Alicia Castro renunciou a sua indicação como embaixadora argentina na Rússia. A decisão da ex-deputada, com longa carreira diplomática, foi comunicada nas últimas horas ao governo nacional em uma carta em que expressou seu desacordo com a política de Relações Exteriores, depois que o Palácio San Martín condenou a Venezuela diante do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU).
“Hoje quero apresentar minha renúncia como embaixadora, porque não estou de acordo com a atual política de Relações Exteriores”, diz a extensa carta enviada por Castro, que fora designada como futura embaixadora na Rússia e cuja indicação ainda não foi considerada no Senado, devido à pandemia.
Durante uma entrevista radiofônica, Castro assegurou que o presidente Alberto Fernández comunicou-se com ela para que “reveja sua decisão”. “Respondi-lhe que caso leia minha carta com cuidado vai entender quais são os motivos” e que “não era conveniente que assumisse o papel de embaixadora”, relatou.
Em sua carta, Castro afirmou que a posição da Argentina acompanhando a denúncia por violações aos direitos humanos na Venezuela “constitui uma dramática guinada em nossa política exterior e não difere em absoluto do que teria votado o governo de (Mauricio) Macri”.
Infobae
A diplomata Alicia Castro renunciou a sua indicação como embaixadora argentina na Rússia.
Explicou que “o Grupo de Lima foi criado durante a restauração neoliberal por um grupo de governos de extrema direita, estimulados e financiados pelos Estados Unidos com dois objetivos explícitos: promover uma ‘mudança de regime’ na Venezuela” e “desarticular o bloco regional”.
Por este motivo, e caso fosse designada embaixadora, “não poderia seguir instruções da Chancelaria com que não concordo e que considero contrárias ao interesse da Nação”. “Minha posição e meu ideal de construção da Pátria Grande é hoje, como foi durante os dois governos Kirchner, e continuará sendo, firme e inalterável. Sempre”, afirmou.
Durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner, Alicia Castro foi embaixadora na Venezuela e depois no Reino Unido. Em sua estadia em Caracas criou fortes laços com o então presidente Hugo Chávez. E depois de conhecida a condenação argentina na ONU, criticou o chanceler Felipe Solá. Qualificou de “lamentável a guinada de nossa política exterior” e o questionou por votar alinhado com os governos de Jair Bolsonaro (Brasil), Sebastián Piñera (Chile), Iván Duque (Colômbia) e Martín Vizcarra (Peru).
Não foi a primeira vez que Castro criticou Solá. Já o fizera em julho passado e no Twitter, quando o titular do Palácio San Martín qualificou de “autoritário” o governo de Maduro.
Também tinham surgido algumas diferenças com a Chancelaria por um suposto pedido de remodelações na residência oficial em Moscou. E em outra oportunidade questionara o secretário de Assuntos Estratégicos, Gustavo Beliz, quando este publicou uma coluna sobre o plano América Cresce, de Washington, onde considerou que os “Estados Unidos se posicionaram uma vez mais como sócio proativo para o desenvolvimento da América Latina”.
A carta de renúncia à indicação foi publicada em La García.
A carta completa de Alicia Castro:
Quero agradecer ao governo nacional, em especial a nossa vice presidenta Cristina Fernández de Kirchner, ter-me honrado com a designação como embaixadora na Federação Russa. Tinha planejado minha mudança para abril, mas em março, com o Placet concedido pela Rússia, iniciei o período de isolamento preventivo e obrigatório e formulei minha solicitação formal ao Senado da Nação para que adiasse a análise de minha indicação em função da explosão da pandemia, que materialmente impede os voos para a Rússia e para os cinco países onde haveria correspondência.
A Rússia é um país estratégico na construção de um mundo multipolar, e creio que poderia servir com lealdade, eficiência e patriotismo, e até obter conquistas concretas e reconhecimento para nosso país, como os registrados durante meus dez anos como embaixadora na República Bolivariana da Venezuela e no Reino Unido. Minha maior ambição é que a Argentina se integre aos BRICS e dê assim um salto qualitativo, tanto geopolítico, como econômico e comercial.
Hoje quero apresentar minha renúncia como embaixadora, porque não estou de acordo com a atual política de Relações Exteriores.
Em 6 de outubro, no 45° período de sessões do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, o voto da Argentina, acompanhando a Resolução do Grupo de Lima, constituiu uma dramática guinada em nossa política exterior e não difere em absoluto do que teria votado o governo de Macri. De fato, o Grupo de Lima foi criado durante a restauração neoliberal por um grupo de governos de extrema direta, estimulados e financiados pelos Estados Unidos com dois objetivos explícitos: Promover uma “Mudança de Regime” na Venezuela – com idêntica matriz das operadas pelos EUA no Oriente Médio – e desarticular o bloco regional.
Na década passada tive a honra de participar – como deputada e como embaixadora – do maravilhoso processo de formação da unidade regional, junto com Néstor Kirchner e Cristina Fernandez de Kirchner e os líderes progressistas da Região, Hugo Chávez, Lula da Silva, Fidel Castro, Pepe Mujica, Rafael Correa, Evo Morales, Daniel Ortega, unidos na diversidade. Compreendemos claramente, seguindo o legado de nossos libertadores San Martín, Bolívar, Artigas, que a união da América do Sul é a chave de nossa soberania política e independência econômica. Na UNASUL conseguimos uma institucionalidade supranacional densa e eficaz, que conseguiu evitar dois golpes de estado na Região. E depois formamos a Comunidade de Estados Latinoamericanos e do Caribe (CELAC). Tudo caiu por terra com a chegada de Temer, Macri, Bolsonaro, Lenin Moreno, os golpes no Brasil e na Bolívia com a manipulação do Lawfare e as operações midiáticas. Ninguém esteve mais exposto ao linchamento midiático do que o governo da Venezuela. É bem conhecido como orquestram as Agências Governamentais dos Estados Unidos seus planos de Regime Change: com mentiras justificaram suas invasões militares no Iraque, a destruição da Líbia – e suas pretensões de ingerência direta na política latinoamericana. Cabe perguntar por que o governo dos EUA e o Grupo de Lima não se preocupam com as flagrantes violações dos Direitos Humanos no Chile, na Bolívia, no Brasil, em Honduras, ou na Colômbia – onde foram assassinados 250 líderes sociais signatários dos Acordos de Paz – Acordos que também – lembro com orgulho – foram promovidos por Néstor Kirchner, Hugo Chavez e Fidel Castro. Ninguém pode ignorar hoje que a Venezuela está cercada, submetida a um bloqueio criminoso que priva o povo de remédios, alimentos, insumos essenciais. Contribuir para agravar esse cerco é, pelo menos, irresponsável.
Desde o golpe de estado contra Hugo Chavez, em abril de 2002, não cessaram as tentativas de golpe, assassinato, sabotagem, desabastecimento, ações organizadas de violência para promover o caos.
A maioria dos partidos da oposição não apresentam candidatos às eleições para não validar o triunfo do voto popular, como explicou com provas o ex-presidente Rodriguez Zapatero em Caracas, quando Nicolas Maduro foi reeleito, em 2018. Como não conseguiram derrotar Nicolas Maduro, os EUA apelaram para um presidente “autoproclamado”, Juan Guaidó, que também tem o apoio de várias nações europeias.
Levamos em consideração que, em uma Frente, nem todos pensam igual. Sabemos que há entre nós dirigentes que sempre foram contrários ao socialismo venezuelano – sem nunca terem pisado na Venezuela; e há até alguém que festejou a proclamação de Guaidó.
Mas confiamos em que, independentemente das preferências, o governo da Frente de Todos respeitaria os princípios Ade Não Intervenção nos assuntos internos de outros estados, Resolução Pacífica das Controvérsias, e o princípio consagrado de Igualdade Jurídica dos Estados. A Argentina fez doutrina com estes princípios fundantes do Direito Internacional, a Doutrina Drago, a Doutrina Calvo.
Os países da União Europeia têm tanto direito a imiscuir-se nas eleições da Venezuela, como a Venezuela de intervir nas eleições francesas.
O anticolonialismo é também um imperativo ético.
Em 6 de outubro, no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas foram votadas duas Resoluções. A Res. L.55, que enfatiza a importância de manter o diálogo construtivo e a cooperação com a Venezuela a fim de “reforçar sua capacidade de cumprir suas obrigações em matéria de direitos humanos”; “expressa preocupação com as notícias relativas a supostas restrições ao espaço cívico e democrático, incluídas as denúncias de supostos casos de detenção arbitrária, intimidação e difamação de manifestantes, jornalistas e defensores dos direitos humanos”; celebra a visita da Alta Comissária à República Bolivariana da Venezuela, que ocorreu de 19 a 21 de junho de 2019, e os compromissos com o Governo para melhorar a situação dos direitos humanos no país; exorta o Governo da República Bolivariana da Venezuela a aplicar as recomendações reunidas nos informes da Alta Comissária apresentados ao Conselho de Direitos Humanos em seus períodos de sessões 41º e 44° e pede à Alta Comissária que continue colaborando com a República Bolivariana da Venezuela para fazer frente à situação dos direitos humanos no país e dar apoio substantivo em forma de assistência técnica e fomento da capacidade.”
Esta Resolução que promove e estimula a participação democrática foi votada por vários países, entre outros, o México.
Mais tarde levou-se à consideração a votação da Res. L.43, promovida pelo Grupo de Lima.
Esta Resolução, além de condenar energicamente a Venezuela, em consonância com as expressões da oposição, promove a franca ingerência nos assuntos internos. Decide prorrogar por dois anos o mandato de uma “Missão Internacional Independente” que foi constituída por três pessoas sem representação alguma, designadas pelo Grupo de Lima, que se limitou a receber no Panamá informes por email da oposição venezuelana, que nunca foram constatados. Sugere ainda a consideração de novas medidas.
Para maior amostra de cinismo, expressa preocupação com o tratamento da pandemia Covid-19 na Venezuela que, com 30 milhões de habitantes, tem – segundo dados da OMS – 80.000 contagiados com a Covid-19 e, no total 653 mortos, o que, claramente, mostra um melhor desempenho, monitoramento e cuidado com a saúde pública do que os países que apoiam a Resolução 43, inclusive o nosso.
Isto demonstra, cabalmente, a falta de rigor dos argumentos expostos nesta Resolução, que pretendem demonizar a República Bolivariana da Venezuela, suas autoridades legítimas e seu povo, que resistem heroicamente ao cerco dos Estados Unidos da América e seus aliados.
A Argentina poderia ter optado por abster-se, em todo o caso, se não quisesse comprometer-se com nenhuma das duas Resoluções.
Mas, em vez disso, votou com os países europeus que reconhecem o autoproclamado Guaidó como presidente sem um voto, modalidade que põe em risco as democracias da América Latina. Votou junto com o Reino Unido, quando a Venezuela foi aliada constante e exemplar da República Argentina em nossa luta pela soberania nas Malvinas. Votou junto com o grupo de países latinoamericanos que seguiram de pés juntos as instruções dos Estados Unidos de demolir a Venezuela. A Argentina votou com Bolsonaro, com Piñera, com a golpista Añez, com Lenin Moreno, habilitando-os como porta-vozes dos Direitos Humanos.
Pelo exposto, apresento minha renúncia como embaixadora plenipotenciária na Federação Russa, declino a alta honra e os privilégios vinculados a tão alto e importante cargo.
Não estou saindo da Frente de Todos e Todas, na qual o Kirchnerismo pôs tanta energia, tantos esforços e a maioria dos votos. E construiu com tantos sonhos! Recordo agora vividamente as massas de jovens e velhos militantes felizes e conscientes na histórica Cúpula de Mar del Plata, onde festejamos o repúdio ao Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), o rotundo êxito protagonizado pelos “três mosqueteiros”, como chamou Hugo Chávez a sua aliança indestrutível com Néstor Kirchner e Lula da Silva.
Não poderia seguir instruções da Chancelaria com as quais não concordo e que considero contrárias aos interesses da Nação. Quero agir com responsabilidade e transparência; que ninguém se preocupe ou prejudique por minhas declarações, nem se preocupe em off pelos meios de imprensa comerciais.
Minha posição e meu ideal de construção da Pátria Grande é hoje, como foi durante os dois governos Kirchner, e continuará sendo, firme e inalterável. Sempre.
* Tradução de Ana Corbisier
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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