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Presa política argentina, Milagro Sala afirma: "apesar de tudo, voltaria a fazer o que fiz”

Eu gostaria que terminasse esta agonia. Não só a minha, mas a de meus companheiros também. Somos reféns da política opositora
Romina Calderaro
Página 12
San Salvador de Jujuy

Tradução:

Continua detida em seu domicílio. A líder da organização Tupac Amaru assegurou que não entende por que Gerardo Morales a odeia. Está contente com o triunfo de Alberto Fernández e está formando outros dirigentes. As conversas com Evo Morales, sua defesa, a história da queima do nicho de seu pai que atribui ao governador, a destruição da obra da Tupac e a esperança de liberdade.

Há seis anos, quando não imaginava nem no pior de seus pesadelos que iria ficar quatro anos presa, Milagro Sala viveu um episódio que lhe deu a pauta do que era capaz de fazer seu então adversário político e hoje governador, quando tivesse o poder na província: a líder da Tupac Amaru assegura que Gerardo Morales mandou pôr fogo no nicho de seu pai um dia depois do seu falecimento e isso foi confessado uns dias depois por uns meninos que lhe pediram perdão. Estavam drogados e foram pagos. O Papa a chamou então para contê-la e recomendar que não respondesse provocações.

A dirigente recebeu Página12 enquanto estudava um plano da obra feita por sua organização. Quer dizer mais coisas na justiça porque sente que teria que ter falado muito mais para defender-se nas audiências e nestes dias se dedica a formar quadros políticos e escrever um livro sobre sua vida. Está convencida de que Morales a odeia, insiste que ela já o perdoou e que o considera digno de lástima. Festeja o triunfo de Alberto Fernández como presidente e diz que apesar de tudo o que lhe aconteceu, voltaria a fazer o que fez. 

Para entrar em seu domicílio, a equipe deste diário teve que mostrar seu documento a uma das pessoas que a custodiam de uma caminhonete na porta de sua casa. 

Eu gostaria que terminasse esta agonia. Não só a minha, mas a de meus companheiros também. Somos reféns da política opositora

Página/12 | Adrián Pérez
"Creio em Deus, mas não nos homens”, disse Sala.

Leia a entrevista:

Página/12 – Há pouco li a crônica de um homem que esteve dez anos preso na ditadura. Diz que os demais lhe dizem que o entendem, mas ninguém que não tenha passado pela mesma coisa pode entender. Estás de acordo?

Milagro Sala: Estou sim. Às vezes dentro do cárcere a gente toma medidas para que a família não se preocupe com a gente. Estar encarcerada é horrível. Imagine uma pessoa que trabalhou toda a vida com a comunidade e que o carcereiro te isole, não te deixe ver o sol ou que o diretor te diga que se sobrar um pedaço de pão é preferível jogar fora do que dar a alguém que necessita. Me isolavam frequentemente e quando eu perguntava por que, me diziam que era porque eu defendia meus companheiros e na prisão os códigos são diferentes. Eu lembro que lhe disse “eu sou dirigente na rua, aqui, lá e onde for, Nunca vou deixar de ser dirigente”. O pior destes quatro anos é que me trataram como um objeto. E saber que lá fora acontecem coisas que não podes solucionar de dentro. Os que te querem não querem que fiques sabendo, mas sempre ficas sabendo. 

Alguma vez pensou que por fazer a obra que fizeste ias cumprir hoje quatro anos presa?

Nunca. Porque te imaginas que construíamos em base às necessidades dos companheiros: eu nem sequer vivia no bairro da Túpac de Alto Comedero. Eu trabalhei e trabalho para os demais porque aprendi de Evita. Quando era adolescente saí de casa para viver na rua porque queria me valer por mim mesma e me tornei peronista. Por causa das coisas que vivi e que vi. Meu objetivo nunca foi competir com o Estado. Mas fizemos de tudo em função das necessidades: casas, piscinas, escolas, fábricas de tijolos. Distribuíamos medicamentos gratuitos. E se víamos que um companheiro tinha uma doença terminal o acompanhávamos até o final. A ideia é e foi ser solidária com o outro. 

A casa de Milagro Sala, para quem a conhece de sua época de cidadã livre, continua sendo comunitária, mas muito menos que antes: a acompanham alguns de seus filhos, de seus companheiros, seu marido e uma grande quantidade de cachorros adultos e filhotes. Antes, quase se orgulhava de não ter intimidade. Agora o ingresso está muito controlado.

Se tivesses sabido o que ia te acontecer, voltarias a fazer?

Voltaria a fazer porque estou convencida de que há que cobrir a necessidade do outro. As pessoas estão esperando que os dirigentes lhes resolvam os problemas. Lamentavelmente, muitos dirigentes não resolvem os problemas dos outros, mas sim os próprios.

Do que mais sinto falta agora que estou encarcerada em minha casa, e o que mais sentia falta na prisão é da militância. Como diz a Cristina (Kirchner), não me arrependo de haver trabalhado tanto. Do que sim às vezes me arrependo, embora arrependimento seja uma palavra forte, é de haver dedicado tanto tempo à organização e pouco à família. Porque meus filhos também se dedicaram à militância e talvez nos juntássemos um domingo a cada 20 dias e uma família “normal” faz um pouquinho mais…

O que ou quem a manteve fora da prisão e em sua detenção domiciliar? 

Me mantiveram viva, apesar de minhas duas tentativas de suicídio – mostra as marcas nos pulsos – os companheiros que estavam resistindo e, sobretudo, minha família. E o esforço de muitos companheiros que não se entregaram ao governo de turno e preferiram militar e buscar algum bico para sobreviver. Isso foi sacrificado. Muitas noites me ponho a pensar nos que não me traíram. 

Alguns traíram?

Sim. Mas algumas traições são entendíveis e outras não. A alguns apertaram demasiado a família. Mas outros negociaram a liberdade e se beneficiaram e foderam 5000 companheiros da organização Tupac Amaru que tinham um trabalho seguro com um salário que recebiam todos os meses. E pensar que éramos a terceira força da província que oferecia trabalho genuíno e estes companheiros só pensaram neles mesmos. Está bem, cada um escolhe onde quer estar. Não os culpo nem lhes tenho rancor.

Que lugar ocupa teu marido, Raúl Noro?

É um pilar importante. É meu companheiro, é meu gordo. Meu fio terra. E meus filhos, e meus netos também. Criei 16 filhos do coração e estou orgulhosa de cada um deles. Hoje continuam caminhando. E lutam por manter bem os seus filhos. 

Tu crês que Gerardo Morales te odeia?

A esta altura sim. Porque eu não sinto que isto seja uma competição política. É um ódio visceral que ele sente contra mim. Um ódio que não entendo: ele age como se eu tivesse tirado alguma coisa dele. E eu nunca tirei nada. Nem sequer protagonismo. O que me fez viral com o que me fez foi ele. E não tem limites. 

Por que dizes isso?

Há seis ou sete anos mandou queimar o nicho do meu pai no dia seguinte de sua morte. Começamos a averiguar e nos disseram que quem havia mandado fazer isso era Gerardo Morales. Havia garrafões de gasolina jogados no cemitério. Apareceram os meninos que o fizeram e me pediram perdão: “desculpe, nos pagaram e estávamos drogados”.

Eu não entendia tanta maldade. Falei com o bispo de Jujuy que me consolou dizendo-me que são coisas que não se tem que fazer e me pediu que se trata de manter a calma. E o Papa me chamou e recomendou que me acalmasse, me disse que essas coisas acontecem às vezes e que a gente tem que manejar com toda a tranquilidade porque foi uma provocação. Tinha razão. Este tipo sempre nos quis levar pelo caminho da violência. Me tratou de narcotraficante, de assassina. Do único que ainda não me acusaram foi de violação.

O que lhe diria hoje?

O que venho dizendo desde o momento em que ele me encarcerou. Dentro do meu coração, já o perdoei. É digno de lástima. Crê que o único que tem direito a ter tudo é ele. A família dele e os amigos empresários. E não pensa naquele que votou nele: o povo.

Eu tenho cinco policiais na porta em uma caminhonete quatro por quatro. E na outra esquina tenho um de civil. E outro mais atrás. Eu não vi nenhum detido em prisão domiciliar tão controlado. Nem os genocidas. A lei não diz isso: só teria que ser controlada pelo patronato de liberados. Vivo um ataque permanente por parte do governador.

A única coisa boa que nos passou nesse quatro anos é que Morales por um lado descuida e nega as obras que fizemos, e por outro se dedica a inaugurá-las como próprias. Se contradiz: ou não fizemos nada, ou fizemos tudo o que ele está inaugurando. Só lhe peço que diga publicamente que quem as fez fomos nós. Inclusive o Parque Aquático maior do NOA, que, além disso, o dividiu em três partes e está vindo abaixo. E sua gestão é ruim: continuam fechando comércios na província e ele vai à Casa Rosada pedir dinheiro. Melhor que preste contas sobre o que recebeu de coparticipação e os empréstimos internacionais que tomou.

Gerou esperança o triunfo de Alberto e Cristina?

Sim. Estão beneficiando os aposentados, os desempregados. Que nosso país possa voltar a ser reconstruído me gera uma enorme esperança! A Argentina recuperou a alegria.

E tens esperança de sair?

Muita. Eu gostaria que terminasse a agonia, a de meus companheiros também. Somos reféns da política opositora.

De que desfruta agora, dado que não podes sair?

Desfruto de ver o amanhecer do terraço. Se falta algo, me ponho a fazer tarefas domésticas. E falo muito com meus companheiros, trato de que se capacitem. Quero que se convertam em melhores dirigentes que eu. Também estou escrevendo um livro sobre minha vida com Reynaldo Castro, um escritor e poeta que vem uma vez por semana. 

Crês em Deus?

Que pergunta difícil. Creio à minha maneira. Por exemplo, quando me sento para comer ou tomar um mate cozido agradeço a Deus. Digamos que creio em Deus, mas não nos homens. E agradeço muito à mãe terra, à Pachamama.

O que foi o pior e o melhor que te aconteceu nestes quatro anos? 

Tenho muita dor. Nunca imaginei que iam em tratar tão mal injustamente. E o que aprendi é que há que reforçar a preparação de meus companheiros. Nunca nos sentamos para formar quadros politicamente porque a prioridade sempre era fazer coisas. 

Com o que sonhas?

Com que os políticos discutam ideias em vez de destroçar famílias. Porque não destroçaram unicamente a mim: destroçaram milhares e milhares tirando seus direitos e sua dignidade. Sonho com que as crianças voltem a comer em suas casas. E com que não nos esqueçamos de Santiago Maldonado e de Rafael Nahuel.

Assista ao vídeo:

Nota:

Milagro fez a entrevista com Página/12 sem se separar do mate. E depois se pôs a preparar o almoço. Nós saímos à rua pela porta de sua casa do bairro Cuya, coisa que ela não pode fazer, quem sabe até quando.

*Tradução: Beatriz Cannabrava

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Romina Calderaro

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