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Chineo: a violência sexual de origem racista e colonial contra meninas indígenas na Argentina

“Há meninas que deixaram de ir à escola. Como vão caçar os animais, assim vão contra as meninas”, explica a liderança mapuche Moira Millán
Euge Murillo
Resumen LatinoAmericano
Buenos Aires

Tradução:

* Atualizado em 16/08/2022 às 13h32.

“Chineo” é como é chamada esta prática violenta e racista que perpetram homens criollos contra meninas indígenas na Argentina. São violações, muitas vezes em grupo, com consequências para a infância e quase nunca para aqueles que usam seus corpos como mercadoria. Mais de 300 mulheres e dissidências indígenas, reunidas em um encontro este ano, decidiram concentrar seus esforços na abolição desta prática colonialista, amparada pelo isolamento dos povos originários e pelo racismo estrutural de nossa sociedade.

“O chineo é possível porque existe um cenário em que os corpos das crianças situam-se no imaginário social como uma prática cultural. O nome chineo vem de uma prática em que os colonizadores viam no rosto das mulheres indígenas uma similitude com o rosto das mulheres chinesas, então chinear que é um verbo que eles criaram para denominar esta ação criminosa, significa violar as mulheres e meninas indígenas que eles chamavam de chinitas (chinesinhas).

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É um preconceito colonial, por isso não dizemos violação grupal nem abuso infantil, dizemos chineo porque esse nome nos remete à origem desta prática colonial”, explica Moira Millán, weychafe mapuche e fundadora do Movimento de Mulheres e Diversidades Indígenas pelo Bem Viver. Neste espaço, no último dia 22 de julho, realizaram uma palestra informativa sobre a campanha #AboliçãoDoChineo, uma nova etapa em uma luta de longa data mas que nos últimos anos ganhou mais impulso e que hoje se torna um ultimatum ao Estado e à sociedade que permanece de costas para esta problemática.

Em 2019, o Movimento de Mulheres e Diversidades Indígenas pelo Bem Viver estava realizando uma ocupação pacífica no Ministério do Interior, exigindo uma resposta do Estado ao sistema extrativista que vinha depredando seus territórios. Acamparam com a consigna: “Semearam terricídio, colheram rebelião” permanecendo ali vários dias.

Durante a ocupação, receberam uma notícia que marcou um antes e um depois no envolvimento do Movimento na luta contra o chineo: “Uma irmã de Formosa que estava acampada no Ministério atendeu uma ligação em que seu marido lhe dizia que sua filhinha estava na escola com sua prima quando entraram uns criollos no banheiro da escola para violá-las. Afortunadamente, as meninas tinham conseguido escapar”, conta Moira Millán que identifica essa ligação como o pontapé inicial para começar a articular a luta contra o chineo.

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A campanha foi lançada em Esquel no princípio de 2020;  naquele momento foi chamada de #BastaDeChineo e foi o resultado do “Acampamento Climático: Povos contra o Terricídio”. Ali trabalhou-se coletivamente com mais de 300 participantes, mulheres indígenas, ativistas e organizações ambientalistas e acertou-se lançar a Campanha: “Nós com nossa cosmovisão, não concebemos a separação de nossos corpos e nossos territórios; é por isso que assim como defendemos nossos territórios de projetos extrativistas e capitalistas assassinos, também nos propusemos a trilhar este caminho para terminar com o chineo” diziam lá em 2020, um mês antes de começar na Argentina o Isolamento Social Preventivo e Obrigatório (ASPO, na sigla em espanhol).

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Por que a abolição?

A campanha deu uma guinada estratégica e política ao substituir a palavra “basta” por “abolição”. “Esta palavra é chave, não só de maneira teórica no sentido de terminar ou cancelar uma ação, muitas vezes utilizada como sinônimo de anulação, extinção ou abrogação, mas também porque nos permite associá-la à revogação daquela norma ou conduta que lhe deu origem” explica Paula Alvarado Mamani, advogada e parte do povo Kolla.

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De sua perspectiva, no âmbito jurídico se utiliza esta palavra para a derrogação de certas questões instituídas ou medidas de caráter geral, como pode ser a escravidão ou a pena de morte: “Sua utilização em um contexto no qual não se respeitam os Direitos Humanos nem se observam princípios éticos de dignidade da pessoa é condição necessária para que o Direito Internacional solicite a derrogação de uma ação. Para nós implica uma demanda política de Nação a Estado-Nação já que estamos interpelando ações que foram naturalizadas por este sistema capitalista e patriarcal” conclui Paula.

Segundo Moira Millán o “basta” anterior demandava a ingerência do Estado com mecanismos punitivos e legais para conseguir penas máximas e amedrontar os criollos que executam esta prática: “Depois nos demos conta que é uma prática que lamentavelmente tem o racismo social como principal cúmplice. Então falamos de abolição e não de erradicação, porque erradicar seria eliminar esta prática de nosso território; em troca, a abolição é a eliminação absoluta desta prática aberrante. Se na Argentina conseguirmos a abolição do chineo, seremos um precedente fundamental para o resto dos países” explica Moira Millán em diálogo com Salta 12.

Protesto de mulheres indígenas no último dia 3 de junho (Foto: Jose Nico)

Durante o 3º Parlamento Plurinacional de Mulheres e Diversidades Indígenas pelo Bem Viver, que ocorreu em Chicoana, Salta, Kollasuyu de 22 a 25 de maio del 2022, ficaram acertado entre mais de 250 mulheres, lésbicas, trans e não binárias indígenas, alguns pontos quanto ao objetivo da campanha: que o chineo seja imprescritível e que seja declarado crime contra a infância indígena; que as instituições, organizações da sociedade civil e grupos religiosos que operam nos territórios indígenas e que funcionem como cúmplices do chineo assumam a responsabilidade civil e penal, que não haja foros para os funcionários públicos dos três poderes do Estado que sejam executores, cúmplices ou facilitadores do chineo. Estes são alguns dos pontos que estruturam a campanha.

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Também aprofundou-se a necessidade de criar um Conselho Plurinacional de Mulheres e Diversidades Indígenas para a abolição do chineo, com status de secretaria e com recursos. No Movimento consideram que é fundamental que neste caminho para a abolição do chineo haja participação dos povos originários e das comunidades afetadas pelo tema: “Temos que ser nós mesmas que possamos elaborar protocolos, material informativo, sugestões e capacitações porque somos nós que sabemos o que acontece nos territórios” assegura Millán.


O chineo não é cultural

Desde 2013, Maria Pía Ceballos, ativista travesti trans e afroindígena, acompanha as comunidades na defesa de seus territórios em Puna, nos vales Calchaquíes e no norte chaquenho. Oriunda de Tartagal e nascida no local “Las Peras” assegura que o chineo não é cultural nem tampouco um costume: “É uma prática aberrante que vem da colônia, que é racista e que se manteve no tempo de maneira sistemática.

Desde a colônia, mulheres e meninas enfrentaram situações de abuso e violência sexual por parte de brancos, criollos ou daqueles que vão para a mata caçar vindo das cidades”, explica para entrar em um dos fundamentos medulares para entender a especificidade desta violência sexual: o racismo estrutural.

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A palavra chineo não surge do pensamento nem da cosmovisão indígena, é uma palavra produzida pelo homem criollo, com uma carga racista e colonial. Se em vez de chineo se falasse de violação em grupo ou de violação da infância se estaria contribuindo para um negacionismo sobre como o racismo estrutural articula-se com mecanismos e práticas para a eliminação dos povos originários.

Assim como o extrativismo arrasa com os territórios, o chineo arrasa os corpos das crianças. A palavra chineo é a evidência da desvalorização de determinados corpos, determinadas vidas e especificamente em uma direção focalizada na raça daqueles que são vítimas dessas violações:

“O racismo social é o que faz a sociedade achar que há vidas que podem ser sacrificadas, que há vidas que valem menos ou que há vidas que podem ser laceradas. Porque se falássemos de chineo em Callao e Corrientes, em plena cidade de Buenos Aires, se falássemos que há gente que se organiza para violar meninas portenhas, haveria tremendas mobilizações de milhões de pessoas. Acontece em nossas comunidades: homens que entram nos territórios indígenas para violar meninas de comunidades indígenas”, explica Moira Millán para mostrar a pouca importância que tem, tanto na opinião pública quanto na sociedade, a prática do chineo.

Se algumas coisa busca a campanha Abolição do Chineo, é proteger o direito das crianças de crescerem e serem felizes. (Foto: Jose Nico)

Quem chinea o faz em caminhonetes ou quadriciclos, se metem nas escolas e nas comunidades. São capatazes e donos de fazendas. Têm uma estrutura para ameaçar quem tenta denunciar. Fazem tudo à luz do dia, para eles é como ir pescar ou caçar. No Chaco, por exemplo, é muito comum utilizar-se como brincadeira a pergunta “você vai chinear”? Por trás desta pergunta há uma literalidade muito dolorosa porque a pergunta é na realidade vai violar meninas?

Como opera o racismo internalizado daqueles que não fazem parte das comunidades indígenas? Como é possível opor-se à invisibilização desta prática? E sobretudo porque se continua vendo o chineo com um travo de distância, como se ocorresse em outro lugar?

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“Há meninas que deixaram de ir à escola porque foram vítimas do chineo. Como vão caçar os animais, assim vão contra as meninas, e essa impunidade aumenta graças ao racismo social que, além disso, é transversal. Por isso é importante que a abolição do chineo seja uma causa abraçada por toda a sociedade. Neste ponto creio que há só um lado e é o lado que abrace a afetividade e o respeito à infância” diz Moira Millán que, diante da pergunta de como vai em frente esta campanha? responde: esta é uma pergunta que se deve fazer a toda a sociedade.

“Há meninas que deixaram de ir à escola. Como vão caçar os animais, assim vão contra as meninas”, explica a liderança mapuche Moira Millán

Foto: Jose Nico
Comunidades indígenas das terras baixas de Salta, onde ocorrem muitos chineos, são zonas com problemas estruturais




O caso de Juana

Juana – nome de fantasia para preservar sua identidade – tinha 12 anos quando foi violada por um bando de criollos na localidade de Alto La Sierra, a nordeste da província de Salta. Pertence ao Povo Wichí, tem falta de capacidade mental e motriz e quando foi atacada, em 2015, não falava espanhol. Sua mãe denunciou o chineo e recebeu ameaças para desistir da causa na justiça.

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O caso de Juana teve mais impacto nos meios de comunicação há pouco, quando em 2016, os médicos que atenderam a menina declararam que estava grávida e que era tarde para fazer um aborto. A gravidez continuou e a menina tornou-se mãe. Campanhas como “meninas, não mães” ganharam mais impulso, sobretudo quando o bebê nasceu por cesárea com 34 semanas, anencefálica e sem chances de sobrevivência.

Em 25 de fevereiro de 2019, os seis acusados de violar a menina foram condenados a 17 anos de prisão pelo Tribunal de Tartagal, que também declarou responsáveis penalmente dois menores imputados na causa, enquanto um terceiro menor foi declarado em rebeldia.

Trata-se da primeira condenação de um chineo (embora não tenha sido chamado assim) em nosso país que também foi apresentada em foros internacionais de Direitos Humanos. Um único precedente frente a uma prática de que não há estatísticas mas que é visível. Por que nas comunidades há meninas grávidas? Quantos casos como o de Juana pode haver em todo o país? 

Apesar de ter sido um caso de muita repercussão nacional e internacional, a situação de Juana hoje não é animadora. Há um ano, lançou-se a campanha “cuidando de Juana” como resposta à inação do governo saltenho em matéria de assistência e proteção, Juana e sua família continuavam recebendo ameaças por parte do entorno dos condenados.

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Há um mês, apresentou-se um projeto de lei para visibilizar o chineo na província de Salta; trata-se de uma iniciativa para a visibilização e prevenção da prática. O projeto contempla protocolos e processos de sensibilização nas escolas, informes confeccionados pelo Colégio de Governo do Ministério Público e o Poder Judiciário da Província que deem conta da existência da prática.


Os lugares aonde não se chega

Elena Corvalan é jornalista de Salta12 e acompanhou alguns casos de chineo. Identifica as dificuldades na hora de tornar visível esta prática e de acessar as fontes primárias : “As comunidades indígenas das terras baixas de Salta, onde ocorrem muitos chineos, são zonas com problemas estruturais: distância das cidades, impossibilidade de acesso devido ao mau estado dos caminos; são comunidades que ficam literalmente sem comunicação. Não há internet, nem linhas telefônicas, e caso haja, grande parte das comunidades não têm acesso a um telefone.

No caso do povo wichí, também ocorre que não falam castelhano ou só entendem”, conta Corvalán. As complexidades vão aparecendo uma a uma em cima da mesa, faltam estatísticas e dados, as denúncias nem sempre são feitas, por ameaças e por não poder chegar a um lugar seguro para realizá-las. A língua, o abandono do Estado e a pobreza.

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Ao finalizar o Encontro em maio, ficou acertado exigir do Estado Argentino que “assuma um compromisso real e urgente para abolir o chineo de uma vez por todas. O chineo é parte da política genocida contra nossas nações indígenas”, afirmou Millán ao finalizar o 3º Parlamento Plurinacional de Mulheres e Diversidades Indígenas pelo Bem Viver: Como segue esta campanha?

Uma vez mais a pergunta diante da crueldade que há por trás do chineo. Quando Millán responde que esta não é uma pergunta que o Movimento de Mulheres e Dissidências Indígenas para o Bem Viver deva responder, está interpelando uma sensibilidade que não pode estar perdida nem viciada por naturalizar as violações de meninas e meninos indígenas. Apela a uma afetividade e a um respeito pela infância, a uma bandeira que é preciso levantar e a uma luta que não se pode deixar de lado.

Euge Murillo | Resumen Latinoamericano
Tradução de Ana Corbisier



As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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