Acordamos, naquela manhã, com a companheira Lenise que chegou, nervosíssima, e avisou: “O golpe! O golpe!” Estávamos na casa do Reinaldo e da Dora. Dia 11 de setembro de 1973. Tinha começado a segunda fase de terror da minha vida. Ligamos o rádio e ouvimos o discurso de despedida do presidente Allende.
Teve início implacável a perseguição e caça aos estrangeiros. Para não sermos presos, por segurança, saímos da casa do Reinaldo e da Dora e rumamos para à casa da Lilliam e do Jaime, onde, se supunha, todos estaríamos a salvo. Apartamento no Centro, calle San Martin perto da sede do Partido Socialista. Manhã cinzenta. Simulando naturalidade, saímos dois a dois, apressadamente devagar, caminhamos em meio aos tiroteios, ouvindo rajadas de metralhadora. Estrondos.
Lembro-me com se fosse hoje e entristeço-me. Nunca mais vi a solidária e querida companheira Dora. Ela e o Reinaldo refugiaram-se na embaixada do México, em Santiago. Em 1º de junho de 1976, ela se suicidou em Berlim. No dia seguinte ao golpe, 12 de setembro, fomos presos todos da casa. Éramos sete brasileiros, estrangeiros naquele país aviltado pela sanha que patrocinava a subversão da ordem constitucional e tomada de poder por militares raivosos.
Junto com dezenas de objetos úteis e inúteis, como cigarros, dinheiro, relógio de pulso, utensílios de cozinha e tubos de tinta óleo, meu passaporte foi surrupiado pelo pelotão de carabineiros que invadiu a casa, armados até os dentes.
— Manos arriba! Manos arriba! Manos arriba!
Depois de uma simulação de fuzilamento no terraço do prédio, trouxeram as três mulheres para o apartamento, onde houve tentativa de estupro. Os homens foram capturados e levados ninguém sabia para onde. Violência. Terror.
Nós, três meninas, duas irmãs e eu cunhada, empurradas pelos carabineiros até a porta do apartamento. Acho que a porta tinha batido. Não tínhamos a chave para entrar. O Capitão Gallardo, chefe dos policiais, mete a mão no bolso, puxa um volumoso molho de chaves e experimenta uma a uma. Logo encontra uma chave que abre aquela porta, para nosso espanto! Terror. Terror com muitos erres.
Lilliam, Leyla e Eli. Sós. Sem SOS. Aprendi, naquele dia 12, o verdadeiro significado da expressão “tremer de medo”. O corpo todo treme, especialmente as pernas. Para manter-se em pé, ou para disfarçar tal constrangimento, a solução é encostar ou apoiar uma parte do corpo na parede, caso seja possível.
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Dias depois, fizemos várias tentativas de entrar em alguma embaixada. Vãs. As embaixadas estavam cercadas de policiais. A companheira Nazareth nos levou à Cruz Vermelha chilena. Eu ganhei um papel, que conservo até hoje, que equivaleria a uma identidade, onde constava que estava sob a proteção da instituição que chamávamos “Cruz Roxa”, em castelhano Cruz Roja. Todo tempo barulho de tiros, rajadas, bombas. Tanques nas ruas.
Soubemos, mais tarde, que os meninos tinham sido levados para o Estádio do Chile e, posteriormente, para o Estádio Nacional. Não havia certeza de nada. Somente sabíamos que nesse Estádio havia grande concentração dos presos que haviam sido sequestrados em Santiago.
Reprodução
Eliete Ferrer durante manifestação contra Bolsonaro no Rio de Janeiro
Consultei centenas de listas pregadas nos portões do Estádio Nacional, praticamente cercado por carabineiros e soldados. Jamais encontrei os nomes dos nossos queridos nas várias vezes que estivemos na porta daquele Estádio. Centenas de pessoas procuravam familiares e amigos, não obstante a apreensão e o medo.
Levamos roupas, comida, escovas de dente e sei lá mais o quê. Entregamos esses objetos às mulheres da Cruz Vermelha. Eles nunca receberam tais provisões. Estrondos. Rajadas. Não tínhamos quaisquer notícias dos que, supostamente, estavam presos. Estariam, realmente, presos? Onde? Estavam vivos? Olhos arregalados. Tinha muito medo de ir lá, no Estádio, pois não tinha documentos, já que os carabineiros levaram meu passaporte. Portava aquele papel da Cruz Vermelha que, na realidade, não valeria nada, naquelas circunstâncias.
Eu era alta, esguia, morena — não tinha aparência chilena. Nas ruas, patrulhas revistavam qualquer um. Estampidos. Na embaixada do Brasil, em Santiago, quando pedi ajuda, fui tratada como um bicho com doença contagiosa. Assim que houve abertura do aeroporto, chegaram, para nossa salvação afetiva, o Simões, pai de Lilliam e do Reinaldo e os pais do Jaime. O Simões é e sempre será meu grande amigo-sogro.
Em 1968, casei-me, pela primeira vez, com o filho mais velho dele e da Margot, eterna sempre amiga — e sogra segundo as regras do Direito Civil. O casamento foi cedo “para as picas”, mas a amizade com os familiares é perene. A minha amizade com a Margot constituiu extraordinário capítulo à parte na minha vida —
hors-concours. Desde que a conheci, até seus últimos dias na face da terra, fomos grandes amigas.Levadas pelo Simões, transferimo-nos para um hotel, apavoradas por estar naquele local, cuja porta poderia ser aberta com o molho de chaves do chefe do grupo de carabineiros que tinha invadido o apartamento. Certo dia, de táxi, fui, outra vez, até os portões do Estádio Nacional para consultar as famigeradas listas. Perigo. No caminho, entreguei um papel ao motorista, quando nos aproximamos de uma das várias patrulhas que allanavan, revistavam veículos.
No papel, escrevi meu nome e o nome do hotel onde estávamos. Pedi que ele avisasse o Simões, caso eu fosse levada pelos policiais. Nunca achei o nome do Luiz Carlos Guimarães nas listas. Risco. Desespero. Coração na boca. Nosso carro não foi parado. Tiros.
No dia 29 de setembro, creio, entramos eu e a Lilliam em Padre Hurtado, convento que se tornou um dos refúgios, “meio” protegidos pela ONU, isto é, pelo ACNUR, Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, abertos em Santiago. Meu queridíssimo Simões, protetor, eterno sogro-amigo, nos acompanhou até lá. Saudade. Medo. Angústia. Ansiedade.
A Leyla voltou para o Brasil com o Simões. Depois que chegou, foi presa, em casa, no Rio.
A primeira pessoa que encontrei em Padre Hurtado foi o Érik, hoje Castor, sempre Roberto. Era amigo de muito, muito antes. Procurado pela polícia política, com seu retrato em cartazes espalhados pelo Brasil inteiro, às vezes, escondia-se lá em casa, no Rio. Saía sem ser visto. Dormia com o revólver ao lado do travesseiro. Sempre gostei muito dele. Adorei vê-lo. Seu rosto, um acolhimento naquele momento apreensivo, inferno futuro indeterminado. Os carabineiros podiam invadir a qualquer momento aquele lugar. Rajadas. Tiros.
Depois do Chile, de Padre Hurtado, nunca mais tive prisão de ventre.
Éramos muitos, estrangeiros de todas as nacionalidades — brasileiros, uruguaios, argentinos, bolivianos, paraguaios, costarriquenhos, etc. Alguns chilenos clandestinos também. Quase quinhentos éramos. De todas as idades, jovens, homens, mulheres, crianças e idosos. Muitas crianças e alguns nenenzinhos ainda de colo. Não havia, que eu lembre, nenhum europeu. Os cidadãos de países europeus foram protegidos pelas suas representações diplomáticas.
Dormíamos sob aquelas rajadas de metralhadoras que não acabavam mais. Terror. Eu e a Lilliam dividíamos um quarto. Muita gente que eu pouco conhecia. Desconfiança generalizada. Todos ou quase todos desmontamos as maçanetas das portas, que não tinham chave. Trazíamos conosco, sempre, a maçaneta do nosso próprio quarto. Todos. As maçanetas, iguais, cabiam em todos os quartos. Estrondos. Aquilo era um circo maluco ou um jardim zoológico. Em Padre Hurtado, eu vomitava quase todos os dias, no final da tarde.
Monsieur Lehnan (não tenho certeza se é esse seu nome), representante da Cruz Vermelha Internacional ou do ACNUR — Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, suíço casado com brasileira, aparecia para nos visitar, com informes. Certa vez, ele chega ao refúgio com notícias do Estádio Nacional. Todos o cercam ávidos por informações. No meio da fala, ele abre a pasta e tira um livrinho. “Eu trago uma coisa que me deu um brasileiro no Estádio Nacional”, ele diz. “Quem é Eliete?” Pergunta, em seguida. Dei um passo à frente e disse: “Sou eu”. Ele abriu o passaporte, olhou meu rosto e me deu o documento. Caraca! Surpresa, emocionada, eu o abracei e dei-lhe um beijo no rosto, assim… Ele ficou vermelho, porque era um cara, realmente, muito branco, cabelo avermelhado, ruivo. Ficou vermelho, vermelho, como um camarão. “O senhor me desculpe, mas eu fiquei tão radiante!” Chorei para caralho.
Sempre tive vontade de encontrá-lo outra vez. Eternamente lembrarei daquele rosto rubro olhos azuis que trouxeram de volta minha pretensa identidade brasileira
.Parte do relato Passaporte para o Mundo de Eliete Ferrer , no livro 68 a geração que queria mudar o mundo relatos. O livro completo está disponível aqui.
* Eliete Ferrer é Professora, nasceu em 1947 no Rio de Janeiro. Em 1968, participou do Movimiento Estudantil quando cursava História, na UERJ. Ligou-se à ALN. Exilou-se no Chile e na Suécia onde atuou em diversas iniciativas de divulgação da cultura brasileira. Militante de Direitos Humanos, fundadora e moderadora do Grupo Os Amigos de 68 e organizadora do livro 68 a geração que queria mudar o mundo relatos, publicado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Colaboradora de Diálogos do Sul.
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