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Além de Jovenel Moïse | Assassinatos, tiroteios, execuções: a quem interessa a gangsterização do Haiti?

Na madrugada de 30 de junho de 2021 foram assassinados o jornalista Diego Charles e a militante política feminista Antoinette Duclair. Suas mortes não foram em tiroteio, ou devido a roubo, foram evidentemente motivadas
Camila Valdés León
Casa de Las Américas
Havana

Tradução:

Na madrugada de 30 de junho de 2021 foram assassinados o jornalista Diego Charles e a militante política feminista Antoinette Duclair. Ao mesmo tempo, e em outros pontos de Porto Príncipe, no Haiti, outras 13 pessoas foram baleadas e seus corpos amanheceram nas ruas.

Suas mortes não foram em um tiroteio, ou devido a uma tentativa de sequestro, ou roubo. Suas mortes foram evidentemente motivadas. Eles foram selecionados e liquidados em um período preciso e ao amparo da noite.

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Durante o mês de junho, enquanto o país via as cifras de contágio por Covid-19 aumentarem como não tinha acontecido em todo o transcurso da pandemia, assim como o número de ocupações hospitalares e mortes (entre elas as de grandes figuras da oligarquia e da cena política, como, por exemplo, o presidente do Tribunal Superior de Justiça), a comunidade de Martissant, na estrada de Porto Príncipe a Jacmel, se viu obrigada a se proteger em suas próprias casas ou a se deslocar para outros lugares da cidade para preservar a vida (em casa de amigos, em igrejas, praças públicas ou centros esportivos): as gangues armadas ou gangs, cujo controle progressivo sobre esta e outras zonas da área metropolitana foi aumentando nos últimos anos, disputavam o espaço e os recursos.

O Lakou Bovwa, centro vodu de referência fundado pelo grande houngan e bioquímico Max Beauvoir (conduzido atualmente por Didier Dominique) informava que houngans, mambos, hounsis que participam desta comunidade viram suas casas assaltadas a golpes de foice e fogo.

Coalizão G9

O líder da autodenominada coalizão G9, Jimmy Cherizier “Barbecue” (antigo membro da polícia nacional), anunciava em 23 de junho, em um vídeo que viralizou (com um evidente discurso que busca disfarçar a gênese destes grupos de poder e a natureza depredadora de sua ação criminosa), que iniciara uma revolução contra as elites oligárquicas e o governo, expressa na pilhagem “para alimentar o povo”, de armazéns do porto e grandes comércios, e o assassinato e intimidação de residentes em vários bairros da capital.

Durante todo o ano de 2021, e desde 7 de fevereiro, sucederam-se manifestações e reivindicações em todos os níveis pelo fim do mandato de Jovenel Moïse, cujo fim do mandato presidencial, afirmam, deveria ter ocorrido naquele dia em vista à data em que assumiu realmente o poder (2016).

Por sua vez, o governo afirmou que sua posse na presidência concretizou-se um ano depois e que teria ainda um ano a mais no poder; enquanto isso, convocou um referendo constitucional improcedente que já fora adiado em duas ocasiões.

Na madrugada de 30 de junho de 2021 foram assassinados o jornalista Diego Charles e a militante política feminista Antoinette Duclair. Suas mortes não foram em tiroteio, ou devido a roubo, foram evidentemente motivadas

Facebook – Reprodução
O jornalista Diego Charles e a militante política feminista Antoinette Duclair

Retorno à ordem constitucional, vácuo político e a “oposição”

Vozes e associações de intelectuais, no país e na diáspora, fizeram repetidos apelos pelo cessar da impunidade e da violência, retorno à ordem constitucional, respeito ao povo no exercício do poder político e a necessidade urgente de reconfigurar um governo legítimo capaz de articular as forças políticas e as demandas sociais (dos movimentos sindicais, de mulheres, camponeses, estudantes que veem dia a dia o ataque a suas instalações, o sequestro e assassinato de seus membros, e a total fratura de suas aspirações).

O “vácuo político”, a não-governabilidade como forma de governo é real: desde  2020 não existe Parlamento em função (nem foram convocadas eleições para completá-lo) e o executivo governa por decreto; desde 2019 não foi possível nomear para um mandato de longa duração um Primeiro Ministro (que o Presidente indica e o Parlamento ratifica); desde 2018, ao vir à luz o escândalo da Petrocaribe (roubo de fundos milionários da cooperação venezuelana com o qual está diretamente vinculada a presidência de Martelly e sua continuidade com Moïse), as ruas não deixaram de encher-se com frequência de manifestantes e coalizões de todo tipo, apesar da intensa repressão, exigindo a renúncia do mandatário e a abertura de um exame de consciência da corrupção imperante no país e da conivência das oligarquias e dos poderes internacionais com o descalabro político.

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Por sua vez, uma oposição política convoca, ou melhor, tenta capitalizar o imenso descontentamento popular com a carestia de vida, o aumento da insegurança, a crise econômica, sanitária, ambiental, multidimensional, que vive o país.

Nações Unidas, ocupação imperialista e subdesenvolvimento

Em 2017, os últimos efetivos militares das missões das Nações Unidas, que ocuparam o país desde 2004 (quando da crise política que levou à saída forçada de Jean Bertrand Aristide do poder) partiram finalmente do Haiti, deixando atrás de si uma esteira de casos de crimes sexuais, corrupção, coalizão com o narcotráfico; tanto que alguns também, naquele momento começaram a lamentar a ausência de uma força militar externa.

No entanto, em 2015, a 100 anos do início da ocupação estadunidense do Haiti, muitos intelectuais discutiram o terrível legado da dependência e do subdesenvolvimento que, como dissera muito antes Suzy Castor, consolidou-se como estratégia com a ocupação estrangeira.

Em 7 de julho de 2021, outra vez durante a noite, ao amparo de grilos e pouca iluminação pública, foi cometido um novo assassinato: Jovenel Moïse, de 53 anos. Sua esposa e família foram atacados em sua residência no bairro Pelerin (alturas de Porto Príncipe) por um comando armado, não identificado, usando armas longas.

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Segundo comunicado do governo, alguns dos atacantes falavam espanhol; segundo vídeos circulando nas redes, alguns falavam inglês. Moïse morreu no local; sua esposa Martine foi transferida em caráter de urgência para um hospital, e transpirou, horas depois do anúncio da notícia do magnicídio, que estava fora do país, em Miami, para receber atenção médica especializada.

Presidente interino, estado de sítio e luto nacional

As forças eleitas dos poderes de governo em reunião urgente decidiram ratificar como presidente interino o já autonomeado Claude Joseph (sexto primeiro-ministro demissionário que fora substituído na segunda-feira, 5 de julho por Ariel Henry), convocando eleições presidenciais, anunciadas para setembro.

Foi declarado estado de sítio e luto nacional, ambos por 15 dias. Todos os voos internacionais estão momentaneamente cancelados. A vizinha República Dominicana fechou sua fronteira aérea e terrestre e enviou para lá seus efetivos militares.

Repórteres haitianos e estrangeiros no país atestam a aparente tranquilidade em Porto Príncipe, onde o fluxo de pedestres, vendedores, e tráfego está praticamente interrompido; embora os relatos internos, que cidadãos circulam entre si nas redes sociais, alertam sobre bloqueios de ruas, tiroteios e áreas de total insegurança.

Repercussão internacional 

Vários países pronunciaram-se prontamente sobre o fato (da América Latina, do Caribe, da Europa). Destaca-se particularmente a declaração da Casa Branca, que adianta sua intenção de ajuda interventora; a de Iván Duque, instando precisamente a OEA a intervir, e a da própria OEA chamando o assassinato de crime político que não deve ser permitido.

Comitês de segurança de organismos e alianças regionais (como a ONU e o CARICOM) reuniram-se em caráter de urgência para analisar a situação, que, indubitavelmente, tensiona a geopolítica regional enquanto abre um espaço perigoso a intenções, não tão ocultas, de intervenção e controle de um território rico e estratégico. Muitas associações e indivíduos dentro e fora do Haiti alertaram para este risco possível.

O chato senso comum, treinado para dizer, após mencionar o nome do Haiti, “o país mais pobre da América” (como quem já disse tudo) poderia pensar que um magnicídio deveria ser notícia repetitiva e comum.

Histórico recente

Certo é que, desde 1915, não houve nenhum assassinato de um ocupante da presidência do Haiti. Naquela ocasião foi Vilbrun Guillaume Sam. Nos mares circundantes, as tropas americanas do presidente Woodrow Wilson esperavam esta espécie de sinal de último descalabro político para intervir militarmente no território.

Não saíram do Haiti até 1934 e durante esse tempo também ocupavam a vizinha República Dominicana e a Nicarágua, consolidando uma estratégia em desenvolvimento de controle regional.

Ante o acúmulo continuado de mortes e de violência,  o fato de continuarem obscuras as causas de tantos fatos, a falta de interesse internacional com o tema haitiano, apenas avivado pelas manchetes do assassinato de Moïse, a quem responsabilizar por este novo ato terrível em uma cadeia de acontecimentos vis?

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O que pode esperar o cidadão comum: o vendedor de rua que não obtém o mínimo para uma vida humana, o estudante universitário cujo companheiro é sequestrado por bandos armados, os militantes que reclamam justiça ante o aumento da violência contra a mulher, o camponês que luta contra temporais, secas e desamparo, o jornalista que se vê obrigado a migrar, pois, sobre sua vida e a de sua família pesa ameaça de morte por exercer seu trabalho, o artista cuja obra se faz na insegurança mais absoluta, o praticante religioso cujos espaços de comunhão e realização são agredidos ou instrumentalizados, o migrante órfão de leis e à mercê de tubarões no mar e na terra?

Quem ganha com este aumento último da gangsterização da política?

Camila Valdés León dirige o Centro de Estudos do Caribe da Casa das Américas.

Tradução de Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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