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Eleições no Peru: Tudo o que você precisa saber para entender a crise que resultou na ida de Castillo ao segundo turno

Pedro Castillo, candidato presidencial pelo Peru Livre enfrenta a candidata de extrema direita Keiko Fujimori
Gonzalo Armúa
Diálogos do Sul
Lima

Tradução:

A maioria das análises recentes sobre a conjuntura eleitoral no Peru concordam em um ponto: a estranheza, a novidade e a de que um personagem “desconhecido” como Pedro Castillo, candidato presidencial pelo Peru Livre, tenha chegado ao segundo turno e que no dia 6  de junho enfrentará a candidata de extrema direita Keiko Fujimori  na disputa pela presidência do país.

Mas mais que de uma realidade caprichosa, este desconcerto fala do desconhecimento sobre o processo político e social na nação andina, dos “rios profundos” que correm pelo país esquecido, mas vivo, deixado para trás mas protagonista, das serras peruanas. Como diz o ditado: existem a ficção, a realidade e o Peru. Mergulhemos nele.

As eleições

O processo político dos últimos anos foi sinuoso. O Peru chegou a estas eleições com um governo de emergência, depois da destituição de Martín Vizcarra em 9 de novembro de 2020. Este,  por sua vez, chegara à máxima instância executiva depois da queda de Pedro Pablo Kuczynski  (mais conhecido como PKK), que também fora destituído.

Apresentaram-se às eleições presidenciais 18 candidaturas, das quais calculava-se que pelo menos seis tinham possibilidades de superar a magra barreira de 10 por cento dos votos. Verónika Mendoza aparecia como a candidata com maiores possibilidades no campo progressista e da esquerda, dado que nas eleições de 2016 ficara a pouco mais de dois pontos percentuais de chegar ao segundo turno. Por sua vez, as opções de direita mais competitivas dividiam-se entre duas variantes fujimoristas: uma representada pelo economista neoliberal Hernando de Soto – assessor econômico de Alberto Fujimori e ideólogo do brutal programa de austeridade  conhecido como o “fujichoque”- e outra, expressa na figura de Keiko Fujimori, filha do ditador que, pelo menos para os e as peruanas, não necessita de maiores apresentações.

Pedro Castillo, candidato presidencial pelo Peru Livre enfrenta a candidata de extrema direita Keiko Fujimori

Reprodução: Montagem
Pedro Castillo, do partido Peru Livre, é o favorito para o segundo turno peruano.

A Oficina Nacional de Processos Eleitorais (ONPE) deu a Pedro Castillo do Peru Livre um claro primeiro lugar, com 19 por cento dos votos, e a Keiko Fujimori, da Força Popular, 13,35 por cento. A diferença, insuperável, deixou De Soto fora do segundo turno. A disputa entre Castillo e Fujimori expressa, portanto, o mais polarizado dos cenários possíveis, pelo menos no que diz respeito à eleição presidencial.

Mas, além disso, Castillo ganharia em 16 das 26 circunscrições eleitorais, e seu partido, em um fato inédito, obteria quase 30 lugares no Parlamento, tornando-se a força mais votada do país. Ainda assim, o cenário parlamentar apresenta-se muito fragmentado entre uma colorida palheta  de cores e forças políticas, que vão desde a direita de aspecto fascista até a esquerda radical, com variantes progressistas, religiosas, antivacina, neoliberais e progressistas, em  combinações nem sempre esperadas.

A história recente

O Peru passa por uma crise profunda em todos os níveis, expressão do colapso do modelo  liberal instaurado a sangue e fogo pelo fujimorismo nos anos 90, e justificado pela “estabilização” do país com a desarticulação, na prática, do Sendero Luminoso.

Essa espiral de decomposição tem em particular uma dimensão política, que se evidencia nas disputas intestinas entre distintas facções dos setores dominantes. Estas lutas de facções geraram nos últimos anos a destituição de vários presidentes, o fechamento do Congresso, o enfrentamento frontal entre o Executivo e o Legislativo, a renúncia de numerosos juízes e de magistrados da Suprema Corte, o processamento e prisão de vários ex presidentes pelo Caso Odebrecht e até o suicídio do ex mandatário Alan García, para citar alguns dos fatos mais notórios.

Entre os golpes palacianos, a corrupção endêmica e o total distanciamento do Estado das necessidades populares, nos últimos anos emergiram distintos processos de mobilização social que têm como principais protagonistas as comunidades que enfrentam os mega projetos  minerários e a luta reivindicatória dos e das docentes. A capital, Lima, também se mobilizou, talvez com mais notoriedade internacional, contra a crise política, o desgoverno e os recorrentes escândalos de corrupção.

O Peru, como outros países do eixo do Pacífico, abriga uma enorme fragmentação territorial e fortes regionalismos. Ali convivem universos praticamente diferenciados, como os da Costa, da  Serra e da Selva, diversos em suas economias, suas culturas, seus modos de vida e suas formas de articulação ao modo de acumulação dominante. A região costeira concentra as maiores  riquezas do país e hegemonizou a própria ideia de “peruanidade”: cosmopolita, ocidental e  decididamente neoliberal.

Na Serra, nos últimos anos, as indústrias extrativas avançaram sobre a economia rural e  camponesa, o que gerou uma convivência – em geral conflituosa – entre enclaves neoliberais hiper desiguais e uma cosmovisão indígena e comunitária com fortes reminiscências incaicas.  Tanto nestas cidades extrativistas como no âmbito rural, os setores populares têm que enfrentar o racismo e o colonialismo das classes dominantes crioulas. A Selva, por sua vez, isolada  geográfica e economicamente, foi teatro de operações de organizações guerrilheiras desde os anos 70, e sofreu em cheio as consequências da “guerra suja” do exército peruano nos anos 90 e também “a guerra contra as drogas” orquestrada pela DEA e pelos Estados Unidos.

É nestas regiões periféricas, afastadas do centro moderno e desigual que é Lima, nos contornos de uma das repúblicas mais centralistas de todo o nosso continente que, uma vez desarticulada a guerrilha do Sendero Luminoso e finalizada a ditadura de Fujimori, começaram a surgir porfiadamente novas formas organizativas camponesas, comunitárias e populares. As lutas antimineiras, em particular, tiveram uma grande relevância neste início do século XXI, e de sua ação organizativa emergiram lideranças indígenas e populares que chegaram inclusive a governos locais e regionais.

Assim, por exemplo, em 2018 a referência ecologista aymara Walter Aduviri conquistou o governo de Puno; Zenón Cuevas fez o mesmo no Departamento de Moquegua; enquanto Vladimir Cerrón 

– do mesmo partido que Castillo – chegou ao governo de Junín. Além disso, as forças populares chegaram ao poder em várias províncias – circunscrições locais, equivalentes aos municípios 

– por meio de forças políticas desconhecidas em Lima e na Costa, mas muito 

arraigadas nos territórios. Cabe destacar que, na zona selvática, os docentes rurais tiveram uma presença única desde os anos 60, e muitos deles aparecem como as referências naturais de suas comunidades. Em um dos episódios de lawfare menos conhecidos na região, várias destas lideranças foram perseguidas, presas e/ou inabilitadas para exercer cargos públicos. É o caso de Walter Aduviri, hoje encarcerado, e também de Vladimir Cerrón, suspenso em seu governo e impossibilitado de candidatar-se à presidência por seu partido, Peru Livre.

A campanha

A vitória de Castillo, surpreendente mas nem por isso casual, responde então a três fatores principais. Em primeiro lugar o processo histórico que acabamos de descrever, que explica o surgimento de novas lutas, novas organizações e novas lideranças nas zonas rurais do Peru. 

Emsegundo lugar, o domínio de uma estrutura com base territorial, presença institucional e recursos locais, que destrói o estereótipo de uma força política precária e improvisada. Em terceiro lugar, o surgimento de uma espécie de outsider de esquerda, identificado com e identificável pelas massas indígenas, camponesas e populares. Um docente rural, mestiço, provinciano, afastado do centro institucional e do discurso liberal-urbano e politicamente correto, capaz de interpelar e representar o cansaço frente à corrupção, a casta política e os poderes de fato.

Por sua origem periférica, o Peru Livre é um partido de escassos vínculos internacionais – se comparado, por exemplo, a Juntos pelo Peru de Verónika Mendoza – e praticamente  desconhecido até ontem do conjunto da opinião pública, das corporações de imprensa e até de parte dos movimentos e partidos progressistas e de esquerda do continente. 

Vale como amostra o que aconteceu na cadeia CNN, que durante a cobertura do domingo não contava sequer com uma imagem de arquivo para apresentar o candidato que encabeçava o processo eleitoral. O Peru Livre, insistimos, é uma força militante, coesa, com arraigo territorial, e com presença em governos locais e regionais.

É esta base logística e organizativa que permitiu a decolagem de uma campanha, austera na aparência, mas que utilizou de forma eficiente seus recursos, por fora dos circuitos “obrigatórios” da grande imprensa e das redes sociais – talvez não tão obrigatórios considerando que, por exemplo, 60 por cento dos e das peruanas não têm acesso à internet. Peru Livre apostou, em vez disso, nas rádios comunitárias, nas idas de povoado a povoado, nos eventos culturais e na inserção nas mídias locais. 

Castillo, no Twitter, não tem mais de 3 mil seguidores, nem maior presença nas outras redes sociais. Foi omitido pela maioria dos meios de comunicação hegemônicos, até que na reta final alguns deles decidiram dar-lhe visibilidade para desbancar do segundo turno Verónika Mendoza. Embora isso não explique a colheita eleitoral de Peru Livre, é evidente que o tiro lhes saiu pela culatra.

O candidato

Pedro Castillo é um dos oito candidatos presidenciais no Peru que não tem nenhum processo judicial aberto. Os outros dez têm ou tiveram processos por corrupção, delitos eleitorais ou irregularidades financeiras.

Embora não seja uma figura desconhecida, o nível de apoio a sua candidatura ultrapassou as expectativas de próximos e de estranhos. Castillo é professor rural, andou muito pelos povoados esquecidos do Peru profundo, sem contar que foi prefeito distrital de seu povoado em Cajamarca. Também foi membro ativo das Rondas Campesinas. 

Os “Ronderos” são uma organização camponesa e comunitária com milhares de integrantes e com presença em grande é considerada a organização com maior capacidade de mobilização de todo o país, embora suas demonstrações de força, longe de Lima, costumem passar desapercebidas. A organização rondera cresceu de forma exponencial nos últimos 10 anos e se vincula com diferentes forças políticas populares e de esquerda. Apesar de que recentemente criaram sua própria ferramenta política, nestas eleições decidiram apoiar Castillo e Peru Livre. 

Castillo é também referência de um setor de oposição no Sindicato Unitário de Trabalhadores da Educação do Peru (SUTEP) atualmente dirigido pelo Partido Comunista do Peru-Pátria Vermelha. A base mais ativa do sindicalista está associada a professores de extração popular-camponesa, e tem grande ascendência sobre setores evangélicos de dentro e fora do magistério.

Em 2017 ganhou protagonismo nacional por sua liderança na grande greve e mobilização docente daquele ano, ainda que tenha acabado disputando a condução do sindicato em uma frente ampla com setores conservadores.

As bases de apoio de Castillo dentro do mundo docente compõem-se de setores populares e empobrecidos, com referências políticas ideológicas diferenciadas e contraditórias: esquerdistas, conservadoras, laicas ou religiosas. Daí as posições que combinam propostas soberanistas, latinoamericanistas, constituintes e de transformação econômica radical, simultâneas a  declarações conservadoras no social – inclusive homófobas – ainda que não de forma orgânica nem programática.

Em declarações recentes, Castillo anunciou que, se chegasse à presidencia, acabaria com a prisão de Antauro Humala, militar revolucionário do Movimento Etnocacerista que encabeçou o Levantamento de Locumba contra a ditadura de Alberto Fujimori, e mais tarde o “Andahuaylazo”, golpe militar que tentou forçar a renúncia do presidente neoliberal Alejandro Toledo. Antauro  Humala cumpriu sua pena de prisão por este último fato, mas continua encarcerado devido a uma  decisão política. O Movimento E tnocacerista conta com uma base popular e uma militância bem disciplinadas que foram interpeladas por este gesto de Castillo.

Esta singular figura a cavalo – foi votar montado em uma égua que empinava – poderá parecer ridícula ou retrógrada para as classes médias limenhas, os setores ricos e as forças políticas de inspiração liberal, mas coincide indubitavelmente com as aspirações de boa parte das massas  mais esquecidas do Peru.

A organização

O partido Peru Livre foi fundado em 2007, ampliou-se devido ao acréscimo de outras forças  políticas regionais em 2012, e é atualmente dirigido por aquele que foi duas vezes governador de Junín – eleito em 2010 e em 2018 – Vladimir Cerrón, que ocupa o cargo de Secretário Geral  Nacional.

Em sua plataforma política afirma que “Peru Livre é uma organização de esquerda socialista  que reafirma sua corrente ideológica, política e programática. Para ser de esquerda é preciso  abraçar a teoria marxista (…) e a partir desse diagnóstico propor medidas de solução que conduzam à satisfação das maiorias. Os postulados mariateguistas são de vital importância com relação a nossa realidade nacional, latinoamericana e inclusive mundial.”

É preciso destacar que, tanto Peru Livre como sua referência Vladimir Cerrón, defendem uma  concepção latinoamericanista, cultivam estreitos vínculos com Evo Morales, e não deixaram de reivindicar a Revolução Cubana e a Revolução Bolivariana da Venezuela. Alguns dos principais eixos de seu programa de governo são: assembleia constituinte e nova constituição, economia popular, Estado forte regulador, integração do Peru à UNASUL e abandono da OEA, nacionalização y estatização de recursos estratégicos, saúde e educação públicas. Em seu estatuto defende  também “a participação das mulheres nos espaços de decisão política” e “contribuir para a  agenda de gênero e inclusão social da mulher (…) para que cada mulher peruana tenha uma  participação ativa na construção da Pátria”.

O segundo turno

O segundo turno eleitoral ocorrerá em 6 de junho e será um choque de galáxias. O fujimorismo  destila o ódio de uma pregação autoritária, anticomunista, antichavista e antifeminista, caracteriza e criminaliza como “terruco” – terrorista – as organizações indígenas, camponesas, de  mulheres, populares e comunitárias que lutam por transformar o Peru. Enquanto isso, Castillo  não oculta sua origem humilde e sua identidade de esquerda, e enfatiza um discurso  anti-ditatorial e anti-corrupção. No entanto, ambos candidatos, apesar de estarem nas antípodas  ideológicas, contam com amplas bases populares. As únicas figuras impávidas, expectantes,  parecem ser as elites brancas limenhas, cultoras dos bons modos e dos valores liberais.

Para o progressismo peruano, a disjuntiva pode ou lançá-lo ao encontro das massas populares  do Peru, para iniciar ali um mútuo processo de educação e re-educação política, ou condená-lo  ao ostracismo e liquidá-lo como força política. Ou se alia a Castillo e chama a votar por ele –  sequer de forma crítica -, e se afasta dos setores mais liberais e colonizados de suas  fileiras; ou defende o voto nulo, diante da imperdoável possibilidade de aplainar o terreno para  que o trágico sobrenome Fujimori volte a governar com mão de ferro o Peru, desarticulando  a primeira possibilidade real de conquistar um governo popular desde a presidência do militar nacionalista Velasco Alvarado.

Castillo enfrenta o desafio, no plano nacional, de conseguir unir os diferentes setores sociais  e democráticos que rejeitam o fujimorismo mas ainda veem com receio sua candidatura radical.  E, no plano internacional, o desafio de ampliar seu arco de alianças, para conseguir blindar-se  contra as operações dos aparatos midiáticos, diplomáticos e judiciais que já lhe declararam guerra. E também para resguardar-se dos setores liberais que já começam a agitar a perigosa tese de que no Peru enfrentam-se “dois conservadorismos”, pondo no mesmo saco banqueiros e ronderos, oligarcas e professores rurais, ditadores em ascensão e líderes anti neoliberais.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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