O Paraguai viveu grande parte de sua história política sob ditaduras ou governos autoritários que se sucederam ao longo do século 20. Com o processo de transição iniciado em 1989 e a queda de Alfredo Stroessner, as amplas expectativas de avançar rumo a uma democracia plena chocaram-se com a realidade de que esta estava sendo construída de cima para baixo e a partir do próprio sistema. Além disso, logo ficou evidente que os conceitos de democracia que diferentes setores possuíam eram completamente distintos.
De fato, é possível rastrear a atual crise da vida democrática no Paraguai nessas visões contrapostas sobre o jogo político. Ao investigar as perspectivas de lideranças dos movimentos sociais e das elites, podem-se identificar quatro diferenças principais:
Em primeiro lugar, observa-se uma diferença entre elites e setores sociais: para as elites, a democracia está centralmente vinculada à institucionalidade formal, seja ela estatal ou partidária; enquanto, para os movimentos sociais, ela aponta para uma institucionalidade ampliada, centrada nas pessoas, que escute e atenda de forma efetiva as demandas e propostas dessas organizações e setores sociais. Isso está relacionado à própria percepção do Estado, que, para as elites, aparece mais como um mecanismo de manutenção do status quo e de acesso a recursos, enquanto, para os movimentos sociais, o Estado tem uma forte dimensão social e deve estar aberto à participação cidadã, além de garantir direitos e promover a igualdade social.
A segunda diferença está na ênfase das elites na dimensão política e eleitoral. Para as elites, o sistema democrático se sustenta no respeito a um conjunto mínimo de regras básicas, como eleições livres, direitos de organização política, reunião, expressão e liberdade de imprensa (ainda que, atualmente, isso também esteja em debate por setores da extrema-direita). Ou seja, um conjunto básico de direitos civis e políticos que garantem certa pluralidade na competição eleitoral e na disputa política. Os direitos econômicos e sociais, por sua vez, são considerados um resultado desejável, mas não uma condição necessária, como os civis e políticos. Já para os movimentos sociais, a democracia é entendida como o acesso real das pessoas à participação na sociedade e a condições de vida dignas, onde possam se desenvolver integralmente como indivíduos, em todas as suas dimensões e possibilidades; um contexto em que não existam cidadãos de primeira e segunda classe.
Legitimidade
Quanto ao terceiro elemento, diz respeito à legitimidade dos atores para assumir o controle do Estado. Para as elites, essa legitimidade está restrita a partidos políticos ou setores econômicos que as representem, enquanto, para os movimentos sociais, a pluralidade de atores é considerada um sinal inequívoco de democracia. Para as elites, a democracia é “um método, um procedimento, um acordo, um contrato que se aperfeiçoa ao longo do tempo” e que confere a alguns indivíduos o poder de decidir em todos os assuntos, como resultado de seus esforços na busca por votos. Trata-se de uma democracia representativa, mas onde as maiorias impõem seus critérios, pois, ao final, “as minorias devem respeitar as maiorias”. Esse modelo facilita o domínio, ou seja, esses setores não são verdadeiramente democráticos, mas usam a democracia como uma falsa bandeira para manter privilégios e controlar os recursos de produção e reprodução da sociedade.
A quarta e última diferença está na ausência de reflexão sobre os pontos de partida. Enquanto as elites não consideram a historicidade do Estado, os setores sociais refletem sobre o processo histórico de construção do mesmo e das relações políticas dele derivadas, enfatizando como o Estado atual se origina na violência e na usurpação da riqueza coletiva. Portanto, as condições de participação não são igualitárias, pois alguns partem de uma situação de acumulação histórica fraudulenta, enquanto outros vivem na precariedade resultante do despojo.
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A democracia precisa assumir as diferenças de poder econômico e equilibrar essa relação desigual. Uma democracia que ignora tais diferenças apenas reforça a conservação do status quo e impede avanços rumo a uma verdadeira igualdade social.
Essa percepção de democracia, construída sobre o despojo, é, para os setores populares, um sequestro das instituições para legitimar a usurpação, impor marcos jurídicos alinhados às necessidades dos capitais internacionais e alternar governos encarregados de administrar o avanço do capitalismo predatório no país.
Fonte: Movimentos Sociais e Elites: Disputa em torno da democracia (2000-2021) Irala, Palau, Yuste y Zevaco. Base IS, Paraguai. Disponível em https://www.baseis.org.py/wp-content/uploads/2023/03/Movimientos-sociales-y-elites-Tapaweb-fusionado.pdf