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Toggle“como eles os da Arte, nós temos os monumentos da Natureza;
como eles catedrais de pedra, nós catedrais de verdor;
e cúpulas de árvores mais vastas que suas cúpulas,
e palmeiras tão altas como suas torres”
José Martí, 1881[1]
À medida que se torna mais complexa a crise socioambiental que encaramos, ganham importância os problemas relacionados com a mitigação de seus efeitos e a adaptação a suas consequências. Dado que um dos fatores de maior gravidade nesta crise consiste no colapso dos ecossistemas que organizam a vida na Terra, presta-se atenção crescente ao impacto deste colapso sobre os serviços que estes ecossistemas oferecem ao desenvolvimento de nossa espécie.
Estes problemas ganham clareza quando referidos a conceitos como os de biosfera e noosfera, elaborados na década de 1930 pelo biogeoquímico russo Vladimir Vernadsky. [2] Assim, a biosfera designa o âmbito do sistema Terra em que a vida cria as condições para sua própria existência, vindo a constituir uma força geológica de alcance planetário ao criar processos e elementos que não existiriam sem ela, como a presença de oxigênio na atmosfera e de hidrocarburetos no subsolo, a formação de solos e de rochas calcárias.
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A noosfera, por sua vez, designa o âmbito da biosfera transformado pelo fazer e o saber que distinguem a espécie humana. No cotidiano, estes termos equivalem aproximadamente aos de natureza e ambiente, se entendermos o segundo como o produto dos processos de trabalho socialmente organizados mediante os quais nos relacionamos com nosso entorno natural.
Vista assim, a crise socioambiental expressa a deterioração das relações entre a biosfera e a noosfera gerada pelo desenvolvimento do mercado mundial. Nesta deterioração desempenha um importante papel o colapso de ecossistemas associado à expansão urbana e à extração incessante de recursos naturais e à geração massiva de rejeitos da produção e do consumo.
Assim, em 2011 Will Steffen et al mostraram como “a erosão dos serviços ecossistêmicos, isto é, daqueles benefícios derivados dos ecossistemas que sustentam e melhoram o bem-estar humano, durante os últimos dois séculos” gerava “consequências não desejadas sobre o ecossistema global de suporte vital que sustenta a empresa humana em rápida expansão, no centro dos desafios interconectados do século XXI.” [3]
A esse respeito, os autores apresentaram uma visão de tais serviços, organizada em dois grandes grupos, elaborada a partir da Avaliação dos Ecossistemas do Milênio 2005.[4] O primeiro grupo correspondia à oferta de bens e serviços, “usualmente chamados ‘recursos’, que incluem “alimentos, fibras e água doce (recursos naturais) e, agora, abrangem ainda combustíveis fósseis, fósforo, metais, e outros materiais derivados dos recursos geológicos da Terra.”
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Foto: Rita Willaert (Cidade do Panamá)
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Serviços ecossistêmicos
O segundo consistia em dois grupos de serviços ecossistêmicos. Um correspondia a serviços de apoio, como “o ciclo de nutrientes, a formação do solo e a produção primária”, necessários para o bom funcionamento dos sistemas agrícolas, “que alguns chamam também de ‘recursos ambientais’”. Em uma escala mais ampla, incluíam também “processos geofísicos de benefício para a humanidade”, como “a provisão a longo prazo de solos férteis […], os fluxos ascendentes da circulaç&atild e;o oceânica que trazem nutrientes das profundidades do oceano para sustentar muitos dos ecossistemas marinhos que proporcionam alimentos ricos em proteínas,” e o papel dos glaciares como uma infraestrutura natural “de armazenamento para o fornecimento de recursos hídricos.”
O outro grupo oferecia serviços de regulamentação considerados “gratuitos”, como o controle ecológico de pragas e enfermidades e a regulamentação do sistema climático mediante a absorção e o armazenamento de carbono pelos ecossistemas, que contribuem para manter “um entorno propício à vida humana”. O que inclui, por exemplo, o armazenamento de carbono pelos ecossistemas, como parte de “um serviço regulador mais amplo do sistema terrestre”, “o conjunto de reações químicas na estratosfera que continuamente forma ozônio, essencial para filtrar a radiação ultravioleta biologicamente daninha do sol, e o papel das grandes camadas de gelo polares na regulação da temperatura.”
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Contudo, ao referir-se a elementos da biosfera a partir de seu significado para a noosfera sem considerar a relação entre ambas como um processo histórico de interação mediado pelo trabalho, perde-se de vista o vínculo entre categorias como as de elementos (naturais) e recursos (econômicos), e ainda as de natureza e ambiente.
Outra perspectiva
De outra perspectiva, o economista norte-americano James O’Connor (1930-2017) considerava estes serviços ecossistêmicos como parte de um conjunto mais amplo de condições naturais de produção, que abrangem “a contribuição da natureza para a produção física, independentemente da quantidade de tempo de trabalho (ou a quantidade de capital) aplicado à produção.” A esse respeito, dizia que o mercado tratava “as condições naturais de produção como mercadorias fictícias”, do que resultava.
Com um engenho ao mesmo tempo, torturado e excêntrico, os economistas neoclássicos tentam hoje por preço no ar limpo, nas paisagens atraentes e em outros elementos de interesse ambiental; na vida silvestre, e até na floresta úmida tropical. No entanto, por mais capital que se aplique no solo, nos aquíferos e nas jazidas minerais, estes são produzidos por Deus, que não os fez para a venda no mercado mundial. [5]
Isto, por outro lado, não exclui o fato de que, nesse mercado, a lei do valor opera na relação biosfera/noosfera no que se refere à transformação de elementos presentes na primeira em recursos que demande a segunda mediante o trabalho. Neste sentido, os chamados serviços ecossistêmicos fazem parte da biosfera e como tal podem até ser considerados gratuitos do ponto de vista da produção mercantil. Sua ausência, no entanto, encarece os processos produtivos que tornavam tal uso gratuito nas primeiras fases de seu desenvolvimento.
Mercado de serviços ambientais
Com isso, o colapso de ecossistemas gera um mercado de serviços ambientais que faz parte da noosfera, enquanto estes são produzidos para compensar a perda dos ecossistêmicos. O mercado a que se destina esta produção abrange, por exemplo, tudo o que vai desde a captura de gases de efeito estufa à restauração de ecossistemas degradados, e à gestão dos descartes que hoje contaminam e alteram o funcionamento de todos os âmbitos da biosfera.
Este mercado se situa, assim, no eixo da contradição entre a biosfera e a noosfera, pois a necessidade de encarar o impacto da crise socioambiental gera uma demanda crescente de serviços ambientais. Isto explica porque a produção e a apropriação destes serviços tendem a constituir um fator de conflito socioambiental de importância cada vez maior, na medida em que sejam encaradas como um meio para promover – ou atrasar – a mudança social como uma condição para a ambiental.
O Panamá ingressa neste conflito na transição de uma circunstância de soberania limitada por uma situação de protetorado militar que se prolongou por quase todo o século XX para , de pleno exercício dos deveres e dos direitos da soberania no século XXI. O que ajuda a entender que, se no plano ambiental ingressamos de uma vez no Antropoceno ao calor da luta contra a mineração metálica a inferno aberto, o saber e o fazer ainda dominantes em nossa sociedade são, no melhor dos casos, os do desenvolvimentismo liberal da segunda metade do século passado.
Hoje, a produção de serviços ambientais abre um amplo espaço de oportunidades para fomentar a mudança social necessária para proteger e tornar cada vez mais competitivas nossas vantagens comparativas em matéria, por exemplo, de dotação de água e biodiversidade. Tal será – junto à diversificação de nossos serviços para o comércio mundial – o caminho que nos levará a construir no Istmo, finalmente, uma sociedade próspera, inclusiva, sustentável e democrática. O caminho será longo, mas já nos pusemos a andar.
Alto Boquete, Panamá, 15 de dezembro de 2023
Referências
[1] Fragmento do discurso pronunciado no Clube do Comércio, em Caracas, Venezuela, em 21 de março de 1881. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. VII, 286.
[2] Vernadsky, Vladimir (1938): “The Transition From the Biosphere To the Noösphere. Excerpts from Scientific Thought as a Planetary Phenomenon”. 21st Century, Primavera-Verão 2012.
https://21sci-tech.com/Articles_2012/Spring-Summer_2012/04_Biospere_Noosphere.pdf
[3] Will Steffen, Asa Persson, Lisa Deutsch, Jan Zalasiewicz, Mark Williams, Katherine Richardson, Carole Crumley, Paul Crutzen, Carl Folke, Line Gordon, Mario Molina, Veerabhadran Ramanathan, Johan Rockstrom, Marten Scheffer, Hans Joachim Schellnhuber, Uno Svedin (2011): “The Anthro pocene: From Global Change to Planetary Stewardship”. Cursivas: gch. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3357752/
[4] https://www.millenniumassessment.org/es/About.html
[5] “The conditions of production and the production of conditions”. Natural Causes. Essays in ecological Marxism. The Guilford Press, New York London, 1998. Tradução de Guillermo Castro H., Panamá, 2000. Outra versão disponível em https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6812683
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Guillermo Castro H. | Colunista na Diálogos do Sul
Tradução: Ana Corbisier
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