Evo Morales renunciou, mas o que está acontecendo na Bolívia é um golpe. Um golpe é uma subversão contrarrevolucionária da ordem política. Evo Morales ganhou as eleições e foi derrubado, ao se ver obrigado a renunciar. Nestes dias confusos, parece não existir governo, mas não há um vazio de poder. São as Forças Armadas quem governam, com apoio de Carlos Mesa e Camacho, e as Juntas Cívicas da Media Luna.
É um golpe porque Evo Morales foi derrubado sob a terrível chantagem de guerra civil, o que deixou claro a ruptura institucional. Que não seja uma clássica quartelada militar, como no passado, na forma de um putsch que coloca, diretamente, um general ou junta militar no poder, não anula que tenha sido um golpe. De fato, a situação é de um Estado de Sítio, um Estado de Exceção. As forças golpistas poderão tentar uma fraude de legalidade, como está sendo ensaiada pela convocação do Congresso, mas primeiro terão que derrotar a resistência nas ruas. Com Evo Morales e Álvaro Linera no exílio não existirão eleições livres.
É contrarrevolucionário porque estão dispostos a usar os métodos de guerra civil, como ficou demonstrado com a prática fascista de linchamento de uma prefeita do MAS em Praça Pública, com o incentivo à depredação das residências de ministros, com as ameaças à integridade física de suas famílias – até do próprio Evo Morales – e com a invasão do Palácio presidencial em La Paz.
A classe dominante, os grandes capitalistas, com apoio da maioria da classe média, arrastando massivos setores populares urbanos, são a força social por trás do golpe. A presença da juventude nas ruas não diminui o caráter reacionário do golpe. Infelizmente, a manobra para tentar legitimar o golpe, com a máscara da defesa de eleições limpas, obteve alguma audiência.
Desde quinta-feira (7), a escalada de bloqueios se acentuou, as polícias se associaram às exigências dos líderes civis da Media Luna – liderados pelo neofascista Camacho, com apoio do candidato derrotado Carlos Mesa e cumplicidade das Forças Armadas, os sujeitos políticos do golpe. Atrás deles, há, evidentemente, as embaixadas norte-americana e brasileira, e o apoio da Colômbia.
Quem não entendeu isso, não entendeu nada. Olhar a realidade nua e crua tal como ela é, diante do relógio da história. Não importa, neste momento, a opinião que cada um de nós possa ter sobre os limites, vacilações, deformações, e vícios do governo de Evo Morales. Não importa, neste momento, a discussão sobre quais foram os terríveis erros que a direção do Movimento para o Socialismo (MAS) cometeu ou não. Esse balanço terá importância para aprender as lições desta derrota. E será ainda mais decisivo, considerando que há na esquerda quem duvide que se trata de um golpe contrarrevolucionário, porque alguns movimentos sociais se mobilizavam contra o governo de Evo Morales.
TC Television / Reprodução
Manifestantes de El Alto descendo para La Paz em sua típica marcha, carregando a bandeira indígena andina de Wiphala contra o golpe
Quais são os critérios para definir se uma mobilização social é progressiva ou reacionária? Sugerimos quatro critérios, e vejamos sua aplicação na situação boliviana:
O primeiro critério deve avaliar as mobilizações pelas tarefas que elas se colocam, ou seja, o conteúdo histórico-social do programa que motiva a mobilização. Desde o final do primeiro turno das eleições na Bolívia, o sentido destes atos foi, diretamente, a luta pelo poder, ou seja, uma estratégia de derrubada do governo. Exigiam, no início, a auditoria supervisionada pela OEA, mas evoluíram, rapidamente, para a derrubada do governo Evo Morales.
O segundo critério é pelo sujeito social, ou seja, pelas classes e frações de classe, ou bloco de classes que se mobilizaram e uniram para realizá-las. Não parece controverso, consideradas os dados já disponíveis, afirmar que foram essencialmente manifestações de camadas da classe média, muito concentradas nas cidades. A mobilização das camadas médias em torno de um programa reacionário é regressiva.
O terceiro critério deve ser uma avaliação da direção política das manifestações, o sujeito político. A primeira denúncia do que consideraram fraude eleitoral ficou na mão do candidato Carlos Mesa, mas quem assumiu publicamente a liderança civil foi o neofascista Camacho, apoiado nas Forças Armadas. A direção das manifestações foi, portanto, burguesa, muito bem articulada com a embaixada norte-americana e brasileira.
O último critério são as consequências. O principal resultado das mobilizações foi a derrubada do governo Evo Morales, abrindo o caminho para a posse de um governo refém das Forças Armadas.
A Bolívia está dividida e dilacerada. A contrarrevolução tem bases de massas nas cidades, mas não é a maioria da nação. Trata-se de um golpe contrarrevolucionário monstruoso. Quem na esquerda não se posicionar imediatamente contra o golpe perdeu a bússola da história.
Todo apoio à heroica resistência camponesa-indígena. Eles carregam a esperança dos Andes e da América Latina em suas mãos.
Às ruas, ao seu lado, até o fim.
Edição: Julia Chequer
*Valério Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSol, e autor de O Martelo da história, entre outros livros.
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