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Haiti resiste à forte crise sistêmica profundamente impopular e desigual

"As pessoas coincidem com algumas consignas, mas manifestam sua indignação e rechaço a um sistema, não só a um presidente”
Anelí Ruiz García
Prensa Latina
Porto Príncipe

Tradução:

Setembro concluiu no Haiti como um coquetel molotov a ponto de explodir, de ira, desesperança e luta depois de quase cinco semanas de crise de combustível, às que se somaram outras três de intensos protestos contra o governo. 

A explosão social que em julho de 2018 começou a abalar os alicerces de um sistema profundamente impopular e desigual, aguçou-se em meados deste ano, com centenas de milhares de haitianos que reiteradamente saem às ruas. 

Entre suas demandas figura a renúncia do presidente Jovenel Moise que asseguram que simboliza um sistema neocolonial e neoliberal, que mantém os índices de desenvolvimento socioeconômico mais baixos da região.

“As pessoas coincidem com algumas consignas, mas manifestam sua indignação e rechaço a um sistema, não só a um presidente”, disse a Prensa Latina Camille Chalmers, veterano lutador dos movimentos sociais no Haiti. 

O também acadêmico e economista assinalou que atualmente a nação caribenha vive uma crise muito profunda, econômica, política, energética, caracterizada por uma luta entre quase todo o povo e um governo e uma pequena oligarquia apoiados pelo governo norte-americano, “que tem  demostrado sua incapacidade para governar o país”.

Protestos antigovernamentais

Haiti iniciou sua quarta semana consecutiva de fortes protestos antigovernamentais, que torna a chamar a atenção das grandes cadeias de notícias.

Desde o dia 16 de setembro foram paralisadas as principais atividades econômicas, educativas, serviços de saúde, administração pública, transporte, comércio e outras, enquanto se radicalizava a luta de setores opositores contra o poder imperante.

“É vital para o povo haitiano ganhar esta luta contra Jovenel Moise, contra o partido governante (PHTK), contra o imperialismo para poder entrar em um processo de construção nacional que torne efetivas as reivindicações centrais do povo”, precisou Chalmers.

Segundo a Polícia Nacional, pelo menos cinco personas morreram e umas trinta resultaram feridas durante os protestos de setembro.

Duas mortes foram registradas no departamento Oeste, e outras três no Nordeste, Sul e Noroeste.

No entanto, a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos no Haiti denunciou a morte de umas 17 pessoas e 189 feridos nas manifestações que quase diariamente sacodem o país.

Entre os mortos figuram dois menores de idade, um por asfixia e uma estudante atropelada por um veículo em Saint Marc, comuna situada a quase 99 quilômetros a noroeste de Porto Príncipe.

O detonante desta nova onda de protestos foi a escassez de combustível que experimenta o país desde meados de agosto, depois que o Governo não pode cumprir seus compromissos com as companhias petroleiras que abastecem o país.

Um suposto aumento dos preços do diesel no mercado informal, sugerido pelo governo, que mantém os combustíveis subsidiados, acendeu a mecha de milhões de haitianos que suportam ainda uma notável alta nos preços da cesta básica, depreciação da moeda nacional, diminuição do poder aquisitivo e um desemprego que supera os 70% da população.

Sobre o fundo desta crise econômica há também uma enorme crise política e institucional, advertiu Lautaro Rivara, sociólogo e membro da brigada Dessalines de Solidariedade com o Haiti.

O também militante da esquerda argentina assinalou que a classe política haitiana está “completamente deslegitimada porque é um governo que nasce viciado de origem com eleições fraudulentas em 2015, que foram repetidas e novamente fraudulentas em 2016, levando o PHTK ao poder”.

Para as forças progressistas, embora a crise do Haiti não seja nova, aguçou-se nos últimos anos com a contínua aplicação de políticas neoliberais e ditames do Fundo Monetário Internacional.

Pesam também os desastres naturais que na última década impactaram o país, como o mortífero terremoto de 2010 que cortou mais de 200 mil vidas e destruiu praticamente a infraestrutura da capital; além dos furacões e secas, que dificultam a recuperação da nação.

O papel da comunidade internacional

No dia 4 de outubro, milhares de haitianos desfilaram diante do quartel geral da Missão das Nações Unidas em Apoio à Justiça (Minjusth) para pedir que a comunidade internacional retire seu apoio ao presidente Jovenel Moise depois que o polêmico Core Group reiterara sua convocatória ao diálogo e negociações pacíficas.

Os integrantes do citado grupo, que aglutina representantes da ONU, da OEA e embaixadores de vários países, sustentaram encontros com líderes políticos do governo e da oposição, tentando solucionar a intensificação da mobilização.

No entanto, esta postura foi amplamente criticada por personalidades, setores opositores e organizações sociais, além de milhares de haitianos nas ruas.

“O Core Grup é um instrumento colonial dirigido pelos Estados Unidos, que têm se mantido aliado às forças reacionárias e retrógradas deste país”, assegurou Chalmers.

Acrescentou que a estrutura, criada junto à Missão das Nações Unidas para a Estabilidade (2004-2017), “manifestou-se outra vez apoiando a Jovenel Moise e contra o povo do Haiti”, em rechaço total à vontade coletiva.

Mais de vinte intelectuais haitianos também afirmaram que não existe reconciliação possível entre o Governo e o povo, e sublinharam em uma carta pública que o único apoio para o poder “proviria de poderosas embaixadas estrangeiras”.

Mas, segundo analistas, o sustento norte-americano de Moise, que no Haiti perde cada vez mais aliados, se deve ao papel do governo na cruzada impulsionada por Washington contra a Venezuela, à qual Haiti somou-se no último ano.

Depois de formar parte do programa energético de Caracas, que beneficiou o país com baixos preços de petróleo e menores taxas de juros, Haiti reconheceu na OEA o autoproclamado presidente Juan Guaidó, e recentemente aderiu à firma do denominado Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) contra a soberania e o povo venezuelano.

“Dentro desta mesma dimensão política, o ministro de Assuntos Estrangeiros e Culto, Bocchit Edmond, transformou-se em um insistente lobista dos apelos de guerra contra a Venezuela, embora sem êxito, em organismos regionais como a Comunidade do Caribe”, assegurou Rivara.

Indicou, também, o interesse norte-americano em projetos mineiros no norte do Haiti, que também contam com capitais canadenses; a privatização de empresas estatais; o estabelecimento de zonas francas; a abertura do mercado nacional para a importação de produtos estadunidenses e dominicanos, entre outros negócios.

E foi precisamente o rechaço ao modelo de submissão alheio aos interesses da maioria, e o desejo de cumprir as reivindicações de 60 por cento da população que vive abaixo da linha de pobreza, o que levou muita gente às ruas.

“No nível global temos assistido um crescimento em termos de consciência política, no qual as pessoas têm uma clara visão de que não podemos aceitar esse tipo de liderança tradicional”, enfatizou Chalmers.

Para este grupo progressista e outros setores opositores, já é tempo de derrotar o tipo de governo que tem imperado após a ditadura de François e Jean-Claude Duvalier (1986), embora alertem que a transição deve velar para que o sistema de exclusão, corrupção e submissão a grandes potências não se repita.

*Correspondente chefa de Prensa Latina no Haiti.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Anelí Ruiz García

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