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Encontrei pela primeira vez Álvaro Lins em São Paulo, em l960. Tinha-lhe escrito quando ele era embaixador em Lisboa e concedera asilo ao general Humberto Delgado. A decisão, tomada sem consulta a Brasília, desagradou ao Governo de Juscelino Kubitschek e enfureceu Salazar.
Miguel Urbano Rodrigues*
A sua resposta à minha carta comoveu–me. A empatia, quando o abracei pela primeira vez, foi imediata. E evoluiu rapidamente para um sentimento de amizade.
Na época, eu divergia da linha da direção do PCP e era criticado pela sua organização no Brasil. Álvaro Lins não abordou o tema numa visita a São Paulo. No aeroporto, onde o acompanhei à despedida, cruzou-se com a comitiva do presidente e deu um encontrão em Juscelino. A ruptura entre ambos consumara-se pouco antes, quando, em artigo no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, criticara com dureza o apoio do governo brasileiro ao colonialismo português, ostensivo desde a nomeação para Lisboa do embaixador Negrão de Lima.
Em 1961, quando regressei da aventura do Santa Maria, devolvido a Salazar por Jânio Quadros, fiquei hospedado a convite de Álvaro Lins no seu apartamento das Laranjeiras, enquanto resolvia na cidade problemas ligados à instalação dos combatentes do Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação-DRIL, aos quais o governo brasileiro concedera asilo político.
A nossa amizade ganhou profundidade quando, no final de 1961, aderi ao PCP que adotara a estratégia do levantamento nacional, posteriormente condensada no Rumo à Vitória de Álvaro Cunhal. Lins felicitou-me com entusiasmo.
O assassínio de Humberto Delgado
Em l965, inesperadamente, recebi em São Paulo, um telefonema de Álvaro Lins, pedindo que me deslocasse ao Rio com urgência. No dia seguinte, -acompanhava-me Bidarra da Fonseca, camarada do Portugal Democrático- o embaixador sugeriu que tomássemos a iniciativa de comunicar ao mundo que Humberto Delgado fora presumivelmente assassinado.
Explicou-nos que na correspondência que mantivera com o general desde a sua saída do Brasil, Delgado lhe dissera que, se o contato cessasse de repente a partir de uma data que indicava, ele estaria certamente morto. Álvaro Lins cumpria o que lhe fora pedido.
Convocamos uma coletiva à imprensa na sede do Centro Republicano Português de São Paulo. E divulgamos a notícia, antecipando-nos às informações confusas da polícia de Franco.
Recordo o episódio para relembrar, desmentindo versões falsas amplamente difundidas, que foi através dos comunistas portugueses do Brasil que o mundo tomou conhecimento do assassínio do general Humberto Delgado pela PIDE.
Com Luiz Carlos Prestes
A amizade forjada com Álvaro Lins adquirira um caráter fraternal quando uma noite em sua casa me convidou para o acompanhar numa visita surpresa. Fomos visitar Luiz Carlos Prestes que vivia então em rigorosa clandestinidade.
Prestes, tal como Lins, sabia que eu, a pedido do PCB, me tornara (com autorização do PCP) militante também do Partido brasileiro e colaborava na sua imprensa.
Somente em l976 voltei a encontrar Prestes, desta vez em Lisboa, quando saudei a sua chegada com um editorial no Diário. Ele vinha participar num comício de solidariedade com os Povos da América Latina, no Campo Pequeno, com Rodney Arismendi do PC do Uruguai, Samuel Riquelme do PC do Chile, Antonio Maidana, do PC Paraguaio, e Álvaro Cunhal. No seu discurso fez uma referência amiga à minha participação nas lutas contra a ditadura brasileira.
O Escritor
Álvaro Lins foi um escritor notável, hoje quase esquecido. Destacou-se sobretudo como ensaísta e crítico literário.
Na época ele exerceu, juntamente com Otto Maria Carpeaux, a crítica literária com um desassombro incomum na intelligentsia brasileira. Insensíveis à pressões, não hesitavam em atacar com dureza a obra de monstros sagrados da literatura. Ambos assumiram essa responsabilidade -apenas um exemplo- em artigos demolidores de romances de Jorge Amado, então no auge da popularidade. Não lhe negavam talento, admiravam a sua imaginação prodigiosa e a capacidade de criar personagens que «revelavam» aos leitores o povo da Bahia, do coronel ao jagunço. Mas, para Álvaro Lins era imperdoável a leviandade de Jorge Amado no «tratamento da língua portuguesa».
Na apreciação dos meus modestos escritos, Álvaro Lins era de uma generosidade imerecida, inseparável da amizade. Em l967, quando publiquei o meu segundo livro, Opções da Revolução na América Latina*, ouvi dele palavras de estímulo que não esqueci.
Quando ia ao Rio, a embaixatriz Heloísa Lins, que me tratava como se fosse da família, fazia-me sentir em casa no seu apartamento.
Acompanhei de perto a doença rara, devastadora, que o destruiu rapidamente aos 58 anos, quando muito se podia esperar ainda dele como escritor e ensaísta.
Transcorridos 46 anos sobre a sua morte, recordar o amigo, o patriota, o cidadão exemplar, o intelectual revolucionário é para mim um dever.
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*Opções da Revolução na América Latina, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro 1968. O livro foi apreendido em 1969 por decisão do ministro Alfredo Buzaid. Felizmente, da edição de 5000 exemplares restavam somente 150.