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Foto: UNRWA / X

AirBnB, Booking, Santander: falta de leis blinda empresas que lucram com genocídio na Palestina

Ao fornecer financiamento, infraestrutura e logística na Palestina ocupada, empresas contribuem e são cúmplices das violações aos direitos humanos cometidas por Israel
Juan Hernández Zubizarreta, Pedro Ramiro
El Salto
Madri

Tradução:

Ana Corbisier

O erro invencível, sobre um fato que constitui infração penal, exclui a responsabilidade criminal. Assim diz o Código Penal, fazendo referência aos pressupostos de que um delito teria sido cometido da mesma maneira mesmo se tivessem sido aplicadas as normas da diligência exigível. Tem lugar quando o sujeito não tinha como saber que estava incorrendo em um ilícito penal e, por conseguinte, não se pode castigá-lo. O erro vencível, em troca, se dá quando se comete um delito que poderia ter sido evitado aplicando-se as mais elementares normas de cuidado; neste caso, condena-se o autor por imprudência e a pena a impor é atenuada.

Há empresas espanholas fazendo negócio com a construção de infraestruturas nos territórios ocupados da Palestina. Há plataformas empresariais que lucram com o turismo nos assentamentos ilegais na Cisjordânia. Há grandes bancos que estão financiando o fornecimento de armas ao Estado de Israel para que continue com o genocídio em Gaza. Quando ficou demonstrado que todas estas operações supõem uma flagrante violação do direito internacional, que responsabilidade pode ser exigida das empresas implicadas? Será que estas companhias podem alegar desconhecimento do contexto em que desenvolvem suas atividades? São suficientes seus processos internos de prevenção de riscos? Assumindo a tese do erro invencível, podem desentender-se de sua responsabilidade e atribuí-la ao Estado em que se encontra sua sede central? Ou, melhor, são estas empresas corresponsáveis por crimes internacionais?

Estas perguntas não são meras especulações teóricas ou hipóteses de trabalho de juristas e especialistas em direito penal. A responsabilidade das companhias e de seus dirigentes no cometimento de crimes internacionais, de fato, não é uma questão especialmente nova. Já nos processos de Nuremberg, assim como nos tribunais penais internacionais para a antiga Iugoslávia e Ruanda, estabeleceu-se a responsabilidade penal tanto das empresas transnacionais como de seus principais executivos. Na Alemanha, foram condenados por colaborar ativamente com o nazismo: o estatuto do tribunal de Nuremberg estabelecia que grupos e organizações podiam ser declarados criminosos e que fazer parte delas daria lugar a uma conduta delituosa. De fato, diferentes corporações alemãs, desde Volkswagen até Siemens, passando por BMW e Krupp, beneficiaram-se da ocupação nazista por meio da acumulação de propriedades e da exploração de prisioneiros de guerra.

Podem as empresas desentenderem-se de sua responsabilidade e atribuí-la ao Estado em que se encontra sua sede central? Ou, melhor, são estas empresas corresponsáveis por crimes internacionais?

Em relação ao que está acontecendo na Palestina, o procurador da Corte Penal Internacional pediu que sejam dadas ordens de detenção contra o chefe do Governo de Israel, Benjamin Netanyahu, e de seu ministro da Defesa, Yoav Galant, por crimes de guerra e de lesa humanidade relacionados à ocupação de Gaza. Quando se completou um ano do incremento da ofensiva militar sobre a maior prisão a céu aberto do mundo, trinta relatores das Nações Unidas denunciaram que Israel “está perpetrando um genocídio”, com “limpeza étnica e castigo coletivo”. O informe da relatora da ONU para a Palestina, apresentado em março e intitulado Anatomia de um genocídio, mostra todo tipo de evidências, ressaltando o bloqueio da ajuda e o contexto provocado de fome e doenças como prova de uma intenção.

O Instituto Lemkin para a Prevenção do Genocídio, que leva o nome do advogado judeu que precisamente criou este conceito jurídico, advertiu que estamos diante do desenvolvimento de um genocídio em Gaza. “Ainda que a ocupação tenha sido declarada ilegal inclusive pela Corte Internacional de Justiça, Israel continua agindo com brutalidade e os Estados continuam transferindo armas e comerciando com Israel. Isto vai contra as obrigações derivadas do direito internacional”, observou a relatora Francesca Albanese. Neste quadro, pode estabelecer-se alguma relação entre as atividades das empresas espanholas e a ocupação da Palestina? O que tem a ver seus negócios com o genocídio?

Até doze entidades financeiras espanholas, segundo documentou o Centro Delàs, financiaram as companhias que fornecem armamento e munições ao Estado de Israel. Santander, BBVA e Caixabank encabeçam a lista dos bancos espanhóis que mais créditos propiciaram e mais recursos investiram nas empresas que fabricam as armas que está utilizando o exército israelense. “Os bancos dizem que as fábricas, os investimentos e as produções não violam a lei”, indica Tica Font, mas o caso é que se pode exigir deles responsabilidades ao nível jurídico: as atividades financeiras legais deixam de ser legais quando se estabelece um vínculo causal com a violação dos direitos humanos. Tal como sustenta a Comissão Internacional de Juristas, “a responsabilidade penal de um banqueiro dependerá do que souber acerca de como serão utilizados seus serviços e empréstimos, e do grau em que estes serviços incidiram na prática no cometimento de um delito”.

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Até doze entidades financeiras espanholas, segundo o Centro Delàs, financiaram as companhias que fornecem armamento e munições ao Estado de Israel. Santander, BBVA e Caixabank encabeçam a lista

O Banco Santander e o BBVA, que entre os dois investiram mais de 4 bilhões de euros no negócio da banca armada, não podem alegar que se limitaram a cumprir as normas do país. O cumprimento do direito nacional não supõe nenhuma garantia de proteção frente à acusação de cometer crimes reconhecidos no direito internacional. Citando a Comissão Internacional de Juristas, “tanto no direito nacional como no internacional, quando uma empresa ou seus dirigentes ajudam a cometer um crime, se arriscam a ser considerados penalmente responsáveis, apesar de os autores principais poderem eludir o castigo”. De modo que os bancos que financiam as empresas que proporcionam armas ao exército israelense para cometer crimes de guerra, independentemente do que possa ocorrer com os processos abertos contra o Estado de Israel e seus mandatários, não podem ficar isentos de toda responsabilidade

Algo similar ocorre com a CAF, “uma empresa absolutamente estratégica para Euskadi”, nas palavras do conselheiro da Indústria do Governo basco, que “não só exerce um trabalho estimulante importante sobre outras empresas de seu entorno, como gera empregos e riqueza em todo o território e a nível internacional”. Efetivamente, não há dúvida quanto à relevância desta companhia no atual modelo econômico, tampouco quanto a sua participação na construção de linhas ferroviárias na Palestina ocupada supõe uma violação manifesta do direito internacional. O próprio Governo espanhol chegou a reconhecer isso, mas amparou-se na ausência de mecanismos de controle vinculantes a nível internacional para justificar sua inação sobre a questão.

Há cinco anos, o Comitê de Solidariedade com a Causa Árabe apresentou uma demanda contra a CAF ante o Ponto Nacional de Contato, um organismo dependente da OCDE que, no caso espanhol, está adscrito à Secretaria de Estado de Comércio. Em 2022, esta instituição — encarregada de responder às denúncias sociais pelos impactos das grandes corporações — emitiu um parecer em que reconhecia que as operações da companhia na Palestina violam o direito internacional. Ao mesmo tempo, o Ministério de Assuntos Exteriores constatou que o direito internacional humanitário é aplicação obrigatória nos territórios ocupados. Mas as duas instituições concordam que, com base na regulamentação atualmente existente, não parece haver nenhuma possibilidade de exigir responsabilidades à empresa por suas linhas de trem para conectar Jerusalém aos assentamentos de colonos na Palestina ocupada.

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Isso é justamente o que está em discussão: a responsabilidade das corporações transnacionais ao fazer negócios em contextos em que são violados sistematicamente os direitos humanos, para além da norma do país onde têm sua casa matriz. Porque uma e outra vez, há 50 anos, volta-se a constatar que não há mecanismos vinculantes nem instâncias de controle efetivas para obrigar as empresas transnacionais a cumprir o direito internacional quanto aos direitos humanos. Os organismos de soft law apenas servem para formular uma série de recomendações: no caso da CAF, o Ponto Nacional de Contato apelou à transparência, ao seguimento de procedimentos unilaterais e à realização de uma auditoria privada. Naturalmente, segundo o informe que a empresa encomendou na sequência a um “especialista independente” para examinar o impacto social do projeto nos territórios ocupados, “as atividades da CAF em Jerusalém apresentam um nível elevado de cumprimento dos principais padrões internacionais em matéria de responsabilidade social corporativa e sustentabilidade”.

O número de informes é arrasador, ou seja, não é possível desconhecer que todas estas companhias incorreram, direta ou indiretamente, na participação de crimes de lesa humanidade, genocídio e apartheid. Os bancos, as empresas e seus dirigentes estão contribuindo com violações específicas, manifestas e graves dos direitos humanos, independentemente da forma de autoria, indução, cumplicidade ou encobrimento. O financiamento da indústria militar e a consolidação da ocupação mediante a conexão dos assentamentos serve para facilitar, preparar e agravar os crimes contra a população palestina de maneira consciente e voluntária. Ainda que não o queiram, as empresas têm a obrigação de conhecer estes fatos, dada a quantidade de informação proveniente de múltiplas fontes, como Nações Unidas (sentenças, resoluções, autos, informes), meios de comunicação, organizações palestinas, ONGs internacionais e defensoras de direitos humanos. O volume de informação é tão esmagador que é impossível alegar desconhecimento.

O número de informes é estarrecedor e não é possível desconhecer que todas estas companhias incorreram, direta ou indiretamente, na participação de crimes de lesa humanidade, genocídio e apartheid em territórios palestinos

Em 2013, o Conselho de Direitos Humanos da ONU apresentou o informe de uma missão internacional independente para investigar as repercussões dos assentamentos de colonos israelenses nos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais do povo palestino. Três anos depois, a partir das conclusões daquela missão, as Nações Unidas aprovaram a resolução 31/36, pela qual deve-se atualizar anualmente a base de dados das empresas que operam nos territórios ocupados da Palestina. A primeira lista destas empresas foi publicada em 2020em 2023, foi feita uma atualização e depois, naquele ano, reviram-se os critérios para sua revisão. Entre as 112 companhias que lucram com a ocupação estão AirBnB, Booking, TripAdvisor e a espanhola Edreams. Apesar das reiteradas advertências de diferentes organizações e de que sua sócia israelense Saphir aparece, ocorre que a CAF não figura nessa base de dados. Estas resoluções da ONU evidenciam a fragilidade do direito internacional: enquanto se solicita a interrupção do início das operações do trem que une os assentamentos de colonos a Jerusalém, embora represente uma clara violação do direito internacional, “exorta-se as empresas a adotarem todas as medidas necessárias para cumprir os Princípios Diretores sobre Empresas e Direitos Humanos e demais leis e normas internacionais pertinentes com relação a suas atividades nos assentamentos israelenses no território palestino ocupado, a fim de evitar as consequências adversas destas atividades para os direitos humanos”. Mas não há instrumentos, órgãos ou instâncias capazes de tornar efetiva esta vontade.

Todas estas empresas mantêm uma relação direta com a ocupação ilegal e os crimes internacionais contra o povo palestino. E têm, portanto, uma responsabilidade por participar no cometimento de tais delitos. Seja proporcionando financiamento, infraestruturas ou ajuda logística, viram-se sujeitas a acusações de cumplicidade em violações manifestas dos direitos humanos porque supostamente proporcionaram ao autor principal os meios para levar a cabo os crimes. Além disso, dispunham de todo o conhecimento de que sua conduta podia ser definida como colaboração criminosa, mas não tomaram medidas suficientes para minimizar esse risco. E mais, continuaram ampliando seus negócios e não fizeram como outras empresas que abandonaram os territórios ocupados. Nem os grandes bancos espanhóis, nem a CAF, agiram com a diligência devida, e por isso não cabe falar de erro vencível. E, acompanhando a Comissão Internacional de Juristas, “a responsabilidade legal pode surgir não só por uma conduta que causa danos ativamente, como também por não fazer nada, isto é, por omissões ou por permanecer em silêncio”. 

A impunidade das grandes empresas em relação a todos estes crimes contrasta com o silêncio das instituições comunitárias e do Estado espanhol

Como bem escreveu Jordi Calvo, deve-se expor as empresas que lucram com o genocídio. O passo seguinte será exigir sua responsabilidade criminal. Devem responder por sua participação na violação de direitos humanos. E para isso há que buscar os resquícios na lex mercatoria, que blinda os direitos corporativos acima do cometimento de crimes internacionais. Toda esta arquitetura jurídica da impunidade continua sendo aperfeiçoada, como demonstram a recente aprovação da diretriz europeia que se constrói sobre a unilateralidade empresarial e a suspensão arbitrária do processo para estabelecer um tratado sobre transnacionais e direitos humanos na ONU. Mas a denúncia da África do Sul ante a Corte Internacional de Justiça abriu novas gretas no emaranhado genocida de Israel. A relatora das Nações Unidas para a Palestina, por sua vez, anunciou que seu próximo informe se centrará em investigar a participação das entidades privadas no cometimento de crimes internacionais no território palestino ocupado.

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A impunidade das grandes empresas em relação a todos estes crimes contrasta com o silêncio das instituições comunitárias e do Estado espanhol. Em escala estatal, além de comunicar aos operadores econômicos a obrigação de cumprir a norma espanhola e europeia sobre a etiquetagem dos produtos provenientes dos territórios ocupados, é preciso excluir as companhias implicadas na violação de direitos humanos da possibilidade de receberem subsídios e participarem de processos de licitação e compra pública. As administrações espanholas têm a responsabilidade de fazer cumprir as obrigações emanadas do direito internacional que exigem garantir que as empresas privadas respeitem os direitos humanos. Também há que assumir as consequências jurídicas que decorrem de tudo isso nas relações comerciais, com a suspensão do acordo UE-Israel e o embargo de armamento.

Quanto à responsabilidade civil, voltando à argumentação da Comissão Internacional de Juristas, “o mais provável é que o direito não considere que uma sociedade mercantil que fornece ou provê produtos ou serviços genéricos deveria ter previsto que devido ao uso indevido destes produtos haveria terceiros que seriam vítimas de violações manifestas dos direitos humanos”. Mas não parece que a venda de armas e a construção de infraestruturas possam ter outros usos senão aqueles para os quais foram projetadas: “Pode ser diferente se houve circunstâncias especiais ou quando a sociedade mercantil conhecia de fato o risco de causar este dano, ou podia ter sabido dele. Os fatos serão determinantes a este respeito, em especial com relação a qual era a relação da empresa com a vítima ou com o autor principal, e, também, será relevante o contexto em que teve lugar o fornecimento ou a prestação dos bens e serviços”.

Com relação à via penal, é preciso exigir responsabilidades dos dirigentes destas companhias ante a jurisdição universal por crimes internacionais que o Governo deveria exigir de ofício. Enquanto não existir nenhum foro internacional que tenha competência para julgar uma empresa como pessoa jurídica, aceita-se em geral que os dirigentes das empresas possam ser julgados por delitos estabelecidos no direito internacional. Recordemos de novo que, depois da Segunda Guerra Mundial, os dirigentes das empresas que contribuíram com delitos reconhecidos pelo direito internacional foram considerados penalmente responsáveis.

Não há erro invencível que valha. A corresponsabilidade das grandes corporações no cometimento de crimes internacionais ficou nítida. A dos aparatos estatais que as apoiam, via diplomacia econômica e orçamentos públicos, também. Olhar para o outro lado e escudar-se no comportamento de outros atores não exime empresas e Estados de sua própria responsabilidade. Cedo ou tarde terão que responder por isso.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Juan Hernández Zubizarreta
Pedro Ramiro

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