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Pressão estrangeira comandada pelos EUA coloca a Venezuela numa encruzilhada

Sem dúvida, a queda do preço do petróleo causou uma perda de receitas para o Estado venezuelano, mas apenas isso não explica a crise que o país enfrenta
Tiago Salgado
Le Monde Diplomatique
São Paulo (SP)

Tradução:

No dia 23 de janeiro de 2019, o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Juan Guaidó, se declarou presidente interino do país diante de uma multidão que lotava as ruas de Caracas e se mobilizava contra Nicolás Maduro – presidente eleito em 2018, escolhido por Hugo Chávez como seu sucessor quando já adoecia em função de um câncer que o vitimou em 2013. A posse de Guaidó foi prontamente reconhecida pelo governo dos Estados Unidos e seguido pelos presidentes de outros países da região, em particular o Brasil. Em contrapartida, Rússia e China declaram apoio a Maduro, assim como as Forças Militares venezuelanas, que se declaram fiéis ao presidente.

A instabilidade política se coaduna com a dramática crise social e econômica enfrentada pelos venezuelanos, que, além das questões internas, enfrentam a oposição pública do governo dos Estados Unidos, de grande parte da grande mídia e de seus vizinhos latino-americanos, os quais elegeram governos de direita alinhados ao neoliberalismo preconizado por Washington. A crise parece sem solução, e uma guerra ou uma intervenção militar estrangeira já não podem ser consideradas alternativas improváveis.

Sem dúvida, a queda do preço do petróleo causou uma perda de receitas para o Estado venezuelano, mas apenas isso não explica a crise que o país enfrenta

Imagem por EPA / Miguel Gutierrez
O presidente da Venezuela Nícolas Maduro

Forças sociais internas

Para se entender como a situação da Venezuela chegou até aqui é necessário fazer uma breve retrospectiva sobre a história recente do país, uma vez que, apesar de compartilhar aspectos em comum com outros países da América Latina, as particularidades venezuelanas são fundamentais e, muitas vezes, esquecidas por “especialistas” que ocupam espaços nas grandes mídias.

Para começar, o chavismo não é uma manifestação do velho populismo latino-americano. Por mais que Chávez tenha sido um líder carismático, com capacidade de mover e mobilizar boa parte da sociedade, a Venezuela chavista não era uma sociedade que buscava se modernizar e se industrializar como acontecia durante o período populista latino-americano, em especial durante os anos de 1950-1960. Pelo contrário, Chávez assumiu o poder político em um país fortemente industrializado e urbanizado, com uma parca produção agrícola e totalmente articulado ao sistema de produção e circulação capitalista.

A modernização venezuelana se deu durante o período conhecido como “Pacto de Punto Fijo”, quando dois partidos, a Acción Democratica e a Copei, articularam um modelo democrático que garantia o rodízio entre as duas forças políticas no domínio do Estado venezuelano. O Punto Fijo vigorou entre 1958 e 1998, período que vai desde o fim da última ditadura militar no país até a eleição de Hugo Chávez. Nesse intervalo, o modelo de conciliação de classe, que estava aliado à repressão contra movimentos sociais, partidos de esquerda e sindicatos, ruiu após a instalação de pacotes de reformas neoliberais que atingiram em cheio a população e acarretou o Caracazo, em 1989 – um movimento espontâneo que tomou as ruas das principais cidades venezuelanas e feriu de morte a então organização política.

Portanto, Hugo Chávez aparece na cena política venezuelana em um contexto de caos social: primeiro com uma tentativa frustrada de golpe militar em 1992 e, posteriormente, como candidato às eleições em 1998, quando foi eleito com uma proposta de refundar a República e substituir os antigos partidos políticos – que congregavam a oligarquia venezuelana, a qual controlava o Estado e atuava em função de seus próprios interesses. Em suma, Chávez propunha reorientar a relação entre o Estado e a sociedade na Venezuela.

Para tal, o governo bolivariano passou a ter mais controle sobre o principal produto da economia venezuelana: o petróleo. Com uma maior taxação dos royalties cobrados para a exploração do óleo nacional, aumentou-se a arrecadação pública, que foi, em partes, destinada a programas sociais que visavam melhorar as condições de saúde, educação, alimentação e moradia dos trabalhadores. Esses programas ficaram conhecidos como Missões e foram responsáveis pelo sucesso da Revolução Bolivariana, uma vez que reduziram drasticamente a pobreza e a desigualdade social no país.

Entre 2002 e 2010, a pobreza caiu de 48,6% para 27,8%, e 21,2% em 2012. Já a extrema pobreza caiu de 22,2% em 2002 para 6,5% em 2012. O coeficiente Gini, que mede o grau de concentração de renda, foi o mais baixo da América do Sul, atingindo a marca de 0,394. O desemprego caiu de 14,6%, em 1999, para 6,4%, em 2012, assim como as taxas de mortalidade infantil e desnutrição, enquanto o número de matrículas em todos os níveis de educação subiram de forma acentuada, assim como o acesso à aposentadoria (dos SANTOS, 2016, p.191-192)[1].

No entanto, a mudança da diretriz política adotada pelo governo de Chávez provocou uma forte oposição de setores da sociedade venezuelana. A antiga oligarquia, que perdera o controle do Estado, prontamente se colocou de forma contrária ao novo governo e passou a se articular para derrubá-lo por meio de um golpe militar que, com o apoio dos Estados Unidos, foi levado a cabo em 2002; entretanto acabou fracassado. No ambiente de polarização que marcou o fracasso do golpe, a oposição também colocou em prática um locaute petroleiro, o que prejudicou a economia nacional e provocou a disparada de um dispositivo legal, em 2004, referendo revocatório para tentar interromper o mandato de Chávez. Todas as tentativas falharam, e o presidente saiu dessas disputas fortalecido e com forte apoio popular.

Forças internacionais

Atualmente, a Venezuela possui as maiores reservas de petróleo do mundo, tornando-a peça fundamental no tabuleiro geopolítico e explicando, em grande medida, o interesse dos Estados Unidos e de outras potências, como Rússia e China, no país. Historicamente, os norte-americanos são os principais parceiros econômicos venezuelanos, em uma relação que remonta ao início do século XX e que se aprofundou durante o período puntofujista. Enquanto os Estados Unidos passavam por um intenso processo de industrialização e necessitavam de fonte energética, a Venezuela, que possui o petróleo, precisava de produtos industrializados. Essa interdependência se tornou clara durante o governo Chávez, que mesmo com sérias rusgas com o governo de George W. Bush, não interrompeu o comércio com os Estados Unidos.

Mesmo com a histórica relação comercial entre os países, o constante envolvimento dos Estados Unidos nas tentativas de desestabilizar o governo venezuelano, juntamente com o ideário bolivariano resgatado por Chávez e a existência de um contexto regional favorável, levou a Venezuela a buscar reorganizar o tabuleiro geopolítico latino-americano, com a criação de instituições como a Unasul, do fortalecimento do Mercosul e a aproximação com a China e a Rússia.

Por mais que os negócios estadunidenses na Venezuela não corressem risco real, essa competição intercapitalista no hemisfério americano era considerada uma grande ameaça aos interesses imperialistas de Washington, que, então, intensificou ações conjuntas com membros da oposição venezuelana. Por outro lado, a entrada de capitais chineses e russos garantia sobrevida ao chavismo mesmo após a morte de Chávez e a radicalização da crise após 2014.

A crise

Após a morte de Chávez em 2013, o seu escolhido como sucessor, Nicolás Maduro, venceu as eleições contra Henrique Capriles por uma margem mínima de votos.

O principal disparador da crise pela qual passa a Venezuela, mas obviamente não a única causa, foi o colapso dos preços do petróleo. Enquanto em 2013 o preço médio do óleo venezuelano foi de US$ 100 por barril, em 2014 baixou a US$ 88,42; e a US$ 44,65 em 2015. Chegou a seu nível mais baixo em fevereiro de 2016, com um preço de US$ 24,25.[2]

Sem dúvida, a queda do preço do petróleo causou uma perda de receitas para o Estado venezuelano, mas apenas isso não explica a crise que o país enfrenta, já que o governo de Maduro tomou medidas que, além de não atacar a gênese do problema, acabaram por agravar ainda mais a situação no país. Como bem coloca Temir Porras Ponceleón,[3] ex-assessor de Chávez, as políticas econômicas adotadas pelo governo Maduro, como a gestão do câmbio, a persistência no pagamento das dívidas e a dependência de capitais estrangeiros, em especial chineses e russos, mergulharam ainda mais o país no caos social, político e econômico que se encontra atualmente.

Para o sociólogo Edgardo Lander, o problema venezuelano reside na sua própria riqueza, na dependência do petróleo. Para ele, o fracasso de Chávez e Maduro em conseguir ultrapassar a matriz de exploração petrolífera resulta na permanência de desequilíbrios que impedem o desenvolvimento autônomo venezuelano, ou seja, enquanto a matriz econômica do país não se diversificar, a dependência e a sujeição a interesses alheios aos nacionais vão continuar sendo uma máxima na história do país.

Soma-se a tais fatos a pressão estrangeira, principalmente dos Estados Unidos, que aumentaram as sanções contra a Venezuela, o que afasta investidores e pressiona instituições financeiras a não negociar com o país. Esse contexto, juntamente à mudança política que a América Latina enfrenta nos últimos anos, com a chegada da direita ao poder, tem consequências dramáticas em um país assolado pelo desabastecimento, hiperinflação e violência social.

Desde então, a situação política se radicalizou: houve um aumento de ações violentas por parte da oposição, lideradas em grande medida por Leopoldo Lopez, que convocava as guarimbas, juntamente com Antonio Ledezma e Maria Corino Machado, que causaram mais de quarenta mortes em 2014. Os agentes do Estado reprimiram as manifestações, o que causou ainda mais violência, mergulhando o país numa espiral caótica de instabilidade social, política e econômica.

Com a intenção de articular uma resolução pacífica para a crise, em 2016, foi convocado um processo de diálogo entre a oposição e o governo Maduro, organizado pelo ex-primeiro-ministro espanhol José Luis Rodriguez Zapatero, o ex-presidente da República Dominicana Leonel Fernandez e o ex-presidente do Panamá, Martin Torrijos. Esse processo, em janeiro de 2018, levou à elaboração de um acordo sobre a convocação de uma eleição presidencial antecipada e suas garantias eleitorais. No entanto, quando o documento estava pronto para ser assinado, a oposição recuou e se recusou a reconhecer o acordo.

Em suma, a crise venezuelana pode ser entendida sob três perspectivas: a primeira delas é o fracasso do governo Maduro em lidar com a queda do preço do petróleo e de propor medidas que conseguissem, ao menos, evitar o desabastecimento e a hiperinflação; a segunda é a radicalização política que inviabiliza qualquer tratativa de diálogo entre as partes, em particular, em função da posição violenta e antidemocrática de setores da oposição; a terceira é a conjuntura internacional, que coloca a Venezuela cercada por países governados por forças de direita e sujeita à cobiça estadunidense em relação às maiores reservas de petróleo do mundo. A autoproclamação de Guaidó como presidente venezuelano e o não reconhecimento da vitória eleitoral de Maduro em 2018 são mais um capítulo do drama vivido pelos venezuelanos.

A Revolução Bolivariana iniciada por Chávez, que prometia a construção de uma democracia participativa e protagónica parece ter se esgotado. Ainda existe a possibilidade de diálogo e de que o governo adote reformas econômicas que visem racionalizar a economia, como apontou o economista Mark Weisbrot,[4] através de uma nova política cambial e de renegociação de suas dívidas. No entanto, as sanções dos Estados Unidos e de instituições internacionais contra o governo venezuelano tornam essa solução pouco provável.

Entre as alternativas que aparecem no horizonte, sem dúvida a mais desastrosa seria uma intervenção militar estrangeira, seja ela direta ou sob o corolário da intervenção humanitária. Tal medida radicalizaria a crise social e a violência, levando o país e a própria América Latina a uma situação de agravamento da situação social. Outra opção terrível seria o acirramento da violência interna, com o início de conflitos entre as forças governistas e opositoras. A saída menos prejudicial seria a convocação de eleições e a elaboração de um plano de reformas políticas e econômicas que contasse com a participação de membros da oposição e do governo comprometidos com a construção de uma saída pacífica e democrática da crise.

O maior desafio para os defensores das mudanças sociais iniciadas por Chávez é fazer entender que a crise do governo Maduro não representa a impossibilidade da transformação social; ou seja, não deixar que a mercantilização total das relações humanas, propostas pelo neoliberalismo, e a sujeição aos interesses imperialistas dos Estados Unidos sejam vistas como naturais, como a única saída para as crises latino-americanas. Afinal, nosso continente conhece as nefastas consequências da agenda neoliberal.

 

*Tiago Salgado é mestre em História pela PUC-SP, doutorando em História pela PUC-SP e membro do Centro de Estudos de História da América Latina (CEHAL).

Referências:

[1] SANTOS, Fabio Luís Barbosa; BARBOSA, L. Além do PT. A crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana. São Paulo: Elefante, 2016.

[2] LANDER, Edgardo. A maldição extrativista, Outras Palavras, 2016.

[3] PONCELEÓN, Temir. A Venezuela precisa sair do impasse, Ler Monde Diplomatique Brasil, nov. 2018.

[4] WEISBROT, Mark. Uma possível alternativa, Outras Palavras, 2016.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Tiago Salgado

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