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América Latina: “governos de direita destruíram direitos econômicos e sociais”, diz especialista

Poucas vezes, talvez só depois de grandes enfrentamentos bélicos, viveu a população mundial uma época de incerteza tão grande como a de nossos dias
Ivette Fernández Sosa
Prensa Latina
Havana

Tradução:

Considerada já por alguns analistas como a causa da mãe de todas as recessões, a pandemia da Covid-19 abre interrogações acerca do futuro político e econômico do planeta e, em particular, da América Latina, a região que ostenta a triste condição de ser a mais desigual do mundo.

Para esclarecer algumas incógnitas, Prensa Latina conversou com Pavel Alemán, analista cubano do Centro de Investigações de Política Internacional.

Poucas vezes, talvez só depois de grandes enfrentamentos bélicos, viveu a população mundial uma época de incerteza tão grande como a de nossos dias

Flickr | Cícero R. C. Omena
"Caso mais paradigmático é o Brasil na época Temer-Bolsonaro, que se retrocedeu na proteção dos direitos do trabalho e seguridade social"

Confira a entrevista

Prensa Latina – Considerando o descontentamento na América Latina, e um cenário caracterizado pela entronização de uma crise social e econômica, isso poderia aplainar o caminho para a chegada ao poder de movimentos de caráter mais humanista nesta parte do continente?

Pavel Alemán – Os processos políticos latino-americanos tiveram nas últimas décadas uma notável participação dos movimentos sociais.

No final de 2019 e início de 2020, esses movimentos sociais foram protagonistas de uma onda de manifestações com duração variável e que teve como contrapartida uma repressão sem piedade e tímidos esforços para dialogar e negociar por parte dos governos, no Equador, Chile, Colômbia e no governo de fato da Bolívia.

Uma das possíveis opções sobre a mesa é a configuração de novas alternativas políticas que assumam como governo pelo menos em uma parte desses países.

No entanto, não se pode subestimar a capacidade de articulação e de relegitimação das elites políticas mais conservadoras, as quais podem realizar tímidas concessões ou mesmo apoiar outra alternativa política a partir da Direita, ou ainda com participação de setores mais moderados a partir da Esquerda, para evitar a radicalização desses movimentos sociais, particularmente caso essa radicalização tenha um componente antisistêmico.

Lamentavelmente, a Esquerda política tradicional ou mesmo as forças políticas que governaram com programas populares de inclusão social, parecem ter ficado, senão à margem, pelo menos para trás.

As críticas quanto a sua forma de relacionar-se com os movimentos sociais ou quanto a seus erros na gestão do governo, tiraram dela capacidade para articular esses movimentos sociais, uma parte dos quais têm reivindicações muito pontuais e não interconectadas com outras demandas de outros setores da sociedade.

Alguns economistas, como Joseph Stiglitz, consideram que o neoliberalismo está atualmente em terapia intensiva; poderia o atual contexto implicar em certa medida em um abandono das políticas neoliberais, mesmo em se tratando de governos de direita?

As políticas neoliberais provocaram um dano considerável ao tecido social e à capacidade dos Estados de ser um ator econômico importante e com capacidade redistributiva da renda nacional.

Os governos com uma visão de Direita muito conservadora privatizaram os ativos do Estado, atacaram a base jurídica que consolidara durante décadas um conjunto de direitos econômicos e sociais, sobretudo a seguridade social e trabalhista.

O que vimos nos últimos anos foi um desmantelamento brutal de muitas políticas que na América Latina foram assumidas como parte das obrigações do Estado. O caso mais paradigmático é o Brasil na época Temer-Bolsonaro, em que se retrocedeu na proteção dos direitos do trabalho e de seguridade social até a época da segunda pós guerra mundial.

É possível que, nas circunstâncias atuais, e tomando como referência o impacto negativo da pandemia do Sars-Cov-2 nos sistemas de saúde precarizados, as elites políticas consintam em que as políticas econômicas devam ser suavizadas e o Estado deva recuperar parte de suas funções para garantir certos direitos sociais.

Mas isto não é atuar de boa fé, mas sim levados pela atual conjuntura. Resumindo: a pandemia do coronavírus tornou-se um duro desafio para a segurança entendida em sua forma multidimensional, portanto tornou-se uma questão de segurança nacional.

As reformas que se realizem estarão destinadas a permitir que o Estado assuma funções que em grande parte tinham sido transferidas ao setor privado.

O pedido de empréstimos ao FMI ou ao Banco Mundial, não acarretaria, por exemplo, uma reprodução das políticas neoliberais?

As dívidas públicas e privadas que os governos contraem tendem a ser um problema para o funcionamento da economia na mesma medida em que em época de crise é difícil cumprir as obrigações do pagamento da dívida e dos juros aos credores.

Boa parte dos países latino-americanos tinham ido se desendividando na década anterior e início desta, de maneira que a dívida representava uma porcentagem menor de seu PIB.

No entanto, embora essa tendência tenha começado a reverter-se ainda na época dos governos populares, aprofundou-se notavelmente o endividamento com os governos de Direita que lhes sucederam.

Isso contraiu os gastos públicos, precarizou a prestação de serviços sociais e colocou alguns Estados latino-americanos em uma situação complexa, quase de default, o que implica também em uma pior qualificação do risco-país, que desestimula os investimentos externos.

No entanto, os processos de renegociação da dívida ou de solicitação de empréstimos às Instituições Financeiras Internacionais (IFO) não são necessariamente lineares. Quando a soma da dívida é alta demais, os credores correm o risco de não receber pagamento algum, o que poderia ser visto como uma vantagem na hora de negociar por parte dos devedores.

É por essa razão que se combinam diferentes opções: liquidação da dívida, moratória de pagamentos (para recuperar a capacidade de poder fazê-los), renegociação do montante e dos prazos.

De maneira que o assunto da dívida e dos créditos não é apenas uma questão de finanças, mas é também uma questão de vontade política, expressa em sua capacidade para negociar com os credores.

Um governo carente dessa vontade pode levar ao extremo de assumir condicionamentos políticos como parte do processo de negociação de créditos, como parece ser o caso do governo de Lenín Moreno no Equador, que assumiu a ignóbil tarefa de entregar Julian Assange às autoridades britânicas em troca de um crédito.

Quando se acredita que predominará um maior protecionismo comercial e mais nacionalismo, poderia apesar de tudo ocorrer uma maior integração econômica?

O protecionismo é hoje uma camisa de força para o capital transnacional. Não pode esquecer que ainda se trava uma disputa muito séria entre um setor com visão estadocêntrica, ou pós Westfaliano, e outro setor globalista. A este segundo correspondem não apenas os acordos no marco do GATT, como da OMC.

A estes segundos correspondem todos os acordos de livre comércio, de qualquer geração, inclusive os que dão corpo aos processos de integração econômica sub regional ou regional.

E na via de aprofundamento desses acordos em um entorno de globalização neoliberal, estavam os frustrados megablocos ou mega acordos inspirados pelos obamistas, com seus convênios mais profundos ou inclusivos de novos temas na agenda de negociação, os OMC plus e OMC X.

Agora, a integração econômica não se dá à margem da política. E por si só não é solução para nada, senão apenas para o que se expressa como vontade política daqueles que concordam entre si em integrar-se.

Creio que quando alguém fala de integração sempre deve perguntar-se: com quem?, para que?, quais são os limites dessa integração?

Então tomemos como exemplo a integração andina que é tão antiga, e que tinha aspirações e projetos setoriais tão ambiciosos, que consideravam o fato de que não todos os seus membros tinham o mesmo nível de desenvolvimento e por isso tinham que receber um tratamento especial. Mas isso foi na época de governos nacionalistas progressistas. E, em um contexto bipolar, da Guerra Fria.

Isso foi retomado no acervo jurídico da ALADI, e, também no da ALBA-TCP. Mas, depois, nesses países andinos mudaram os governos, os interesses políticos, e o que se privilegiou foi o livre comércio. E foi desaparecendo da perspectiva da integração aquilo das taxas comuns.

E, por outro lado, as transnacionais foram se apropriando das dinâmicas dos processos de integração, e cada vez mais uma parte importante desse comércio intrarregional era comércio intra empresas.

Poderia enumerar algumas das vantagens que a integração proporciona à região?

Uma integração que partisse da complementaridade das economias, do aproveitamento da economia de escala, claro que poderia facilitar uma melhor inserção das economias da região nas cadeias globais de valor, nos fluxos de comércio e de capital.

Voltada para a solução de problemas sociais prementes, poderia facilitar a satisfação das principais necessidades materiais da população latino-americana. Dou como exemplo a necessidade de energia e especialmente daquela que provoca menor impacto ambiental.

Uma aliança decidida entre todos daria como resultado importantes créditos, com o intercâmbio de tecnologia e de know how. Facilitaria a atualização da informação geológica sobre as jazidas potenciais. Agiria como um ator de peso na fixação dos preços do barril de petróleo, e a redução da tarifa energética associada ao custo dos processos produtivos.

Também facilitaria como primeiro passo, a progressiva transição de uma economia baseada no consumo de petróleo para gás natural. E seria a fonte de recursos para financiar o grande salto para uma matriz energética com maior protagonismo das fontes renováveis e alternativas.

Ivette Fernández, Jornalista da Redação de Economia de Prensa Latina

Prensa Latina, especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.

Tradução: Ana Corbusier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Ivette Fernández Sosa

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