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"A onda progressista da América Latina não acabou", afirma vice-presidente da Bolívia

Álvaro García Linera explicou como o “Movimento ao Socialismo” pode tornar permanente a revolução do país
Iago Moreno
Jacobin
São Paulo (SP)

Tradução:

Este ano está se mostrando decisivo para a América Latina. Por um lado, governos conservadores e de extrema direita estão mergulhados em crises. Estas variam desde os crescentes protestos contra Jair Bolsonaro no Brasil após os incêndios na Amazônia, até a revolta popular contra o governo vira-casaca de Lenín Moreno no Equador e suas reformas econômicas sancionadas pelo FMI, e os contratempos contínuos da administração neoliberal de Mauricio Macri na Argentina.

Por outro lado, as forças progressistas e de esquerda ainda estão se reagrupando após anos de golpes, derrotas eleitorais e contínuos ataques midiáticos. Existem alguns sinais positivos: o governo de Andrés Manuel López Obrador no México está fazendo reformas cruciais para o país e investigando o desaparecimento de quarenta e três estudantes no estado de Oaxaca, enquanto na Argentina a “Frente de Todos” da esquerda peronista parece certa de sua vitória eleitoral após fortes indícios nas primárias de agosto. No entanto, a “Frente Ampla” do Uruguai enfrenta uma batalha árdua nas próximas eleições e, apesar das promissoras mudanças no Chile marcadas pelas manifestações anti-austeridade e a luta de Camila Vallejo por uma semana de trabalho de quarenta horas e pela ascensão política de Daniel Jadue, prefeito comunista de Recoleta, a esquerda permanece dividida.

O outro importante campo de batalha eleitoral fica no coração da recente onda rosa na América Latina: a Bolívia, que foi às urnas essa semana. O presidente Evo Morales, primeiro líder indígena do país desde Túpac Katari no século XVIII, conquistou seu quarto mandato consecutivo. O homem que começou sua vida política como ativista sindical, tendo sido líder do sindicato dos cocaleiros, se provou até agora como um dos presidentes mais bem sucedido na história do país.

Desde que assumiu o poder em 2006, o governo do Movimento ao Socialismo (MAS) tomou uma série de medidas transformadoras. Estas variam desde a nacionalização de uma parte significativa da indústria de hidrocarbonetos do país; a rescrição da constituição e o reconhecimento da singular identidade indígena “plurinacional” do país; o reconhecimento dos direitos da pachamama (mãe natureza); a distribuição da riqueza natural do país por meio de gastos maciços em infraestrutura social (como o sistema de teleférico em La Paz), saúde e educação; e a criação de diversos programas sociais (como Bono Juancito Pinto e Renta Dignidad). Isso resultou em uma grande redução da pobreza no país mais pobre da América do Sul. A taxa de pobreza da Bolívia caiu de 60,6% em 2005 para 34,6% no ano passado, com a pobreza extrema caindo de 38,2% para 15,2% no mesmo período. Durante o governo de Morales, o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade de distribuição de renda, foi reduzido de 0,6 para 0,45 e, nos últimos anos, o país também desfrutou dos níveis de crescimento econômico mais altos e consistentemente da região.

Apesar de todos esses sucessos, a vitória eleitoral de Morales não foi fácil. Uma derrota no referendo de 2016 sobre os limites do mandato presidencial alimentou a oposição, particularmente no histórico bastião de direita de Santa Cruz, enquanto uma campanha pseudo-ambientalista apoiada por fundações e “ativistas” americanos, como Jhanisse Daza, tentou culpar Morales por incêndios na província de Chiquitania. Seus oponentes na disputa eleitoral, representando diferentes facções da direita neoliberal que governou a Bolívia antes de 2006, incluem o ex-presidente Carlos Mesa, o líder do movimento “Bolívia Diz Não”, Óscar Ortiz, e o novato da extrema-direita apoiado pelos evangélicos, Chi Hyun Chung.

Mais importante ainda, Morales enfrenta o desafio de continuar um projeto revolucionário em oposição ao capitalismo e ao neocolonialismo, cuja sobrevivência a longo prazo depende do cumprimento simultâneo das expectativas dos poderosos movimentos sociais indígenas e sindicais do país, ao implementar um programa de industrialização e de crescimento em uma terra tradicionalmente dependente da exportação de recursos naturais. Os jornalistas Denis Rogatyuk e Iago Moreno sentaram-se com o vice-presidente do país, Álvaro García Linera, para discutir as próximas eleições, o histórico do governo de Morales e as bases das mudanças transformadoras para o futuro.

Álvaro García Linera explicou como o “Movimento ao Socialismo” pode tornar permanente a revolução do país

Twitter / reprodução
Álvaro Linera e Evo Morales

Jacobin – Gostaríamos de começar com uma análise do atual cenário político na Bolívia. Qual é a situação hoje em comparação com a última eleição de 2014 — o espaço político do MAS foi reduzido pelo surgimento de figuras como Carlos Mesa e Óscar Ortiz?

Álvaro Linera – Cada eleição é única e nenhuma situação simplesmente se repete. A oposição de hoje tem rostos diferentes de cinco ou dez anos atrás, mas uma coisa permanece igual: a falta de um projeto estatal alternativo para a economia e a sociedade.

Essa é a principal fraqueza deles. Além dos seus rostos, legendas ou retórica particulares, o grande limite das forças conservadoras é que elas não foram capazes de ascender à nova Era caracterizada pelo Estado plurinacional.

Ou seja, eles não têm um projeto estatal diferente para a articulação das classes populares e dominantes. Eles não têm um projeto econômico que confronte ou supere a presença atual do Estado como principal ator econômico e distribuidor de riqueza. Tampouco são capazes — pelo menos abertamente — de propor uma alternativa ao atual empoderamento dos povos indígenas na construção do Estado plurinacional.

Portanto, se chamarmos esses pontos de “os três braços” da economia e da política da Bolívia na última década, veremos que as forças conservadoras não têm projeto alternativo próprio. Nesse sentido, a situação é semelhante a cinco anos atrás.

Ainda veremos como isso se desenrola. Mas estamos confiantes de que as bases fundamentais do nosso projeto e a estrutura hegemônica do Estado plurinacional permanecerão.

Durante anos, o que você descreveu como o esforço ideológico da mídia para afirmar um “fim de ciclo” procurou projetar o futuro da América Latina como um retorno inevitável à longa noite do neoliberalismo. No entanto, a vitória sem precedentes de López Obrador no México e o surpreendente avanço da Frente de Todos nas primárias argentinas parecem ter mostrado que esse retorno supostamente “inevitável” era na verdade uma quimera. Que papel você acha que a Bolívia desempenhará nas novas alianças regionais — e qual a possibilidade de haver um novo bloco de poder continental?

Houve um curioso tipo de casamento ou coincidência filosófica entre o discurso do fim da história, apresentado pelas correntes liberais na década de 1980, e certas correntes esquerdistas ou progressistas que falavam do fim do ciclo progressista na América Latina.

Eu digo “coincidência” porque tinham em comum uma visão teleológica da história, como se ela fosse baseada em leis que estão acima da ação humana. No entanto, a própria história evidencia que ela não se move de acordo com leis e que uma filosofia teleológica da história não pode existir sem o acaso. A história sempre inclui o novo, o imprevisível, o senso de possibilidade.

Assim, mesmo quando algumas pessoas estavam repetindo que o ciclo da esquerda havia terminado e que uma nova Era conservadora estava a caminho, chegaram as vitórias no México. Nessa altura, disseram que era apenas o último suspiro de glória do ciclo progressista. Mas então veio a Argentina, Bolívia e podemos esperar vitórias também no Uruguai.

O que essas leituras fantasiosas não compreendem é que os processos históricos não se movem em ciclos, por meio de “leis” independentes da ação humana, mas pelas marés. Ações coletivas e lutas sociais surgem em marés — elas chegam, avançam, abrem caminho, conquistam, atingem um limite, param, recuam, mas depois podem voltar impulsionando uma, duas, novas marés.

O segundo aspecto dessa leitura é que ela concebe vitórias conservadoras — esse retorno do neoliberalismo — como o início de um longo ciclo que pode durar dez ou vinte anos. No entanto, não é assim que as coisas realmente são.

O grande problema desse neoliberalismo 2.0 é que ele não é um projeto para a sociedade, mas, acima de tudo, uma espécie de vingança, uma atitude de acerto de contas. Não se trata de pessoas entusiasmadas, mas de agitar as emoções enrijecidas das pessoas oferecendo bodes expiatórios fáceis para os seus problemas. No entanto, falta substância.

Não é possível construir uma hegemonia duradoura — uma tolerância moral do governante pelos governados — baseada no ódio e no ressentimento. Portanto, esse neoliberalismo 2.0 tem possibilidades muito limitadas, pois, não criou uma nova proposta para a sociedade e sobre como devemos viver.

Foi isso que fizeram nos anos 80 — e essa foi a sua força. Enquanto outros tentavam conservar o que já existia, os neoliberais disseram: “Vamos mudar o mundo com empresas, globalização, economia de livre mercado e acordos de livre comércio”. Essa era uma proposta de vida, para a sociedade, que capturou o entusiasmo, o consenso e o apoio ativo dos setores subalternos das classes populares. Mas hoje os neoliberais não estão fazendo isso.

Além disso, esse neoliberalismo 2.0 surgiu em um momento em que o mundo inteiro está assistindo ao colapso da crença no fim da história — uma crença baseada nos preceitos neoliberais da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Trinta anos atrás, esses países eram os campeões do livre comércio, mas hoje são protecionistas. Enquanto a China, com seu Estado de partido único e economia planificada, é a porta-voz do livre comércio.

Os comunistas se tornaram livre-cambistas e os defensores do livre mercado e da democracia liberal se transformaram em protecionistas — está tudo de cabeça para baixo. Portanto, a oferta neoliberal e seus modelos não são atraentes. Se os Estados Unidos e a Grã-Bretanha já foram considerados o horizonte a ser perseguido, hoje eles estão um pouco mais contra essa corrente.

Nesse cenário de caos generalizado e do colapso da narrativa neoliberal e pró-globalização, os projetos neoliberais que se desenvolvem em certos países não têm mais o mesmo brilho, força, senso de convicção ou a abrangência que costumavam ter — e nem estão despertando o entusiasmo das pessoas.

Pode ser que levem anos até acertarem as contas, para que as classes altas se vinguem daquelas que estão abaixo. Mas eles não conseguem atrair o espírito coletivo da sociedade de maneira duradoura. São projetos de curto prazo e, mais cedo ou mais tarde, serão confrontados por novas ondas de descontentamento popular, pois, o que estão fazendo está aumentando a pobreza.

O projeto do MAS combinou várias dimensões da política revolucionária: a gestão estatal, a luta política contra a oposição atendendo as demandas do movimento social e cumprindo e atualizando tarefas revolucionárias. Quais são os principais centros de gravidade do poder político dentro do MAS e quais são os principais desafios do governo de Evo Morales?

Uma das muitas lições que a Bolívia aprendeu se baseia no fato de que não se pode construir governabilidade ou estabilidade social e política somente através da força parlamentar. Isso é construído através da ação coletiva, com presença territorial nas ruas. Isso é algo decisivo.

Os pilares de governabilidade que construímos incluem obviamente uma maioria parlamentar, mas também uma maioria social nas ruas. Essa ação coletiva é um elemento-chave para a compreensão das novas formas de democratização. Outro pilar é a articulação complexa e flexível das organizações sociais nas estruturas de poder e tomada de decisão. Sindicatos, associações profissionais, federações camponesas e indígenas e associações de bairro formam uma estrutura de poder dentro do Estado.

Por “flexível”, quero dizer que algumas vezes essas organizações se retiram ou são novamente reincorporadas: a estrutura do governo é uma confederação flexível de organizações sociais. Menos que um partido, o MAS é uma organização fluida, frouxa e negociada de organizações sociais. Essa é outra novidade nas formas de organização coletiva que (como Antonio Gramsci colocou) se tornam Estado, se tornam governo e dão uma dinâmica diferente ao processo político boliviano.

Quanto aos desafios, existem vários. O fato de a Bolívia plebeia hoje ter acesso a posições de poder, de tomada de decisões em parlamentos, ministérios, prefeituras e governos regionais dos quais tinha sido permanentemente excluída, gerou um apetite saudável por participação, para fazer um tipo de carreira que engloba desde a liderança trabalhadora ao vereador, deputado ou ministro.

Não estou criticando essa atitude. Após quinhentos anos de marginalização, nos quais o tratamento das questões do governo foi limitado a poucas famílias, isso marca uma expansão do direito de ser reconhecido e tomar decisões. Mas isso gera um problema na organização social. Pois quando esses militantes, sindicalistas, trabalhadores, camponeses e indígenas bolivianos sobem rapidamente através dos cargos da administração social, passando para a política de Estado, isso retira quadros políticos da base. Esse processo reflete em uma lenta despolitização das estruturas sociais do país e, a longo prazo, isso pode ser complicado.

Se faz necessária, então, uma repolitização permanente dos setores sociais. Na Bolívia, substituímos 98% dos nossos deputados, senadores, prefeitos, vereadores e membros da assembleia regional a cada cinco anos. Essa é uma taxa de rotatividade muito rápida em nossos quadros políticos e, no nível intermediário de liderança, há pessoas com menos treinamento, carreiras mais curtas, menos experiência, o que em parte pode enfraquecer a estrutura organizacional dos sindicatos.

Para mim, este é um dos riscos que temos pela frente. E isso exige que, nos próximos cinco anos, apoiemos a repolitização da vida sindical e o treinamento dos quadros de liderança em sindicatos, associações profissionais e comunidades camponesas e indígenas. Este é o primeiro desafio que devemos enfrentar.

Em 2017, você disse que queria liberar mais tempo e espaço para se dedicar ao que chamou de “o objetivo de treinar novos quadros comunistas”. Mas as demandas do processo boliviano exigiram que você permanecesse como candidato a vice-presidência para mais um mandato. No entanto, este continua sendo um dos grandes planos na sua linha de pensamento e uma das tarefas fundamentais na sobrevivência deste projeto de longo prazo. Quais seriam os principais contornos desse trabalho permanente de formação de quadros e qual o papel desempenhado pelas organizações de jovens do MAS, como La Resistencia, Generación Evo, Siglo XXI e Columna Sur, bem como seus laços internacionais?

Essas estruturas jovens são uma grande conquista, uma força vital que enriquece e renova constantemente ideias e lideranças. Por isso, precisam ser fortalecidas. Mas também é necessário fortalecer a formação política e ideológica coletiva, o desenvolvimento de lideranças e a formação de opiniões em sindicatos, comunidades camponesas e lideranças de bairro.

O MAS é, fundamentalmente, uma estrutura plebéia que une várias organizações sociais, e os dirigentes do MAS pertencem a esses setores sociais. É aqui, então, que é necessário mais direção no desenvolvimento de quadros. Tenho toda a intenção de criar uma escola de quadros nos próximos cinco anos, para jovens de vários setores sociais, mas também para sindicalistas, membros de associações de moradores e trabalhadores manuais e intelectuais.

Não se deve esquecer que a primeira geração que ingressou nas estruturas governamentais com o MAS veio de dois campos diferentes — da antiga formação de esquerda realizada pelos partidos socialistas e comunistas e da esquerda político-partidária e do antigo quadro de formação nos sindicatos que passaram por marchas em massa, barricadas em estradas, perseguições e prisões. Essa foi a “academia da juventude” que forneceu a primeira geração do pessoal para o MAS no governo.

Hoje não há mais grandes marchas e barricadas — e isso é uma coisa boa. Mas isso significa que também não há a “escola” que as marchas e barricadas oferecem em termos de formação de quadros. A formação que as forças da esquerda proporcionaram ao longo das décadas também foi bastante enfraquecida, pois, o MAS as absorveu. Portanto, não vimos a continuação do antigo ativismo em pequena escala e sim um ativismo muito denso. A nova situação exige trabalho em ambas as frentes: sim, entre os jovens, mas também com as organizações sociais, na perspectiva de desenvolver novas lideranças bem formadas ideologicamente e politicamente bem preparadas nas batalhas que temos pela frente.

Após anos de interferência dos EUA no processo da Bolívia, os novos “Planos Condor” de hoje parecem estar apostando em orquestrar uma espécie de “revolução colorida” com apoio e financiamento de fora. A tomada de certas universidades pela oposição, as campanhas de desinformação em torno dos incêndios na Chiquitania e o ressurgimento da violência da oposição e paralisações evidenciam essa mesma tendência. Que mecanismos de autodefesa democrática os povos da Bolívia têm para enfrentar esse tipo de cerco ideológico-cultural?

Eu acho que na política o inimigo sempre fará o possível para te enfraquecer — por definição. Caso contrário, não seriam inimigos. Mesmo que você não veja, eles estão fazendo isso: é algo que você precisa pressupor.

Eu também acredito que quando alguém atira um objeto pesado num vaso, o que faz com que ele quebre não é o objeto atirado, mas a fragilidade do próprio vaso — ou seja, você precisa construir algo inquebrável que resista quando algo é atirado contra ele. É assim que imagino processos revolucionários: você sempre terá ataques vindos de um lado ou do outro, de países estrangeiros e interesses imperiais. Seria ingênuo não esperar tais ações. Sendo assim, precisamos construir algo capaz de suportar.

Foi isso que tentamos fazer nos últimos treze anos — construir um vaso que não se quebra pelos golpes vindos de fora. É claro que, nos últimos tempos, as forças e a intelligentsia conservadora melhoraram suas táticas no mundo todo, em certo sentido, tornando-se mais gramscianas. E também usando a cultura, o sentimento acumulado do senso comum e buscando obter consentimento e apoio duradouro. Exatamente o que esquerda tinha feito. Tendo estado à margem por muito tempo, nos esforçamos para construir ideias fortes, pequenas ideias que podem capturar parte do imaginário coletivo.

Me diga quanta influência você tem sobre o senso comum e lhe direi qual é a sua força política. A esquerda partiu daí. Nossos debates teóricos, nossos programas de formação e nossa capacidade de analisar a situação concreta foram usados para estabelecer ideias-chave que poderiam se espalhar mais amplamente e capturar a imaginação das pessoas. A direita sabe disso e está tentando fazer o mesmo, substituindo o golpe duro e as ditaduras por uma batalha por ideias-chave, o senso comum dominante, a ordem lógica, moral, processual e instrumental da vida cotidiana das pessoas.

Então, eles também estão mais sofisticados hoje e, como esquerda, nossa batalha agora é mais complicada. Mas não importa — pois, a menos que você enfrente um adversário inteligente, você mesmo terá limites claros. São as fortalezas e vantagens estratégicas dos adversários que te obrigam a desenvolver capacidades para enfrentá-los e derrotá-los.

Não estou surpreso com as táticas da oposição, nós as esperávamos, mas isso exige que respondamos com nossas próprias estratégias e novas táticas que possam superar essa ofensiva e recuperar a visão geral do mundo e do futuro do lado progressista. O que estamos vivendo agora é novo, mas não é surpreendente.

Falando em estratégias futuras e nas novas manobras de seus oponentes, queremos perguntar sobre os novos desafios ligados às mídias sociais. A última eleição brasileira demonstrou a virada perigosa nesse campo: depois de anos em que a internet recebeu de maneira otimista a aura do debate democrático, acabou sendo controlada por uma minoria de transnacionais e potências globais. Hoje, redes como o Facebook e o WhatsApp são a base para a implantação intensiva de bots e trolls que, de fato, são a ponta da lança de grandes campanhas de desinformação. De acordo com muitas vozes críticas, a falta de anticorpos democráticos na internet na Bolívia se refletiu primeiro na derrota do referendo de 21 de fevereiro de 2016 (uma tentativa fracassada de afrouxar os limites do mandato presidencial) e depois com a facilidade com que os oponentes do Estado plurinacional conseguiram encher as mídias sociais com desinformação sobre Chiquitania. O próximo mandato também será um período de soberania cibernética? O processo de mudança da Bolívia também precisa de uma presença online de milhões de pessoas?

Certamente, as mídias sociais introduziram uma nova plataforma na arena política, uma nova base técnica para a construção da opinião pública. Primeiro, tínhamos as formas verbalizadas face a face da construção da opinião pública que remontam a milênios e depois vieram a imprensa, jornais, rádio, televisão e agora a internet.

Essas são cinco plataformas técnicas fundamentais para a comunicação e cada uma possui suas próprias complexidades, características, virtudes, limites e formas de manipulação. As mídias sociais são novas e precisam ser entendidas. Mas eu não sou um dos que acreditam que pode reinventar a roda. Mídias sociais podem criar imaginários, distorcer realidades e reforçar certos preconceitos, assim como os jornais, o rádio e a televisão fizeram na sua época.

Assim como no caso de outras plataformas, quem tem mais dinheiro exerce mais poder. Aqueles que podem usar a inteligência artificial para traçar o perfil do eleitorado, sabendo até mesmo detalhes sobre seu filme preferido e suas cores favoritas, podem enviar mensagens nas cores certas no momento certo para obter atenção.

Mas eles não podem simplesmente inventar qualquer coisa — e não é como se a inteligência artificial pudesse manipular seu cérebro para que, depois de pensar uma coisa, você instantaneamente mude e pense outra. A televisão também costumava ser chamada de “caixa do idiota”. Mas as pessoas não são bobas, ou esponjas que absorvem qualquer coisa. Os seres humanos são criaturas de crença, e claramente a web é uma arena fantástica para manipular e reorientar o que as pessoas pensam. Mas, para funcionar, essas crenças devem ser estruturadas em termos que tenham alguma conexão material com a realidade.

A web desempenha um papel importante em informar e desinformar as pessoas, mas não pode criar um mundo perfeitamente manipulável, totalmente diferente do que o cidadão vive no seu cotidiano. Afinal, você compara as informações que viu online com a sua própria vida: quando compra pão, entra no ônibus, conversa com colegas de trabalho, fica o que é mais substancial e o que tem mais conexão com sua própria experiência.

Então, agora temos uma nova plataforma com novas regras, novas tecnologias, novas formas de organização, de vontade coletiva e de informação, que são mais sofisticadas, mais complicadas e mais difíceis de navegar. Mas isso também faz parte de um sistema de plataformas que a humanidade vem construindo há milhares de anos. Nós aprendemos sobre o importante papel que desempenham e estamos gradualmente fazendo nossa própria incursão nessas plataformas.

Diante das manipulações de inteligência artificial por parte de algum governo estrangeiro, empresa ou partido político super-financiado, temos que compensar usando ela para espalhar informações mais confiáveis e precisas. De fato, um novo mundo se abriu com a web, mas é um mundo cujas regras de engajamento e táticas não são tão diferentes daquelas confrontadas por Sun Tzu há 3.500 anos.

Gostaria de concluir com uma pergunta mais pessoal. Você foi sindicalista, guerrilheiro do Ejército Túpac Katari, professor e vice-presidente. Então, quem é Álvaro García Linera? Como a sua trajetória política evoluiu? E quais pontos de referência intelectuais mais influenciaram você?

Desde a adolescência, sou socialista, comunista, um homem que entende que a vida que vale a pena viver é aquela que ajuda a transformar as condições de existência das pessoas através de mais igualdade, justiça e liberdade. Todo o resto são apenas considerações secundárias, ferramentas temporárias, contingentes a esse trabalho que define o comunista ou o socialista.

Por socialismo e comunismo, não quero dizer ativismo partidário, mas ativismo a serviço de um horizonte para a sociedade. No caso boliviano, você não pode ser socialista, comunista, se não entender sua realidade, incluindo o movimento dos trabalhadores da Bolívia, o movimento indígena e o indigenismo (em defesa dos povos indígenas da Bolívia). Você não pode ser comunista na Bolívia, a menos que também seja indigenista.

Estou constantemente me esforçando para ter em consideração o debate contemporâneo, as batalhas ideológicas e os avanços nas várias áreas das ciências sociais. Gosto de absorver esse conhecimento, mas também está claro que isso não tem utilidade como um mero exercício de reflexão lógica, palavras e ideias, que é demasiado simples. Em vez disso, posso estudar tudo isso para mergulhar mais fundo no que está acontecendo na Bolívia, na América Latina e no mundo em geral, entre bolivianos indígenas (e não indígenas), trabalhadores, e entender assuntos como pobreza, mal-estar social, elites, interferência e colonialismo.

Eu sempre fundi essas ideias com outras fruto da nossa própria experiência. Essa articulação ideológica e espiritual começou no início do meu ativismo no ensino médio. E nunca mudei nesse sentido. Às vezes, existem certos autores que me influenciam mais e certas ações políticas que considero mais relevantes. Mas com o passar do tempo, outros fazem mais para atrair minha atenção, me surpreendendo com sua política, e são quem mais me entusiasma. Mas há um fio vermelho constante, que é esse ativismo socialista, comunista, indigenista. Não acho que mudei a esse respeito — é isso que me sustentará enquanto eu viver. O que virá depois, não sabemos.

*Iago Moreno , é o co-diretor do think tank El Observatorio e membro do conselho editorial da revista La Trivial.

*Denis Rogatyuk , é um escritor, jornalista e pesquisador russo-australiano residente em Londres. Ele já escreveu para o Green Left Weekly, TeleSUR, LINKS, International Viewpoint e outras publicações.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Iago Moreno

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