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Entenda o golpe na Bolívia e por que eleições de outubro podem ser a chance de revertê-lo

Com os sucessores legítimos de Evo Morales fora do caminho, a senadora Jeanine Áñez, autoproclamou-se presidenta, com apoio das Forças Armadas
Fábio Castro
São Paulo (SP)

Tradução:

Na lista recente das reviravoltas políticas em países latino-americanos, com a substituição de governantes de esquerda ou “progressistas” por políticos a serviço das oligarquias locais e dos interesses dos EUA, a mudança de rumo que ocorreu na Bolívia em 10 de novembro de 2019 foi, entre todas, a mais claramente golpista – e também a mais violenta, acompanhada pelas tenebrosas sombras do fascismo e do racismo. 

Morales, sob o risco real de ser assassinado, renunciou e partiu para o exílio. Também renunciaram, igualmente debaixo de ameaças, o vice-presidente Álvaro García Linera, o presidente da Câmara dos Deputados, Victor Borda, e a presidenta do Senado, Adriana Salvatierra – os próximos na linha sucessória. Consumava-se o golpe

Em contraste com a discreta conduta dos militares nos golpes em países vizinhos (Paraguai, Brasil), na Bolívia quem deu a cartada decisiva para a derrubada do presidente Evo Morales foi um general, Williams Kaliman, a principal autoridade militar do país.

Com os sucessores legítimos de Evo Morales fora do caminho, a senadora Jeanine Áñez, autoproclamou-se presidenta, com apoio das Forças Armadas

Reprodução
Em contraste com a discreta conduta dos militares nos golpes em países vizinhos, na Bolívia quem deu a cartada decisiva foi um general.

Em meio a um cenário de caos em La Paz e outras cidades importantes, com as forças policiais amotinadas contra o governo e milícias de extrema direita tocando o terror, espancando integrantes da esquerda e incendiando casas, caberia a Kaliman, como chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, pôr as tropas na rua, em cumprimento ao dispositivo constitucional que atribui aos militares a missão de garantir a ordem em situações extremas, como aquela. Mas não. Em vez disso, o general apareceu diante dos principais meios de comunicação rodeado por um grupo de outros altos oficiais para “sugerir” ao presidente que apresentasse a renúncia. 

Risco de assassinato

Um conselho difícil de recusar. Morales, sob o risco real de ser assassinado, renunciou e partiu para o exílio. Também renunciaram, igualmente debaixo de ameaças, o vice-presidente Álvaro García Linera, o presidente da Câmara dos Deputados, Victor Borda, e a presidenta do Senado, Adriana Salvatierra – os próximos na linha sucessória, todos eles integrantes do partido governista, o Movimento ao Socialismo (MAS). Enquanto isso, os policiais disparavam balas de verdade contra manifestantes pró-governo em diversos pontos do país (no total, cerca de 60 bolivianos morreram enfrentando os golpistas).

O Palácio Quemado foi invadido pelo líder da extrema direita racista de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, que ingressou no gabinete presidencial com uma bíblia na mão, enquanto, nas ruas, os partidários queimavam a Whipala – bandeira indígena multicolor adotada na Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia como um símbolo tão importante quanto a bandeira nacional.

Com os sucessores legítimos de Evo Morales fora do caminho, a senadora Jeanine Áñez, até então conhecida apenas pelas posições fundamentalistas cristãs, autoproclamou-se presidenta, com apoio das Forças Armadas. Ela assumiu o poder de forma interina, com o pretexto de que sua função seria apenas a de convocar novas eleições. Tornou-se “a primeira ditadora da história do continente”, conforme escreveu Renaud Lambert no Le Monde Diplomatique.

Em dez meses de existência, o governo Áñez se revelou um completo desastre. A incapacidade de organizar um Estado em desmanche, somado aos efeitos econômicos devastadores da pandemia de coronavírus, expuseram o caráter do golpe de Estado

Em dez meses de existência, o governo Áñez se revelou um completo desastre. A incapacidade de organizar um Estado em desmanche, somado aos efeitos econômicos devastadores da pandemia de coronavírus, expuseram o caráter do golpe de Estado. O que mais se discutiu no país foram os perversos processos de corrupção institucional que se estabeleceram, entre os quais o escândalo da compra, pelo ministro da Saúde, Marcelo Navajas, de 170 respiradores espanhóis superfaturados que jamais chegaram aos pacientes da Covid-19 aos quais se destinavam. Mesmo assim, Áñez entrou na disputa eleitoral, com a clara estratégia de ganhar tempo para inviabilizar a candidatura do MAS por meio de lawfare. Foram três prorrogações da data do pleito. A última delas provocou uma gigantesca mobilização de camponeses favoráveis ao MAS, que bloquearam as estradas bolivianas em centenas de pontos ao mesmo tempo, exigindo a imediata realização das eleições, marcadas finalmente para 18 de outubro.

Candidato amplo

Nesse cenário, a estratégia do MAS foi fortalecer a candidatura de Luis Arce, que em quase todo o período Morales foi o ministro da Economia. A percepção de que Arce é um excelente administrador sinaliza a aposta em um nome que, além de agradar aos militantes do MAS, tem o potencial de disputar o voto de eleitores centristas, atraídos a votar no principal candidato opositor, Carlos Mesa, um neoliberal que impulsionou a escalada golpista de 2019 sem se comprometer com o extremismo de Áñez e de Camacho. Dono de uma empresa de comunicação de massa, Mesa era o vice em outubro de 2003 quando o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada fugiu para os Estados Unidos após massacrar manifestantes que reivindicavam a nacionalização das jazidas de gás natural. Assumiu o governo, mas renunciou dois anos depois, em meio a uma crise provocada pela recusa em assinar uma lei, votada em plebiscito e aprovada pelo Congresso, com essa mesma medida.

Abriu-se, à época, uma crise institucional que culminou com a realização das eleições antecipadas em que se saiu vitorioso o principal líder dos movimentos sociais, Evo Morales, com 53% dos votos. Atualmente, Morales comanda a campanha masista a partir do seu exílio na Argentina. Tentou disputar uma vaga de senador pelo departamento (província) de Cochabamba, mas teve sua candidatura bloqueada pela justiça eleitoral, por pressão do governo golpista.

Contra e a favor

As eleições estarão marcadas mais uma vez pela polarização entre os que estão a favor e contra o MAS. As pesquisas mais confiáveis apontavam, na segunda metade de setembro, que Arce tinha apoio para alcançar os 40% de votos suficientes para ganhar a eleição no primeiro turno, uma vez que o oponente mais próximo, Mesa, contava com apenas 26%. Pela lei boliviana, um candidato que obtenha 40% dos votos válidos é declarado vencedor, sem a realização de um segundo turno, caso alcance uma diferença de, no mínimo, 10% em relação ao segundo colocado.

A divulgação dessa pesquisa levou Áñez a se retirar da disputa, em 17 de setembro, quando estava em quarto lugar nas intenções de votos, com cerca de 10%, e em queda. Em discurso pelas redes sociais, conclamou os bolivianos a se unirem ao redor do candidato que tiver mais chances de derrotar o MAS. “Se não nos unirmos, Morales volta”, alertou. Nesse momento, Camacho já se posicionava em terceiro lugar, com 14%, e não demonstrava a mínima vontade de desistir em favor de Mesa.

Outras figuras da direita boliviana também estão (ou ainda estavam) na disputa, entre as quais o ex-presidente Jorge Tuto Quiroga e o pastor evangélico Chi Hyung Chung (de origem sul-coreana), ambos com índices magros de intenções de voto, em torno dos 3% a 4%, mas não totalmente desprezíveis. Nas eleições do ano passado, Chi obteve o terceiro lugar, com 9% dos votos.
A unificação eleitoral das forças políticas conservadoras que se aliaram no golpe de 2019 é, de fato, indispensável para impedir que a esquerda reconquiste nas urnas o poder que lhe foi tirado pelo golpe. Na prática, essa é uma tarefa complicada, seja pelas ambições políticas envolvidas, seja pela rivalidade regional que divide a Bolívia entre a região andina marcada pela forte presença indígena, no oeste, onde se situa La Paz, e as planícies do leste, a região da Meia Lua, onde se destaca a cidade de Santa Cruz, reduto da elite branca do agronegócio e da direita mais agressiva.

Mesa, com sua força concentrada no oeste, principalmente entre a classe média urbana, desponta como o herdeiro potencial dos votos de Áñez, o que o habilitaria a chegar em segundo lugar com uma diferença inferior a 10%, levando a eleição a um segundo turno em que a aliança da direita lhe daria grandes chances de derrotar o candidato do MAS. Para isso, no entanto, será necessário um acordo com Camacho, que lidera as pesquisas em Santa Cruz e está utilizando as eleições para fortalecer sua posição como líder regional e para ampliar o número de parlamentares sob seu comando.

Nova liderança

Seja qual for o resultado das eleições, uma provável consequência é o deslocamento de Morales da posição que vinha exercendo desde a primeira eleição presidencial, em 2005, como o líder incontrastável e absoluto de um amplo leque de atores da esquerda boliviana que se agregou politicamente com a criação do MAS, no final da década de 1990. Uma vitória de Arce consagrará uma nova liderança no país e no partido e, certamente, um novo estilo de ação política.

A Bolívia de 2019 apresentava um desempenho econômico invejável, no contexto sul-americano, com taxas de crescimento superiores a 4% nos três anos anteriores, e seguia o itinerário da melhoria constante nos indicadores sociais que permitiu ao país reduzir a pobreza de 59,6% em 2005 para 34,6% em 2018

A conduta de Evo (como é chamado pelos simpatizantes), tanto no período anterior ao da crise em que foi derrubado quanto nos meses transcorridos desde então, é fator de discórdia no interior do MAS, conforme aponta Katu Arkonada, um militante de esquerda que emigrou do País Basco para se engajar nas fileiras masistas, onde se tornou uma referência no debate político. “É grande o descontentamento das bases”, escreveu recentemente. “Aconteça o que aconteça, mas sobretudo se ocorrer uma derrota, o MAS de Evo Morales deverá enfrentar um processo de reflexão e de autocrítica para não repetir os erros cometidos nos últimos tempos, tanto no governo como no exílio, um processo de renovação de dirigentes que vá bem mais além das burocracias”.

Morales é o único, entre os integrantes do grupo de presidentes sul-americanos que simbolizavam o chamado “progressismo” – figuras como Chávez, Lula, Correa e o casal Kirchner, além dele próprio –, a ter a liderança questionada pelas próprias bases após o início da maré direitista na região. A relativa fragilidade política no pós-golpe tem a ver com um traço peculiar da inversão política ocorrida na Bolívia em 2019.

Lá, a derrubada do governo progressista não foi antecedida por uma crise econômica nem por denúncias devastadoras de corrupção, como ocorreu no Brasil. A Bolívia de 2019 apresentava um desempenho econômico invejável, no contexto sul-americano, com taxas de crescimento superiores a 4% nos três anos anteriores, e seguia o itinerário da melhoria constante nos indicadores sociais que permitiu ao país reduzir a pobreza de 59,6% em 2005 para 34,6% em 2018. Os casos de corrupção apresentados na mídia empresarial – alguns verdadeiros; outros, inventados – estiveram longe de causar o impacto verificado em outros países. Morales escorregou foi na política.

Mobilização em queda

Uma sublevação contra Evo Morales não estava no horizonte de ninguém. Mas, nas três semanas decisivas entre outubro e novembro de 2019, a oposição mobilizou-se com mais firmeza que as bases “evistas” que, depois de quase 14 anos no poder, foram perdendo capacidade de mobilização enquanto o Estado ia substituindo as organizações sociais como fonte de poder e burocratizando o apoio ao “processo de mudança”. Em poucas horas, aquele que foi o governo mais forte da Bolívia nos últimos 100 anos desmoronou por completo.

Cinco anos antes, em 2014, Evo foi reeleito para um terceiro mandato com mais de 60% dos votos. Esse era um indicador de que, apesar das contradições e das dificuldades em avançar o “processo de mudança”, o líder indígena e camponês ainda possuía muita legitimidade entre a população. A direita não conseguiu propor um nome que pudesse vencer as eleições ou ao menos polarizar radicalmente o cenário político nacional, como aconteceu, respectivamente, na Argentina (com Mauricio Macri, eleito em 2015) e no Brasil, com a Operação Lava-Jato e a campanha do impeachment.

Foi uma avaliação otimista do prestígio de Evo Morales, juntamente com a preocupação diante do cenário de avanço das forças de direita nos países vizinhos e de uma contraofensiva dos EUA em escala continental, o que levou o MAS, em 2016, a submeter a uma consulta popular a possibilidade de reeleição indefinida, o que viabilizaria a candidatura de Morales para um quarto mandato.

O Caso Zapata eclodiu quando um jornalista apresentou uma suposta certidão de nascimento atestando que Morales seria o pai de um menino de nome Ernesto Fidel Morales Zapata, nascido em 2007 de um relacionamento entre o presidente e uma moça chamada Gabriela Zapata. A 18 dias do referendo, provou-se que era tudo mentira. Era tarde

Pela Constituição boliviana, é permitida apenas uma reeleição para cargos executivos – e a primeira eleição de Morales foi excluída da contagem porque ocorreu nos marcos de uma legislação anterior. A cientista política Soledad Valdivia Rivera relembra que o presidente fechou o ano de 2014 com 75% de aprovação e o de 2015 com 65%, o que pavimentaria a chance de concorrer às eleições de 2019.

Derrota no referendo

Ao contrário do que esperava o governo, o referendo em 2016 foi a pedra de toque para a radical polarização do país. No dia 21 de fevereiro, o famoso 21F, a população decidiu pelo “Não”, ou seja, Evo Morales não poderia concorrer às eleições de 2019. Um resultado estreito, por uma diferença de 2,6%, pouco mais de 130 mil votos. Foi a primeira derrota de Morales. A interpretação de Rivera é bastante elucidativa sobre o que estava em jogo no referendo e quais as armas foram usadas. A autora indica que, entre outras coisas, ocorreu a participação ativa da mídia nas redes políticas que influenciaram os resultados do pleito, com a manipulação da opinião pública no chamado Caso Zapata.

Tal episódio colocou em xeque a integridade da liderança política de Evo Morales por meio da montagem de um cenário novelístico moralista que envolvia sexo, abandono de filho e corrupção internacional, entre outras coisas. O Caso Zapata eclodiu quando um jornalista da TV comercial apresentou uma suposta certidão de nascimento atestando que Morales seria o pai de um menino chamado Ernesto Fidel Morales Zapata, nascido em 2007 de um relacionamento entre o presidente e uma moça chamada Gabriela Zapata. A essa notícia, agregou-se em seguida uma outra de que Zapata teria utilizado sua ligação com o presidente para reivindicar vantagens em contratos do governo com uma empresa chinesa, para a qual (segundo dizia) teria trabalhado como lobista.

Era tudo mentira. A criança jamais existiu, conforme a própria Zapata confirmou mais tarde, e a denúncia de corrupção não tinha pé nem cabeça.

O fato é que o presidente e sua equipe não foram capazes de montar uma defesa adequada perante as acusações. Em suas declarações Morales (que é solteiro) se atrapalhou, não foi capaz de negar a existência de um filho abandonado e chegou a afirmar que recebeu a notícia de que o menino tinha morrido pouco depois do nascimento. A suposta mãe se recusou a apresentar a criança, alegando que fazia isso para proteger sua privacidade. Enfim, uma confusão dos demônios, que só se esclareceu quando, meses mais tarde, o próprio jornalista que fez a denúncia confessou que a certidão de nascimento era falsa.

Em vez de aceitar a derrota no referendo, Morales cometeu o que talvez tenha sido o maior erro de sua carreira. Insistiu na luta por uma nova postulação presidencial. A direita montou uma estratégia eleitoral com base numa frase, “Bolívia disse não”, ao mesmo tempo em que acusava Morales de “ditador”

Aí, o estrago já estava feito. O timing da acusação, a apenas 18 dias do referendo, foi determinante para que a oposição fortalecesse a campanha e manipulasse a opinião pública a favor do Não.
Não havia tempo para uma investigação adequada checar a veracidade das acusações. O papel da mídia no Caso Zapata foi decisivo para a vitória do Não. Antes da explosão do escândalo, as pesquisas ainda indicavam vitória do Sim, mesmo com toda a oposição articulada ao redor de um projeto comum: derrotar Morales.

Interferência da mídia

Soledad Valdivia Rivera, em livro sobre a política boliviana naquele período, conclui que o Caso Zapata demonstra como a mídia atua politicamente em favor da direita e, por outro lado, refuta as acusações frequentes de que Morales era um ditador e que impunha restrições à liberdade de expressão. Em seguida ao resultado positivo para a oposição, o Caso Zapata foi quase esquecido pelos meios de comunicação. Já tinha cumprido seu papel na cena política.

Em vez de aceitar o resultado do referendo de 21F, Morales cometeu o que talvez tenha sido o maior erro de sua carreira política. Insistiu na luta por uma nova postulação presidencial, recorrendo ao Judiciário com o argumento de que o bloqueio a uma nova candidatura era uma violação aos direitos humanos, já que todos os cidadãos devem ter iguais possibilidades de concorrer aos cargos públicos. No final de 2017 o Tribunal Constitucional aprovou o recurso do presidente, numa decisão cujo efeito prático foi invalidar o resultado do 21F.

Desde o ano anterior, um único tema já dominava completamente a agenda política do país: uma discussão interminável em torno da alternância ou da perpetuação no poder. A direita montou uma estratégia eleitoral com base numa frase, “Bolívia disse não”, ao mesmo tempo em que acusava Morales de “ditador”.

No campo da esquerda, hegemonizada pelo MAS, não houve espaço para discutir a possibilidade da indicação de um candidato alternativo para a sucessão. Sendo o partido um instrumento político dos movimentos sociais, a pressão das organizações camponesas e a força política de Morales, amparado em dois mandatos de forte crescimento econômico e distribuição de renda, além de uma política anticíclica que manteve a estabilidade, ofuscaram qualquer discussão sobre uma possível renovação no poder. O presidente negava a intenção de se perpetuar no palácio, indicando que esse seria o último mandato do binômio Morales-Linera e que despontavam nomes de jovens possíveis candidatos à sucessão em 2025: a já mencionada senadora Adriana Salvatierra e o líder cocalero Andrónico Rodríguez.

Milícias violentas

Entretanto, a insistência na candidatura de Morales promoveu uma mudança qualitativa na polarização política do país. Há indícios da formação de milícias violentas em todo período entre o 21F e as eleições de 2019, fenômeno explícito em algumas demonstrações antidemocráticas, de ódio, contra Morales e o MAS. O foco dessa oposição se situou na região de Santa Cruz, mais exatamente no Comitê Cívico, que se aglutinava sob a liderança de Camacho.

Há ainda outro fator importante nessa história. A Bolívia apostou suas fichas do futuro na estratégia de industrialização do lítio no país, tendo como fundamento a vantagem comparativa de possuir as maiores reservas dessa matéria-prima no mundo. Apesar de o projeto avançar lentamente e ainda constar da esfera das perspectivas, o lítio entrou de vez no contexto da polarização política, quando outro comitê cívico, o de Potosí (ComciPo), imprimiu um tom de desafio às reivindicações ao redor do tema dos royalties da exploração de lítio para a região, acusando o governo de entreguista pela associação da estatal boliviana YLB com a empresa alemã ACISA. Marco Pumari, o líder do Comcipo, iniciou uma greve de fome justamente 20 dias antes das eleições do ano passado (mais uma vez, o timing perfeito).

Em meio a um cenário de tensão política crescente, as eleições ocorreram em 21 de outubro de 2019, tendo como resultado a vitória de Morales em primeiro turno, com 47% dos votos e uma pequena vantagem acima dos 10% de diferença sobre o segundo colocado, Carlos Mesa. Mas a forma de contagem dos votos e a decisiva participação da Organização dos Estados Americanos (OEA) foram as faíscas para explodir o caldeirão boliviano. Os movimentos de classe média ocuparam as ruas e começaram a organizar paralisações ao redor dos comitês cívicos, sob a liderança de Camacho. Agitou-se a denúncia de fraude nas eleições.

Em meio a um cenário de tensão política crescente, as eleições ocorreram em 21 de outubro de 2019, tendo como resultado a vitória de Morales em primeiro turno, com 47% dos votos. Mas a forma de contagem dos votos e a decisiva participação da OEA foram as faíscas para explodir o caldeirão boliviano

Morales se viu pressionado, pois, além da capilaridade, os protestos foram marcados por uma escalada de violência. Quando, acuado, o presidente se dispôs a aceitar a anulação do resultado e a concorrer em novas eleições, já era tarde. A oposição, sentindo a fraqueza do presidente e a ausência de mobilizações significativas em seu apoio, partiu para o golpe, com uma brutalidade e audácia que deixaram o campo masista em estado de choque.

Encruzilhada eleitoral

Agora o golpe boliviano tem uma chance efetiva de ser revertido – ou, ao contrário, o risco de ser confirmado pela via das urnas. É uma eleição que terá um impacto muito além das fronteiras da Bolívia. O resultado poderá reforçar o giro direitista na América do Sul ou sinalizar, na esteira da eleição da dupla Alberto Fernández e Cristina Kirchner na Argentina, para uma retomada do protagonismo da esquerda na região. Aliás, a presença da liderança “progressista” no país vizinho é uma mudança qualitativa no cenário que rodeia a eleição boliviana e pode ser um elemento determinante para a afirmação dos resultados do pleito em caso de vitória do MAS, muito diferente do que aconteceu em 2019, quando o país estava cercado pelo véu Bolso-Macri. Isso, se os chefes políticos da oligarquia, assessorados de perto por operadores estadunidenses ligados à gestão de Donald Trump, não deflagrarem um “golpe dentro do golpe” (desconfia-se que o governo de Áñez esteja conspirando para declarar a ilegalidade do MAS), o que transformaria a Bolívia na primeira ditadura sul-americana ostensiva e escancarada no século 21.

* Igor Fuser é professor no Bacharelado em Relações Internacionais e nos programas de pós-graduação em Energia e em Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC (UFABC).


* Fábio Castro é economista, doutorando em Economia Política Mundial na Universidade Federal do ABC (UFABC) e professor no ensino superior.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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