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Por que Obrador acusa Congresso mexicano de traição após recusa de Reforma Elétrica?

Proposta do mandatário para setor energético buscava evitar que interesses particulares e de lucro superassem os da nação e prejudicassem soberania
Luis Manuel Arce Isaac
CLAE / Centro Latino-Americano de Análise Estratégica
Cidade do México

Tradução:

Nos tempos modernos, e em cada nova etapa da revolução tecnológica – processo social que não se detém nunca, como as ciências – o setor elétrico é, e continuará sendo, o detonador da economia de qualquer país, grande ou pequeno.

Tudo vai estar subordinado à geração de eletricidade, sem a qual é impossível conceber o desenvolvimento de uma indústria nacional seja de que tipo e tamanho for, razão pela qual todos os governos, sem exceção, consideram estratégica a indústria de geração, transmissão e distribuição, mesmo sendo privada.

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Dentro dela, as tarifas elétricas constituem um instrumento para redistribuir a renda – quase sempre mediante o subsídio ao consumo de energia elétrica dos grupos mais desfavorecidos – e para apoiar a indústria nacional a fim de acelerar seu desenvolvimento e aumentar a competitividade.

O subsídio evita conflitos por sua tendência a atenuar o estresse dos gastos familiares e porque, frequentemente, atua em países de desenvolvimento alto ou médio como mecanismo para enfrentar ou diminuir os índices de inflação e, com isso, regular o comportamento das variáveis macroeconômicas. 

Resumindo, a geração elétrica é chave nos programas de desenvolvimento econômico de um país, seja ou não produtor de energéticos, e a tal ponto, que seus níveis de produção e distribuição indicam a um simples olhar a capacidade do parque industrial nacional e os padrões de bem-estar da sociedade.

Há cidades mais escuras que outras porque o nível econômico não lhes permite iluminá-las como convém, o que é considerado uma debilidade ou insuficiência em seu sistema produtivo que afeta o bem-estar social.

Proposta do mandatário para setor energético buscava evitar que interesses particulares e de lucro superassem os da nação e prejudicassem soberania

Presidência do México
Nova lei elétrica modificaria os conceitos gerais que regem o setor energético mexicano




As ideias de López Obrador

Estas e outras muitas circunstâncias explicam por que o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, reitera que o setor energético, inclusive a geração de eletricidade, é um fator estratégico essencial que deve ser controlado pelo Estado, sem negar uma participação do capital privado em sua dinâmica.

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Ao projetar o sistema como um todo, o governo mexicano não propõe uma simples complementação entre suas indústrias mais produtivas, Petróleos Mexicanos (Pemex) e Comissão Federal de Eletricidade (CFE), às quais acrescenta como nova conta o lítio, mineral chave para o futuro energético da humanidade, e o desenvolvimento de tecnologias modernas para a exploração de fontes renováveis de diversa natureza.

Em consequência, a geração elétrica constitui um espectro multidimensional do serviço público mais transcendente a que está sujeita toda a sociedade, por sua projeção tão ampla do sistema produtivo nacional, tecnológico, mineiro, alimentar, de transporte, sanitário, educativo, comercial e até esportivo e recreativo.

López Obrador considera que as rendas de um assunto de tal envergadura devem estar em mãos do Estado e não privadas, para evitar o risco de que os interesses particulares e de lucro superem os da nação e prejudiquem o soberano, que é o povo, como está ocorrendo atualmente na Espanha, em outros países europeus, e nos Estados Unidos, onde os governos não foram capazes de deter a espiral de altos preços ao consumidor.

A estratégia do México consiste em fortalecer a Pemex para que os energéticos fósseis sejam processados totalmente pela indústria nacional, e não colocar o cru no mercado mundial – salvo na conjuntura atual devida à guerra na Ucrânia e às sanções econômicas contra a Rússia – e converter-se de importador em exportador de gasolinas e combustíveis.

De igual maneira, rebaixar ao mínimo os índices de contaminação ambiental das termelétricas, eliminar o uso de combustóleo e do carvão, melhorar a utilização do gás e potencializar ao máximo as hidrelétricas que têm a dupla vantagem de serem menos agressivas ao meio ambiente do que a eólica, mais baratas e permanentes e não intermitentes como as que dependem do ar e do sol ou do movimento do mar.

Portanto, não há uma complementação, e sim uma conexão muito estreita com a CFE que é a empresa destinada a garantir um fornecimento estável de eletricidade, suficiente e barato a um país de dois milhões de quilômetros quadrados, um enorme parque industrial e automotivo e 127 milhões de habitantes com cidades altamente consumidoras de energia.


A grande contradição

O México tem a grande contradição de que, sendo o primeiro país da América que nacionalizou seu petróleo em 1938 com o general Lázaro Cárdenas como presidente, e a totalidade da indústria elétrica em 1960 com o presidente Adolfo López Mateo, reprivatizou uma grande parte dessa riqueza cuja geração de divisas deixou de ir para as reservas financeiras da Fazenda para nutrir as da Espanha, dos Estados Unidos, e de uns poucos países mais.

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Foi um processo que começou com Carlos Salinas de Gortari no final do século passado, e continuou até dezembro de 2018 quando López Obrador assumiu a presidência da República e proclamou como tarefa principal a batalha contra a corrupção e o resgate da Pemex e da CFE, pois sem aniquilar o lastro da decomposição -“varrendo como as escadas, de cima para baixo”-, seus planos de reabilitação do setor e a tomada de seu controle seriam apenas um sonho em uma noite de verão.

Os mandatos de Vicente Fox (2000-2006), Felipe Calderón (2006-2012) e Enrique Peña Nieto (2012-2018) foram os de maior entrega, corrupção e decadência de Pemex e CFE, sendo o ponto culminante a pseudo reforma energética deste último em 2013, aprovada pela compra de votos de deputados com dinheiro físico distribuído em maletas na própria residência presidencial de Los Pinos e na sede da Pemex, conforme documentado no processo do ex diretor da petroleira, Emilio Lozoya.

Uma das primeiras ações de López Obrador foi denunciar e desmontar esta reforma e proclamar a sua, que apresentou em 30 de setembro de 2021 ao Congresso, soltando todos os demônios escondidos no aparato governamental há 36 anos, os quais se lançaram contra a iniciativa do mandatário com o apoio de Madri e Washington.


A nova reforma proposta por AMLO

Em suas linhas gerais, a nova lei elétrica modificaria os conceitos gerais que regem o setor energético mexicano, inclusive nos artigos 25, 27 e 28 da Constituição que são os incluídos na reforma, além de uma série de transitórios que, unidos, representam uma mudança de direção significativa do marco legal e do projeto institucional estabelecido por Peña Nieto desde sua reforma em favor da Iberdrola e de várias mais.

A iniciativa de López Obrador teria sobretudo um impacto direto em toda a cadeia de valor do setor de hidrocarbonetos e de eletricidade exposto no decorrer deste artigo. Com relação às mudanças estruturais, iria se concentrar em consolidar o controle de todas as atividades do setor elétrico.

Para isso, a CFE e a Pemex passariam a ser entidades governamentais, em vez de empresas produtivas do Estado, e o Centro Nacional de Controle de Energia (CENACE), entidade governamental encarregada de operar o Sistema Elétrico Nacional e o Mercado Elétrico Atacadista, seria integrado à CFE.

Desapareceriam a Comissão Reguladora de Energia, encarregada das atividades do mercado elétrico, e de petróleo e gás denunciada como um ninho de alta corrupção, e a Comissão Nacional de Hidrocarburos para a exploração e extração de petróleo e gás, o que incomoda muito as empresas estrangeiras.

No último domingo (17), no entanto, a proposta foi colocada para votação na Câmara dos Deputados do México e não alcançou os dois terços dos votos necessários. Para se ter uma ideia, dos 498 parlamentares, 332 precisariam votar favoravelmente, quando apenas 275 o fizeram. López Obrador caracterizou o resultado como um “ato de traição” ao Mexico por parte dos legisladores: “Em vez de defender os interesses do povo, da nação, em vez de defender o que é público, tornaram-se defensores declarados de empresas estrangeiras que se dedicam a prosperar, a roubar”, acrescentou AMLO.



O grande debate

Um grande debate, às vezes até grosseiro, gera no México a proposta de cancelar permissões de geração de energia e os contratos de compra e venda de eletricidade atualmente em vigor. Também provoca debate o não reconhecimento das autorizações ilegais de autoabastecimento e de produtor independente de energia modificados e em vigor antes da reforma energética de 2013.

A CFE teria o direito constitucional de gerar 54% da energia do México e os particulares, nacionais e estrangeiros, 46% – exatamente a mesma quantidade que produz a Argentina em nível nacional, de modo que não é nenhuma bagatela -, mas os investidores privados não renunciam à quase totalidade de que desfrutam agora.

A tudo isso a reforma acrescentaria, como é lógico, controle estatal sobre todo o processo para o que autorizaria a CFE a determinar as tarifas de transmissão e distribuição e eliminaria o sistema de subsídios aos supostos produtores, um barril sem fundo por onde escapam milhares de milhões de dólares por ano.


A oposição dos Estados Unidos

A arma principal usada pelos Estados Unidos para deter a reforma foi alegar que com sua aprovação o México deixaria de cumprir e violaria suas obrigações em virtude do capítulo 14 (Investimento), o 15 (Comércio Transfronteiriço de Serviços) e o 22 (Empresas Propriedade do Estado e Monopólios Designados) do Tratado entre o México, os Estados Unidos e o Canadá (T-MEC); mas a Suprema Corte de Justiça da Nação os desmentiu.

O embaixador de Washington, Kent Salazar, texano de origem espanhola e muito ativo e ingerencista, advertiu que haveria discrepâncias e litígios sem fim que gerariam incerteza e obstruiriam os investimentos se fosse aprovada a nova lei elétrica, mas López Obrador aceitou o desafio e respondeu que o diplomata falava de ações de tipo jurídico, “e nós também faríamos o adequado porque somos um país independente, livre”.

Há um assunto mais de fundo na posição dos Estados Unidos contra a reforma, e é que na relação comercial – na qual o México voltou a ocupar este ano a posição número um como sócio comercial do vizinho do norte – Washington pretende obter a mesma ascendência sobre os mexicanos que na época do anterior Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN ou NAFTA).

Aquele acordo foi muito nefasto para o México pois mediatizou seu desenvolvimento independente e deu supremacia aos Estados Unidos nas associações conjuntas como as do setor energético e automobilístico. Inclusive, estando vigente o TLCAN, os Estados Unidos aplicaram políticas protecionistas contra o México violando os acordos de associação e cooperação, e transferiu diretamente para este país os efeitos de suas crises, como a imobiliária, que acabaram com sua economia.

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Com sua substituição pelo atual T-MEC cujos termos exigidos pelo México permitiram uma certa melhoria, não deram tranquilidade total a este país. Pois Donald Trump, apesar de sua suposta “simpatia” por seu homólogo López Obrador, ameaçou quase permanentemente com represálias alfandegárias e outros tipos de sanções nos diferendos por razões não comerciais, como a migração, é uma ingerência aberta – que ainda se mantém – em temas internos como os trabalhistas e sindicais.

Os Estados Unidos mantêm uma defesa cerrada a suas centenas de indústrias no México, em especial as maquiadoras e as cadeias de valores que dominam na longa fronteira – sul para eles e norte para os mexicanos -, ao longo do rio Bravo. Para ninguém é um segredo que nos planos petroleiros dos Estados Unidos estão as reservas mexicanas que considera como suas, e não apenas as jazidas no golfo que compartilham.

O governo dos Estados Unidos, que deixaram de ser um grande produtor de petróleo depois da crise energética de 1973 e tendo chegado a seu ápice na extração natural, desafiou os cientistas que desaconselham o fracking, e graças a esta temerária decisão, voltou a escalar as primeiras posições no mundo petroleiro. Mas ainda assim, o cru mexicano continua sendo uma de suas grandes perspectivas, como são também as imensas reservas da Venezuela.


A oposição da Espanha

Mais ou menos nesse tom do embaixador de Joe Biden, responde de Madri o presidente do governo Pedro Sánchez, fazendo uma enfática defesa das empresas de seu país e se vangloriando de não se desculpar diante do povo mexicano pelas atrocidades cometidas durante a conquista, como solicitou López Obrador.

Trata-se de uma atitude quase semelhante à do ultradireitista partido VOX, que chegou a pedir que seja erguido um monumento a Hernán Cortés na Cidade do México para que lhe sejam prestadas honras de herói e salvador.

A verdade é que, nos últimos 20 anos, sobretudo, as grandes corporações espanholas passaram a controlar setores estratégicos da economia mexicana:

– O energético, pois praticamente todas as multinacionais espanholas possuem investimentos e negócios no país, entre elas Iberdrola, Endesa, Repsol, Acciona e Naturgy.

– O bancário, com o primeiro e o terceiro banco em volume de ativos do país: o Banco Bilbao Vizcaya Argentaria (BBVA), que em determinado momento absorveu o Bancomer; e o Santander, que é hoje um dos principais operadores do mercado financeiro e é o prestamista líder no setor automobilístico.

– E na infraestrutura, estradas, portos ou grandes projetos públicos, também se posicionaram algumas empresas espanholas entre as mais poderosas do país, como a construtora OHL (alvo de numerosas acusações de corrupção), e Fomento de Construcciones y Contratas (FCC), entre outras.

E há ainda o setor turístico, onde tornaram-se líderes de alguns destinos de êxito, como a Rivera Maya, os Cabos e Huatulco. Algo parecido ocorreu em outros setores menos relevantes e em menor grau de penetração, como o da indústria editorial, os meios de comunicação e os serviços.


Conclusão

Todo esse poder estadunidense-espanhol esconde-se atrás da oposição tão descomunal à reforma elétrica e por trás da política dos partidos que transferiram todas essas riquezas para o capital estrangeiro, prejudicando sem contemplações a economia nacional e embargando com isso o futuro do México.

Os líderes do Partido Revolucionário Institucional, os da Ação Nacional e a inacreditável e vergonhosa submissão a eles do Revolucionário Democrático que em sua origem resgatava a grandeza de Lázaro Cárdenas, são os subalternos internos dessas grandes transnacionais e dos governos de Washington e Madri, nesta decisiva batalha pela recuperação da soberania nacional perdida por aqueles governos corruptos em 36 anos de neoliberalismo.

A reforma elétrica não seria um simples divisor de águas na história contemporânea do México, mas sim uma necessidade histórica imperiosa – nas palavras do atual mandatário – para repor em mãos do povo os ideais pelos quais caíram Hidalgo, Morelos, Allende, Benito Juárez, Francisco I. Madero, Emiliano Zapata e Francisco Villa.

Tudo isso responde à pergunta que dá título a este artigo, isto é, porque o México precisa aprovar e aplicar a iniciativa de seu presidente López Obrador.

Luis Manuel Arce Isaac, Jornalista cubano, correspondente de Prensa Latina. Colaborador do Centro Latino-americano de Análise Estratégica (CLAE, www.estrategia.la)
Tradução de Ana Corbisier



As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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