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O retorno da doutrina Monroe e do big stick: Ensaio do trumpismo na Venezuela

Na garupa do trumpismo abandonamos o compromisso com a solidariedade, esquecidos de que o que vale, hoje, para a Venezuela, valerá também para nós
Roberto Amaral

Tradução:

Seria bom nossa diplomacia lembrar que o trumpismo que vale hoje para a Venezuela, amanhã valerá para nós

Eis o principal legado do quase primeiro mês de bolsonarismo: abandonamos o posto e a responsabilidade de liderança regional para cumprir o papel de coadjuvantes da política ditada pelos interesses e conveniências da estratégia de guerra dos EUA de Donald Trump, voltados, agora mais consistentemente, para o Atlântico Sul e a América do Sul, aproveitando, até, o vácuo deixado pelo Brasil.

Por força de sua história e de sua liderança, o Brasil se havia destacado por alimentar o espírito integracionista e esta foi a maior proeza, e também a atitude mais arriscada de nossa política externa, desdenhada nos breves dias do novo governo.

Na contramão de nossa história, o Brasil oficial, mesquinho, renúncia a esse papel para assumir o de reles capitão-do-mato do pior da pior política estadunidense, servindo-lhe de instrumento para a agressão à Venezuela, o alvo da vez.

Na garupa do trumpismo abandonamos o compromisso com a solidariedade, esquecidos de que o que vale, hoje, para a Venezuela, valerá também para nós

Wikimedia Commons
As ameaças que pesam sobre a Venezuela não têm amparo no Direito Internacional, na Carta da ONU, nem na Carta da OEA

Na garupa do trumpismo – que retoma grotescamente a doutrina Monroe e a política do big stick – abandonamos, contra nossos interesses, o compromisso com a solidariedade continental, insensatamente esquecidos de que o que vale, hoje, para a Venezuela, seus recursos e seu processo político, valerá também para nós, hoje e amanhã.

O preço maior dessa violência, poderá ser a guerra civil em sub-região estratégica para a segurança coletiva e para nossa própria segurança. Fala-se mesmo em balcanização e em guerra interestatal!

A expectativa de caos é o outro lado da até aqui bem sucedida desestabilização dos regimes progressistas da região (já se foram Brasil, Argentina e Equador), objetivo do Departamento de Estado dos EUA, revivendo os tempos da Guerra Fria, desta feita sem a alegada ameaça da URSS. Mas, quando não se tem inimigos de fato, cria-se.

Se o intervencionismo dos EUA antes contou com nossa resistência, hoje dispõe de nossa diplomacia e de nossas tropas, como delas já dispuseram em 1965 para consolidar a invasão da pobre e pequena e sofredora República Dominicana, que ousara eleger um presidente (Juan Bosch), acusado de nacionalista, isto é, comprometido com os interesses de seu país e de seu povo…

Assim, mas não de forma surpreendente, pois o capitão já disse a que veio, em pouco menos de um mês toda a história da diplomacia brasileira, de Rio Branco a Celso Amorim-Samuel Pinheiro Guimarães, foi jogada na lata do lixo, e a política ativa e altiva do ministro de Lula é substituída pelo acocoramento ideológico, uma subalternidade sabuja, que chega às raias da dependência psicológica, aquele sentimento de inferioridade introjetado pelo colonizado eternizando o domínio do senhor, a cujos interesses e valores mais se submete quanto mais apanha, pois a humilhação transforma-se numa necessidade de sua índole deformada.

Brevemente nosso chanceler (seja o Policarpo Quaresma de hoje, seja seu eventual substituto) voltará a tirar os sapatos para passar pela alfândega dos EUA. Hoje sabemos que o lamentável gesto de Celso Lafer, carregado de simbologia, antecipava, por décadas, a que ponto de alienação pode chegar um governo de arrivistas cuja política externa abandonou a ‘ideologia’ da independência em busca de soberania, pela ‘desideologia’ da renúncia ao interesse nacional.

As ameaças que pesam sobre a Venezuela (de que é mesmo de que ela é acusada, para justificar tanto ódio?) não têm amparo no Direito Internacional, na Carta da ONU, nem na Carta da OEA, cujo artigo 15 nos diz: “Nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir, direta ou indiretamente, seja qual for o motivo, nos assuntos internos ou externos de qualquer outro”.

Na mesma linha vem o comando da Constituição brasileira (art.4º): “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não-intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político.”

E no entanto nosso país, pelas mãos do bolsonarismo, essa doença tacanha que nos aflige, rasga a Constituição e apoia a política intervencionista de Donald Trump!

Qual o pretexto (pois razão não há) para o garrote vil que é o cerco imposto, há décadas, pelos EUA e seus aliados ao país vizinho? O pretexto é a suposta “ilegitimidade” do governo Maduro, um falso problema que não leva os EUA a intervir em países onde não têm interesses, ou onde seus interesses estão devidamente atendidos.

Qual a base política ou jurídica para decretar essa ilegitimidade?

Maduro foi eleito em 2018 em pleito acompanhado por jornalistas e observadores e organismos internacionais, do qual participaram 16 partidos políticos. Concorreu com cinco adversários, e obteve 67,85% dos votos. A oposição, que negociara a antecipação das eleições de dezembro para maio, dividiu-se na disputa eleitoral e perdeu, mais uma vez.

A propósito, Maduro, ao contrário de Trump, teve mais votos do que seu concorrente.

Qual o malabarismo jurídico para a decisão de Trump, seguido pelo Brasil e outros satélites de sua política externa, de exigir a renúncia de um presidente de um país independente? A questão democrática? Ora, nessa hipótese ninguém pode apostar, afora os néscios e os muito sabidos.

Qual a autoridade moral de que podem se revestir neste tocante os EUA, histórico sustentáculo de todas as ditaduras modernas, seja na África, seja na Europa, seja na Ásia (uma só menção, o Vietnã do Norte), no Oriente Médio (exemplo, a Arábia Saudita)? Que autoridade tem esse país para falar em democracia entre nós, se aqui amparou (e delas muito usufruiu) as ditaduras de Batista (Cuba), Somoza (Nicarágua), Trujillo (República Dominicana), Stroessner (Paraguai) e todos os sátrapas venezuelanos até a ascensão de Chávez que tentou depor na tentativa, frustrada, de golpe que patrocinou em 2002? EUA que apoiaram a implantação das luciferinas ditaduras militares do Brasil, da Argentina, do Chile e do Uruguai, e o regime tão perverso quanto corrupto de Fujimori, no Peru? Invadiu Granada e com as tropas brasileiras (Castello Branco) destroçou a democracia dominicana?

Em socorro dessa política intervencionista corre a União Europeia, mãe de Salazar, Franco, Mussolini e Hitler, cúmplice do stalinismo e sócia dos coronéis que sufocaram a Grécia nos anos 1967-1974.

O que essa UE nos tem a dizer dos regimes protofascistas na Polônia e na Hungria? Nada? Não lhes vai dar prazo de oito dias para se converterem à democracia? Mas caberia questionar: o ultimato prepotente seria um modo adequado, aceitável, de encaminhar solução para o Brexit, para a autonomia da Catalunha, para a crise dos “coletes-amarelos”, ou ainda para o impasse entre democratas e republicanos que paralisou o governo dos EUA por vários dias, causando sofrimento e prejuízos de monta?

Por que a União Europeia não deu prazo a Putin para devolver a Crimeia? Ou à China para entregar o Tibete ao Dalai-Lama? Por que não dedicar um pouco desse furor democrático para encerrar os dias do regime de Rodrigo Duterte nas Filipinas?

O governo Maduro é passível de críticas e os caminhos da revolução bolivariana podem e devem ser discutidos.

Mas, quando se fala em sua crise a grande imprensa omite as tentativas de inviabilização econômica da Venezuela, vítima de perversa “guerra econômica”. A hiperinflação venezuelana é induzida e sua capacidade de importação é inviabilizada pelo sufoco cambial. Seus ativos estão sendo sequestrados por europeus e pelos EUA que acabam de bloquear recursos da PDVSA, devidos pelo fornecimento de petróleo ao império, que também bloqueou seus bens. Qual é o nome disso? Pirataria? A proeza de Maduro é mesmo a de sobreviver, em que pese esse terrível boicote, que, atingindo o governo, mais penaliza os venezuelanos pobres.

Ao lado de muitos acertos – e como esquecer os esforços do chavismo visando a atender às gritantes demandas sociais! – muitos erros, sem dúvida, podem ser apontados. Mas não é nada disso o que está em jogo, bem longe passam as convicções democráticas e as preocupações com o povo venezuelano. Todo o mundo sabe disso, desde aquela senhora que viu Cristo dependurado em um galho de goiabeira até o irrequieto general Mourão, para quem o único erro dos golpistas de 2002 foi não haverem assassinado Chávez, quando o prenderam.

O que está na ordem do dia é a falsa disputa Ocidente versus Oriente inventada pelo Pentágono, que, na verdade, é a explicitação da disputa (real) entre o cansaço econômico dos EUA e a emergência da China como potência que lhe pode fazer face e que precisa ser afastada antes de se tornar uma ameaça militar, com a aliança nuclear oferecida pela Rússia.

O que está em jogo é o papel do Atlântico Sul no conflito programado, e, nele, o da América do Sul e nela, por sua vez, o destino da maior reserva de petróleo do mundo, que, para azar seu, está nos campos da Venezuela.

Não pensem os democratas brasileiros sinceros que terão vida fácil se o golpe contra Maduro for bem-sucedido.

Duplo retrato – A tragédia de Brumadinho ilustra, como resultado exemplar, a conjunção siamesa do privatismo depravado com a perversidade do capitalismo.

*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
http://ramaral.mailrelay-ii.com/newslink/3305856/276.html
Leia mais em: www.ramaral.org http://www.ramaral.org

Não deixe de assistir o programa especial da Tv Diálogos do Sul sobre a tentativa de golpe na Venezuela:


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Roberto Amaral

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