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Argentina: Milei soma derrotas e prova incapacidade de trazer soluções à classe trabalhadora

Projeto de reforma da economia e do Estado não possui as ferramentas necessárias para dar fim à crise que assola os argentinos
Diego Lorca
Estratégia.la
Buenos Aires

Tradução:

Há menos de dois meses após assumir o poder, o governo sofreu uma nova derrota. Em 6 de fevereiro, na Assembleia de Deputados, a Lei Ómnibus voltou para a comissão e deu-se marcha à ré na aprovação que parecia certa. Em síntese, tudo voltou à estaca zero.

Na semana retrasada, a Câmara dos Deputados aprovou a Lei “Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”, e no dia 6 começou a discussão artigo por artigo. Inclusive, foram aprovadas as competências delegadas ao presidente; um dos pontos mais polêmicos do projeto em discussão, já que atribui poderes extraordinários a Javier Milei para levar adiante medidas sem precisar respeitar a divisão de poderes.

Tudo estava bem encaminhado para o governo até a discussão na Assembleia acerca das privatizações e da coparticipação do imposto PAIS. Neste momento, ao ver que não tinha a maioria necessária para sua aprovação, Oscar Zago, chefe do bloco da Libertad Avanza, pediu para voltar a zero a discussão que os parlamentares mantiveram durante todo o mês de janeiro, voltar para a comissão e rediscutir toda a lei originalmente apresentada.

O Presidente Javier Milei, que se encontrava em Israel realizando uma visita diplomática, afirmou em sua conta na rede social X, soando mais como um mantra do que como uma realidade: “A traição se paga caro e a Libertad Avanza não vai permitir que os governadores pratiquem extorsão contra o povo para manter seus privilégios. A Lei Bases volta para a comissão”.


Trabalhadores que “não a veem” e uma casta empresarial que sempre a vê

Torna-se importante notar que as duas iniciativas do governo, o mega DNU e a Lei Ómnibus, são de fato uma nova constituição e não simplesmente “uma lei” ou “um decreto”. Durante meses, Federico Sturzenegger (ex-funcionário do governo dos ex-presidentes argentinos [Fernando] De la Rúa [1999-2001] e Mauricio Macri [2015-2019]) esteve trabalhando nesta reforma profunda do Estado e da economia argentina a pedido da Associação de Empresários Argentinos (AEA) e de Patricia Bullrich, ex-candidata a presidência pela aliança Juntos pela Mudança.

Aos donos do bolo as notícias chegaram rapidamente, já que depois da aprovação da Ley Ómnibus, a AEA correu para celebrar a meia sanção e afirmou em um comunicado: “representa um passo muito importante” e “contribui para reduzir a incerteza”.

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Projeto de reforma da economia e do Estado não possui as ferramentas necessárias para dar fim à crise que assola os argentinos

Eliana Obregon/Telám
A falácia das “duas argentinas” não poderá continuar sendo utilizada pelo governo se o que pretende é tirar o país da crise

Esta “reforma constitucional”, na medida da casta empresarial, foi posta em marcha assim que Javier Milei assumiu o poder e designou para o Ministério da Economia o já conhecido “Messi das finanças”, Luis “Toto” Caputo.

Os primeiros a se mobilizarem foram os trabalhadores organizados na CGT, realizando uma série de assembleias que finalizaram com um chamado à Greve Geral no dia 24 de janeiro e à denúncia na justiça do Capítulo IV do DNU que propunha uma reforma trabalhista considerada inconstitucional pela central de trabalhadores. Foi assim que a Câmara do Trabalho resolveu o recurso proposto pela CGT determinando finalmente que a mencionada reforma trabalhista é inconstitucional.

À via jurídica, somaram-se também numerosos panelaços em todo o país, e finalmente, em 24 de janeiro, com um grande nível de adesão, realizou-se a primeira greve geral, mobilizando mais de 1,5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras em todo o país. Acontecia, assim, a primeira grande derrota do governo pelas mãos das e dos trabalhadores organizados, que entendiam que esta reforma só traria mais desemprego e trabalho informal, e menos direitos trabalhistas e salariais.

Não pretendemos atribuir ao novo governo problemas que vêm de longa data, mas é evidente que as medidas adotadas contribuíram para piorá-los consideravelmente. Segundo uma recente pesquisa de Zubán Córdoba e associados, 80% considera que “são as pessoas que estão pagando o ajuste de Milei”, 55% considera que “o livre mercado funciona só para os ricos”, 70% não está de acordo com que “devem ser privatizadas todas as empresas estatais” e 80% está de acordo com que “o estado tem que definir as regras básicas do sistema econômico”. Somando-se a isto, a imagem negativa de Javier Milei cresceu até chegar a 55,2% e a de Bullrich a 60%. Em contrapartida, a imagem positiva da CGT aumentou, situando-se em 40%.

Em um clima de incerteza política e econômica, as e os trabalhadores têm uma única certeza: ficam materialmente mais empobrecidos a cada dia. Fruto da histórica desvalorização de Caputo de 118% e da inflação de 50% acumulada nos quase dois meses de gestão, a perda do poder aquisitivo é de 33%. Retenhamos esta ideia: nunca houve uma queda do salário tão profunda e tão rápida na história argentina. Ao que foi dito falta acrescentar a supressão dos subsídios em energia e transporte, o que afetará consideravelmente o bolso das e dos assalariados e informais.

Além disso, como é evidente, esta perda do poder aquisitivo repercutiu negativamente nos indicadores de consumo, dando como resultado uma queda de 12% no mês de janeiro dos produtos de consumo de massa, a saber, alimentos, bebidas e artigos de higiene pessoal.

Por sua vez, a Câmara da Média Empresa (CAME) informou que as vendas no varejo caíram 14% em dezembro de 2023 e 30% em janeiro deste ano. Outros itens também apresentaram quedas severas nas vendas, como foi o caso do vestuário, com uma queda de 30% no mercado formal e 40% no mercado informal, segundo informou a Câmara Argentina do Vestuário. Isto significa que as famílias consomem menos comida e menos roupa do que há dois meses, demonstrando com isso que o ajuste está caindo sobre as maiorias trabalhadoras e não sobre a tão mencionada “casta”.

Porém, o ajuste não chega por igual a toda parte. Há dinheiro! Mas não para salários, nem para educação, nem para saúde; só há cheque em branco para reprimir. Patricia Bullrich, Ministra de Segurança de Milei (e do anterior governo de Macri) parece ser a única que tem permissão para gastar à vontade, e o faz principalmente para reprimir os protestos sociais. No contexto do tratamento da Lei Ómnibus no Congresso da Nação, houve diferentes mobilizações pacíficas que foram brutalmente reprimidas e que ocasionaram ao Estado um gasto de 134 milhões de pesos e a utilização de 4 forças federais. Um ajuste de tal magnitude só fecha com falácias e repressão.


A falácia das “duas argentinas”

Tal como vimos dizendo em nossas análises prévias, este projeto de reforma da economia e do Estado que pretende instrumentalizar o governo libertário não pode trazer as soluções que a classe trabalhadora necessita nestes difíceis momentos de crise geral. Não é possível, com políticas de livre mercado e valorização financeira, “libertar as forças produtivas da nação” e chegar a ser potência mundial. Já que, como viemos analisando, os países hoje desenvolvidos chegaram a ser potência mundial mediante políticas econômicas de proteção da indústria local e da força de trabalho. Só adotaram o livre mercado quando lograram colocar-se no alto do mundo econômico e desenvolvido.

O governo deverá governar para o conjunto total do povo argentino se pretende ter legitimidade na execução de seu programa econômico. O povo argentino tem muita luta e resistência acumulada ao longo da história, tem muito exercício democrático nas urnas e nas ruas; e parece não estar disposto a ser aviltado sem opor sua cota de organização, consciência e heterogeneidade.

A falácia das “duas argentinas” não poderá continuar sendo utilizada pelo governo se o que pretende é tirar o país da crise. Milei deverá tomar nota dos últimos acontecimentos que marcaram a realidade nacional, e compreender que se há duas argentinas, não se dividem nos 56% contra 44% como o resultado do segundo turno, e sim entre uma casta empresarial que enriquece e um povo trabalhador que cada dia está mais pobre.

Diego Lorca | Licenciado em Psicologia. Diretor do Observatório Internacional do Trabalho do Futuro, associado ao Centro Latino-americano de Análise Estratégica, CLAE.
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Diego Lorca Diretor do Observatório Internacional de Trabalho Futuro (OITRAF) e analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE) na Argentina.

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