforçou o posicionamento em defesa dos interesses dos EUA e de seus parceiros locais frente à inserção internacional da China e, mais especificamente, na disputa territorial em curso no Mar do Sul da China.

Sua primeira viagem internacional como vice, à Guatemala e ao México, em junho passado, foi considerada um fracasso tanto por republicanos quanto por democratas, por sua falta de tato em relação a uma agenda sensível para o público norte-americano: o fluxo de imigrantes da região para os EUA (principalmente o chamado “Triângulo Norte”, composto por Honduras, Guatemala e El Salvador).

A complexidade do tema continuará sendo um desafio para a política externa dos Estados Unidos, cujas intervenções tiveram um papel desestabilizador durante a Guerra Fria, em uma região tomada pela guerra civil e pela instabilidade política. Isso, como é sabido, transformou a região em campo fértil para o crime e para o surgimento de gangues transnacionais.

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As viagens de Kamala Harris chamam e continuarão a chamar atenção não apenas por seus objetivos, que se dão no âmbito da política externa da Casa Branca, mas também pelo fato de a vice-presidente ser apontada como principal sucessora de Joe Biden para a eleição presidencial de 2024.

Em sua segunda viagem internacional, passando por Vietnã e Singapura, Kamala enfrentou, novamente, o desafio de promover os interesses da política externa dos Estados Unidos. Dessa vez, no entanto, o desafio e a atenção foram maiores, pois se deram em meio a um grande desgaste da imagem do governo norte-americano. Na bagagem, estava o objetivo de fortalecer parcerias nesta região em um momento delicado para o ator hegemônico do sistema internacional.

Ao lado do premiê Lee Hsien Loong, Kamala reforçou o apoio duradouro dos EUA aos seus parceiros no Indo-Pacífico, especialmente a Singapura, que adota um posicionamento de neutralidade em relação às disputas territoriais no Mar do Sul da China. No encontro, o premiê Loong manifestou sua preocupação com a nova dinâmica do terrorismo na região, após a retirada das tropas americanas do Afeganistão. Ao fim da visita, foram anunciados acordos bilaterais para lidar com mudança climática, segurança cibernética e pandemia da covid-19.

Mar do Sul da China e anunciou o envio adicional de uma embarcação americana em apoio à Guarda Costeira do Vietnã. Harris anunciou, também, parceria com o Vietnã em temas como mudança climática, comércio e pandemia e reforçou que esta relação bilateral evolui de uma relação “abrangente” para uma relação “estratégica”.

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Parceiros-chave nas áreas de segurança e de economia, Vietnã e Singapura são aliados importantes do presidente Joe Biden na intrincada disputa geopolítica no Mar do Sul da China. Trata-se de região estratégica para a exploração de petróleo, gás natural, assim como para a navegação mundial (o porto de Singapura é o segundo mais movimentado do mundo em termos de tonelagem total de navios). 

Enquanto China, Indonésia, Filipinas, Malásia, Brunei e Vietnã disputam a soberania sobre ilhas, recifes e bancos de areia que se distribuem ao longo dessa importante rota comercial, os EUA alegam que se trata apenas de águas internacionais de livre-navegação em conformidade com decisão arbitral de 2016.

Há, nos EUA, um consenso sobre a centralidade da região da Ásia-Pacífico no âmbito da política externa norte-americana para conter o avanço da China

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Kamala Harris

Reação da China ao terrorismo transnacional

Frente a tudo isso, a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão gera questionamentos sobre qual será a nova estratégia americana para o Oriente Médio e para a Ásia Central, na medida em que se desconhece seu efeito na dinâmica das ações terroristas e em seu enfrentamento na região.

A questão afegã contribui, de fato, para a perda de confiança de parceiros e aliados na disposição dos Estados Unidos de permanecerem fiéis aos seus compromissos. Soma-se a outras experiências que colocaram em xeque o comprometimento americano junto a seus aliados, como no caso da não adoção de uma postura mais firme, por parte dos norte-americanos, quando a Rússia invadiu a Geórgia, em 2008, sob o pretexto de defender minorias russas nas províncias da Ossétia do Sul e da Abecásia. Especula-se que a suposta omissão americana no caso da Geórgia teria estimulado o governo russo quando, em 2014, suas tropas invadiram a Ucrânia e anexaram a Crimeia.

Com a recente saída dos norte-americanos do Afeganistão, teme-se que o Talibã não tenha condições políticas e materiais de evitar que o país se transforme em território disputado por organizações como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico (EI). Essa nova realidade pode levar a China, que relativizou seu princípio de não-intervenção no caso da Líbia (2011), a não tomar a mesma atitude em relação aos talibãs, seguindo agora a linha de atuação adotada mais recentemente para com a Síria.

Muito provavelmente, o governo chinês não desejasse uma vitória triunfal do Ocidente no Afeganistão que consolidasse a presença americana em seu quintal. Também não seria do interesse chinês uma vitória dos talibãs que pudesse representar risco para sua região de Xinjiang, de maioria étnica uigur e de religião muçulmana. O receio de que o Afeganistão pudesse se tornar refúgio para militantes uigures sempre esteve nos cálculos estratégicos da China e, por isso, apoiava-se a conciliação do governo afegão como o Talibã.

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Assim, ao falar sobre a cooperação no combate ao terrorismo no Afeganistão, sobretudo, ao Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (ETIM), na Nona Conferência do Processo Coração da Ásia-Istambul, em março passado, o ministro chinês das Relações Exteriores, Wang Yi, reforçou que “Todas as partes precisam unir forças e dobrar a luta contra as organizações terroristas, como o ETIM, até que sejam completamente eliminadas. As tropas estrangeiras devem se retirar do Afeganistão de forma responsável e ordeira, de modo a evitar que as várias forças terroristas se intensifiquem e criem problemas”.

O ativismo chinês no Oriente Médio vem tomando forma desde 2011, no contexto da Primavera Árabe. Nesse sentido, seu posicionamento na Líbia e na Síria mostram o comprometimento de sua política externa para essa região. Em 2011, os chineses votaram (muito pressionados pelos representantes da Liga Árabe e da União Africana) “a favor” da resolução 1970 que encaminhava os líderes líbios ao Tribunal Penal Internacional (TPI) e não vetaram a resolução 1973 (absteve-se), autorizando o uso da força contra Muammar Khaddafi. Vale ressaltar que, em 2011, 75 empresas chinesas operavam na Líbia, onde cerca de 36 mil chineses viviam e trabalhavam.

Diferentemente, em julho de 2012, a China anunciava seu terceiro veto à proposta de resolução no Conselho de Segurança da ONU, a qual previa sanções ao governo sírio, em caso de seu descumprimento. Frente ao fracasso do Conselho de Segurança em aprovar uma resolução, o debate foi levado à Assembleia Geral, que aprovou a resolução sobre a situação na Síria. A China votou contra a resolução da AGNU, manifestando sua oposição a qualquer ato que tivesse a mudança de regime como objetivo.

Da mesma forma, além da atuação da China na frente humanitária em território sírio por meio de canais multilaterais, seu apoio no combate de grupos terroristas na Síria tem ocupado a maior parte de suas preocupações e recursos. Após anunciar, em 2017, a doação de 200 milhões de yuans em ajuda humanitária, Xi Jinping reforçou, no escritório das Nações Unidas, em Genebra, que “Como o terrorismo e as crises de refugiados estão intimamente ligados a conflitos geopolíticos, a resolução de conflitos fornece a solução fundamental para esses problemas”.

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O combate ao terrorismo aparece, portanto, como a principal preocupação chinesa no âmbito de sua nova abordagem a respeito de sua tradicional não-intervenção em assuntos de outros países. O enfrentamento ao terrorismo decorre da ação do Estado Islâmico, que vinha atuando no Afeganistão e na Ásia Central e que se estabelecia também na Síria. Vale ressaltar que Abu Bakr al-Baghdadi, então líder do EI, declarou, em 2014, que os direitos dos muçulmanos eram desrespeitados na China e em uma série de outros países. Adicionalmente, uma publicação da Al-Qaeda afirmava que Xinjiang era uma “terra muçulmana ocupada” a ser “recuperada [na] sombra do califado islâmico”.

Assim, Afeganistão e Síria se tornaram uma frente terrorista interconectada a ser monitorada de perto pelos chineses diante da possibilidade de retorno de militantes uigures chineses e uzbeques para a Ásia Central. Nesse contexto, publicamente, o governo chinês tem defendido os esforços no combate ao ressurgimento do terrorismo na Síria. Da mesma forma, tem apoiado o papel da Rússia na luta contra grupos terroristas no referido país.

Não resta dúvida de que um governo que estabilize o Afeganistão, ainda que seja por meio do Talibã, contribui para os ambiciosos planos de investimentos chineses da Nova Rota da Seda na Ásia Central e do Sul. A esse respeito, o governo Donald Trump já havia demonstrado sua preocupação, ao perceber que a Nova Rota da Seda promove os objetivos globais de Beijing por meio de projetos que operam, segundo ele, fora das melhores práticas e dos padrões internacionais e que são “caracterizados por má qualidade, corrupção, degradação ambiental, falta de supervisão pública, ou envolvimento da comunidade, empréstimos opacos e contratos que geram, ou exacerbam, os problemas fiscais e de governança nos países anfitriões”.

Ainda que o governo Biden não tenha apontado sua estratégia para conter o avanço dos investimentos chineses, também conhecida como armadilha da dívida para os países receptores, Kamala Harris tem enfatizado que a estratégia norte-americana não impõe “escolhas” a seus parceiros.

Por fim, a visita da vice-presidente norte-americana ao Sudeste Asiático é importante, porque há, nos Estados Unidos, um consenso sobre a centralidade da região da Ásia-Pacífico no âmbito da política externa norte-americana para conter o avanço da China. Adicionalmente, como já foi ressaltado, a vice-presidente é virtual candidata do Partido Democrata para suceder a Biden nas próximas eleições presidenciais em 2024. Daí, também, a necessidade de reforçar sua retórica de comprometimento dos Estados Unidos com seus parceiros da região, ainda que desdobramentos geopolíticos em territórios como Geórgia, Ucrânia, Crimeia e, agora, Afeganistão, comprometam o discurso oficial da Casa Branca.

 

Robson Coelho Cardoch Valdez é pós-doutorando em Relações Internacionais IREL/UnB, doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS) e pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos/IREL-UnB.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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