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A verdade sobre Abimael Guzman e o seu autoproclamado Sendero Luminoso no Peru

Enquanto uns utilizaram sua morte para desmerecer o socialismo, outros difundiram sua imagem como sendo de revolucionário; há os que, como eu, preferem percorrer a trilha de sangue por ele deixada
Gustavo Espinoza M.
Diálogos do Sul
Lima

Tradução:

A morte de Abimael Guzmán Reinoso, acontecida nas primeiras horas da manhã de sábado, 11 de setembro, trouxe diversas reações. Uns utilizaram o fato para manchar e desmerecer a causa do socialismo no Peru. Outros, buscaram embelezar a imagem do defunto apresentando-o como um revolucionário de primeiro nível, que chegou ao último dia de sua vida depois de um longo período de privações e cativeiro. E houve aqueles que consideraram necessário recordar o fio de sangue que percorreu o país desde 1980, quando em maio desse ano se produziu o que popularmente se conhece como o ILA, isto é, o “início da luta armada”.

Sua etapa inicial 

Neste marco, supostos “comunistas italianos”, exaltaram a figura de Guzmán como se fosse um destacado Marxista Leninista. Em outros países, alguns pequenos grupos de “esquerdistas” extraviados, repetiram a mesma conduta. Corresponde então aos comunistas peruanos, abordar o tema com clareza para não dar lugar a avaliações falsas, nem a dolorosos erros.

Abimael Guzmán, contrariamente ao que asseguram seus seguidores, não correspondeu ao que conta a lenda. Não foi um comunista e tampouco um revolucionário. Não lutou em vida, nem caiu combatendo. Embora privado da sua liberdade, não foi vítima das torturas, nem morreu “em sua lei”. Faleceu em sua cama, e quase sem perceber, na madrugada de um dia no qual se evocaria um novo aniversário de sua captura. 

Enquanto uns utilizaram sua morte para desmerecer o socialismo, outros difundiram sua imagem como sendo de revolucionário; há os que, como eu, preferem percorrer a trilha de sangue por ele deixada

Winkiemedia
Abimael Guzmán Reinoso, morreu nas primeiras horas da manhã de sábado, 11 de setembro

O primeiro que há que recordar é que estudou Direito na Universidade San Agustín de Arequipa, em fins dos anos 40 do século passado. Quando em junho de 1950 se produziu a insurreição popular contra a ditadura de Odria nessa cidade, Abimael já era estudante de Filosofia, mas não teve participação alguma nesse fato. 

Não obstante, anos mais tarde assegurou que nessa época já se tinha iniciado na luta revolucionária e, em particular, na atividade comunista, o real é que não teve a menor presença nesses acontecimentos, nos quais os comunistas — veteranos e jovens — pegaram em armas e consagraram um efêmero Poder Revolucionário — a Junta Patriótica de Francisco Mostajo — até cair derrotados três dias depois, após uma resistência heroica. 

Foi depois destes acontecimentos, que a sua juvenil existência ignorou completamente, que Abimael viajou a Ayacucho, onde realmente, se incorporou às filas do Partido Comunista, à sombra do camarada La Torre, o qual fora durante vários anos o responsável do Comitê Regional do PCP na cidade de Huamanga. Aí se casou com Augusta, filha dele, e conseguiu alcançar o posto de Secretário de Organização do CR local, desenvolvendo suas atividades preferencialmente no campo acadêmico. 

Nesse período — outubro de 1963 — teve lugar em Ayacucho o IX Congresso da Federação de Estudantes do Peru. Foi nessa circunstância que conheci Abimael Guzmán, que nessa época trabalhava sob o pseudônimo partidário de “Álvaro”. 

Nesse conjuntura, o PCP, sobrecarregado pela crise que pouco depois geraria sua ruptura – estava virtualmente paralisado, e não teve sequer a possibilidade de enviar um membro de sua direção para orientar os estudantes comunistas nesse evento. O fato foi aproveitado precisamente por Guzmán que convenceu La Torre para que ambos se apresentassem — na condição de membros do Comité Central de então- como os “porta-vozes do Partido” diante da fração de camaradas que ali concorremos. 

Dois ostentosos fracassos foram registrados por Guzmán nessa incursão em ambientes estudantis. Sua “proposta” do que devia ser a “linha geral” dos comunistas no evento, foi esmagadoramente recusada, não obstante, o fato de que pelo menos 90% dos que o escutaram já se consideravam “maoístas”. O esquema da luta “Classe contra classe”, vigente nos anos 20 para outras latitudes e cenários, não se encaixou para nada no que devia ser a atividade dos comunistas nas Universidades peruanas do período. Isso ficou absolutamente definido no debate e a “tese” de Abimael teve apenas 4 ou 5 votos de um total de 90 participantes. 

Sua segunda derrota, não menos espetacular, aconteceu na véspera do fim do evento, quando devia ser definida a proposta dos comunistas para integrar a diretoria da FEP a ser ungida no certame. “Álvaro” se empenhou a fundo por convencer a todos que sob nenhuma circunstância, um “revisionista pró-soviético” podia ser eleito Presidente da FP. Depois da discussão foi provada unanimemente minha candidatura e no dia seguinte fui eleito Presidente da FEP. 

A construção de uma lenda  

Produzida a ruptura com o maoismo, em janeiro de 1964, Abimael ficou com Saturnino Paredes e José Sotomayor “na outra margem”, mas logo entrou em crise essa tendência. Sotomayor retornou ao PC, enquanto Abimael rompeu com Saturnino, e fez “tenda à parte”. 

Desde seu pequeno núcleo ayacuchano desautorizado pelos comunistas locais, “Álvaro” passaria logo a tomar como “sua referência” o tristemente célebre “bando dos quatro” que consumara diversos malefícios na China e fora tirado do Poder não sem antes de instalar no Camboja o sinistro regime de Pol Pot e Iean Sari, incompatível com a concepção humana do socialismo. 

Estando na China, e sob a influência dessa perniciosa quadrilha expulsa do Poder depois da morte de Mao, Abimael traçou sua “linha própria”. E para se diferenciar da “oficial” liderada por Paredes, decidiu concluir seus documentos com uma espécie de frase cabalística: “pelo sendero luminoso de José Carlos Mariátegui”.

A partir daí foi cooptado por aqueles que fincaram a ideia de caotizar o comunismo peruano apresentando-o como quebrado e dividido em vários “partidos”. Foi por isso que logo o pequeno núcleo de Abimael foi designado como “Partido Comunista-Sendero Luminoso”, para diferenciá-lo do “Partido Comunista “Bandeira Vermelha” de Paredes e do Partido Comunista de José Sotomayor, que depois se dissolveu. 

Para a completar a confusão, os dissidentes de Paredes formaram, em 1969, “Pátria Vermelha” e a partir daí — para considerá-lo como “uma facção a mais’ — batizaram o Partido Comunista Peruano como “PC-Unidade”. Desse modo, diante dos olhos de nossos compatriotas, os comunistas deixamos de ter um Partido, e nos convertemos em cinco facções mais ou menos dissolventes. Gerar “diversas variantes” do Partido Comunista foi um jogo do inimigo. 

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Mas essa era uma crise orgânica, que devia ser convertida rapidamente em crise política, para que tivesse efeito. Começou então o trabalho orientado a afirmar o Sendero Luminoso como “o” Partido Comunista, com liderança definida e linha própria. E a fim de afirmá-lo nesse rumo, o perfilou como “o” Marxista-Leninista-Maoista a carta cabal.

Foi mérito próprio esta “conquista”, ou foi a CIA que desempenhou um papel decisivo na matéria? Se poderia dizer, como em muitos casos, que um e outra tiveram a ver no tema. Um livro interessante escrito por Washington Huaraccha Apaza, e publicado sob o pseudônimo de Andreo Matias, assegura que Sendero Luminoso foi simplesmente criação dos serviços secretos dos Estados Unidos. Essa versão foi recolhida por Hector Béjar, e gerou o protesto dos porta-vozes mais caracterizados da reação peruana. 

Provavelmente a tese pareça exagerada. Sendero existiu como uma espécie de pequena célula terrorista em Ayacucho. E sim, foi estimulada, promovida e sobretudo publicitada e nutrida politicamente desde o exterior. 

A mão da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos — a CIA — bem pode haver tido aqui um papel definido.   

Na década dos 70, a atividade principal do Sendero Luminoso, esta pequena estrutura, esteve orientada a minar a CGTP. Volantes, cartazes, jornais e outras modalidades de imprensa foram usadas para atacar a Central Operária, à qual lançaram todos os epítetos: vendedora de operários, reformista, colaboracionista, entreguista, velasquista, e tudo o que ocorreu aos mentores dessa prédica. 

No aspecto pessoal, eu recebi sete ameaças de morte — algumas das quais conservo  —  em cartas e outros documentos. Mas nunca teve predicamento algum no movimento operário. Foi só uma caixinha de ressonância destinada a amplificar as injúrias que a direita mais reacionária — e outros grupos da ultraesquerda destilavam contra nós. 

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Em janeiro de 1979, produziu-se uma Greve Nacional de três dias, decretada pela CGTP, e prevista para os dias 9,10 e 11 desse mês. No dia 3 de janeiro, fui detido como o primeiro dos que estavam na lista dos serviços policiais. 

A partir dessa noite, foram caindo outros ativistas políticos e dirigentes sindicais. Posteriormente, foi detido Alfonso Barrantes e também Abimael Guzmán. Quis a circunstância que por decisão das autoridades, finalmente Alfonso, eu e Abimael ficássemos recluídos no mesmo quarto até que Abimael fosse libertado por gestão de três vice-almirantes — o que confirma Gustavo Gorriti — porque declarou perante a polícia que ele “não tinha nada que ver com a CGTP e com essa ‘Greve Revisionista’, mas sim com a luta armada”. Imediatamente depois foi libertado.    

O mito em ação

Quando o mito se pôs em marcha, apareceu a lenda. Abimael foi considerado “A Quarta Espada” da Revolução Mundial. Depois de Marx, Lenin, e depois Mao; e claro, o quarto, Abimael. 

Como os três primeiros já haviam falecido. Abimael ficava como o único, a verdadeira Primeira Espada, o líder da Revolução Mundial. Isto foi dito e repetido até cansar, ficando confirmado aquilo que havia visualizado Aníbal Ponce. 

Estimulando a vaidade, nunca adormecida, a burguesia pode usar em benefício de sua causa muitos presumidos, e mesmo proclamados, revolucionários. Nesse caso, estimular esses traços no líder senderista foi altamente proveitoso para os objetivos propostos, e que pouco a pouco se foram afirmando.   

Já nos anos 80, Sendero Luminoso deu renda solta às suas “atividades armadas”, fazendo muita propaganda após os acontecimentos de Chuschi. Com sua pregação e ações, iniciou-se “o período da violência”, que deixou um rastro de destruição, sangue a morte em boa parte do território nacional, e que se prolongou até a detenção de Abimael, em setembro de 1992. 

Aqui entraram para valer os meios de comunicação e certos serviços não definidos, que buscaram “levantar” a imagem de uma imensa estrutura terrorista capaz de realizar as maiores ações: voar torres de alta tensão, explodir dinamite, explodir carros-bomba, assassinatos seletivos, enfrentamentos bélicos, massacres de camponeses e até Greves Armadas em diferentes cidades; foram o “pão do dia a dia” nesse anos que hoje parecem simplesmente pesadelos para muitíssimos peruanos. 

No extremo, as “hostes” Senderistas conseguiram converter as Prisões em “Escolas de Preparação Armada”, como foi dito, organizando verdadeiros “desfiles” com bandeiras e cartazes, para horror daqueles que acreditaram ver ali a “antessala do socialismo”. 

O que cabe perguntar é se essa pequena “estrutura terrorista” foi realmente capaz de impulsionar todas essas ações que, segundo a imprensa oficial, chegou a alcançar “o equilíbrio estratégico” e que até “esteve a ponto de tomar o Poder”. Hoje há aqueles, no extremo da fábula, que asseguram que nesses anos Lima esteve “sitiada” e que o acesso a ela só se podia fazer por mar. Tamanhas mentiras poderiam impactar despistados esquerdistas irlandeses, mas nenhum peruano, em seu juízo perfeito, assumiria isso. 

Além da propaganda de um e outro signo, é preciso analisar as coisas tal como aconteceram: Como as ações iniciais do Sendero Luminoso se situaram em Ayacucho, as primeiras “operações” aconteceram na serra central do país. Tratou-se, em primeira instância, de presumidos “enfrentamentos armados” entre efetivos policiais ou militares, contra supostas “colunas senderistas” que se deslocavam pelos Andes. Para dar consistência à versão, falou-se então de um Exército Popular Senderista em ação.

A primeiro a acontecer foram os chamados “enfrentamentos armados” nos povoados rurais. A versão oficial falou sempre de “ações subversivas”. A explicação dava conta de “colunas senderistas” que sustentavam combates com “efetivos policiais ou militares”. Ao longo de tempo, o país soube de diversos nomes:  Soccos, Pucayacu, Accomarca, Llollapampa, Umaro, Santa Rosa, Huancapi, Pomatambo, Parcco Alto, Pucca, Cayara e muitos mais. Quando cada um desses casos foi investigado, desde as primeiras evidências, apareceu uma verdade diferente: não houve tais “enfrentamentos”, nem “colunas senderistas”. Nem sequer “choques armados”. O que se registrou em cada lugar foi a incursão de efetivos policiais ou militares nas aldeias em busca de “presuntos subversivos”.

As unidades armadas que executavam essas ações consumavam diversos atropelos: queimavam as aldeias, saqueavam as moradias, golpeavam as pessoas, violavam as mulheres, matavam os povoadores. E depois reportavam esses “enfrentamentos” nos quais – supostamente – haviam “derrotado” uma “coluna senderista”. Isso era repetido até cansar pela Grande Imprensa, era acolhido pelas autoridades da capital que falavam também da “insânia terrorista” e da necessidade de “recompensar esses valorosos fardados que defendiam a Pátria e a Democracia”. 

As indagações mostravam casos de tortura, execuções extrajudiciais, desaparecimento forçado de pessoas, habilitação de centros clandestinos de reclusão e, naturalmente, privações ilegais da liberdade. Logo apareceram denúncias, investigações, testemunhos e outros que ainda se ventilam em tribunais ordinários em nosso tempo. Tomou forma, então, a atividade de Alvaro Artaza, o “Comandante Caminhão”; as correrias de Thelmo Hurtado e as sinistras “Brigadas Lince”; as retenções nos Estádio de Huanta, o desaparecimento de Jaime Ayala; as tumbas clandestinas no Quartel “Los Cabitos”, “A Casa Rosada”, nos arredores do aeroporto huamanguino. Nada disso foi inventado. Tudo isso foi confirmado.  

A farsa descoberta 

Mas a lenda continuou, e assim uma boa parte da cidadania acreditou, efetivamente, na existência de uma “insurgência armada”. E houve, inclusive, aqueles que, a partir disso, justificaram as ações militares, e disseram depois que nelas haviam se registrado “alguns excessos”. Referiram-se seguramente, às crianças queimadas em Llollapampa, aos crimes consumados em Accomarca, aos camponeses assassinados à baioneta em Cayara, aos jornalistas mortos em Uchuraccay.

No plano oficial, a versão da classe dominante foi a mesma, mas o governo de Alan García, a partir de 1985, empenhou-se em formalizar as coisas atribuindo tudo à “atividade subversiva do Partido Comunista do Peru Sendero Luminoso”. E repetiu até cansar isso do “Partido Comunista do Peru-Sendero Luminoso” para meter na cabeça das pessoas que sim, que Sendero Luminoso era “o Partido Comunista” do Peru; e que era o responsável do terror, das bombas e dos crimes abomináveis que eram denunciados. 

Nesse lapso, tudo o que de violência acontecia, se adjudicava ao Sendero Luminoso. E, certamente, se enfeitava toda ação com bandeiras vermelhas, pintando foices e martelos, com a música da Internacional, para que não houvesse dúvida. O cenário estava perfeitamente desenhado para ninguém deixasse de acreditar na versão. 

Enquanto “a guerra popular” se desenvolvia “intensamente em todo o país”, enquanto Sendero Luminoso conseguia “o equilíbrio estratégico” e “cercava Lima e outras cidades”, Abimael não esteva à frente de suas tropas. Não era como Fidel, na Sierra Maestra. Não. Estava em Lima, vivendo em zonas residenciais em distritos “exclusivos” da capital. 

Em 1983, esteve na residência de seu sogro, localizada na esquina das avenidas Pershing e Salaverry e podia ter sido capturado. O que aconteceu? Gustavo Gorriti revela em seu livro sobre o Sendero, que o Presidente Belaunde deu a ordem de que não fosse capturado. E disse isso ao ministro correspondente de então, o general Essewagen, Curiosamente, depois, um dos filhos desse militar — também fardado — terminaram vinculados ao Sendero Luminoso, e nunca se soube como nem por quê.

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Assegurou-se, falsamente, que a Esquerda “conciliou” com o Senderismo, o que “não deslindou” com ele. Para desmentir tal afirmação, bastaria revisar as edições de “Unidad”, o Semanário do Partido Comunista Peruano, sobretudo entre 1982 e 1986; mas também a entrevista que deu o Secretário Geral do Partido, Jorge del Prado, à revista “Qué hacer”- Aí disse:

“Considero Abimael Guzmán e o “Sendero Luminoso” como uma verdadeira e muito repudiável aberração histórica. Não faz falta referir-nos aos disparates anacrônicos e fundamentalistas de sua pseudo ideologia, nem às suas deformações monstruosas e fraudulentas do marxismo, tampouco à sua ação genocida igualmente monstruosa. Ao PCP, o senderismo não só prejudicou com o assassinato físico de cerca de 20 prefeitos comunistas e líderes sindicais, mas, sobretudo, por haver usurpado flagrantemente o nome “comunista”, e até o nosso símbolo, a foice e o martelo…”

Quando caiu a máscara 

Com o governo de Fujimori foi ainda mais ostensiva a coisa. Em fins de 1990, os serviços de inteligência “localizaram” Abimael Guzmán em uma luxuosa casa situada na zona residencial de Surco, e programaram detê-lo. Para isso “comunicaram aos superiores” tal operativo. 

A poucas horas de ser efetuado, um envelope fechado se deslisou embaixo da porta da residência, e nele, uma nota lhe advertia para que tivesse cuidado, E assim aconteceu. Por isso, o último operativo — e o que teve êxito — não foi comunicado a ninguém, nem aos superiores. Então, Fujimori foi pilhado pescando em um lago da selva, e seu assessor de inteligência em uma recepção na residência britânica em Lima. 

Depois da captura de Guzmán, cessaram, como por arte de magia, as ações terroristas. Afirmou-se então outra lenda: Fujimori havia “derrotado o terrorismo e pacificado o país”. Na verdade, os que estavam fazendo ações terroristas — fossem senderistas ou não — deixaram de fazê-las. É que elas já não eram necessárias. 

Ao contrário, poderiam resultar contraproducentes e inclusive desestabilizar o regime que havia conseguido “reinserir o país no sistema financeiro internacional”. Então, parou-se com tudo. 

É possível concluir que toda essa “estratégia antissubverssiva” não foi mais que uma guerra de extermínio contra as populações originárias e os peruanos mais pobres. Por isso o terror se concentrou nas aldeias. Por isso, quando a Comissão da Verdade apresentou seu informe, teve que  reconhecer que 75% das vítimas da violência eram indígenas ou provinham de populações originarias e falavam quéchua. Viviam, ademais, no mundo rural. 

Adicionalmente, deveu admitir que o Programa de Esterilizações forçosas aplicado durante o governo de Fujimori, afetou 350 mil mulheres, em sua imensa maioria indígenas. Se cada uma dessas mulheres tivesse conservado a possibilidade de ter descendência, teria nascido algo mais de um milhão de crianças provenientes desses segmentos secularmente subjugados e discriminados. Por acaso, é pequena essa cifra? 

Pode entender-se então o que realmente houve no Peru neste período: não foi um “conflito interno” nem “uma insurgência popular”. Nem sequer um “combate contra a subversão”, nem uma “política de pacificação”. O que realmente houve, foi uma estratégia de aniquilação e uma política de extermínio, contra as populações vulneráveis, as mais deprimidas.   

Uma culminação deplorável

O que veio depois, foi de opereta. Abimael capitulou. Enviou “cartas de rendição” ao Presidente Fujimori, e “lhe ofereceu a paz” depois de reconhecer sua superioridade e admitir sua derrota. Depois, reuniu-se o “Pleno do Comitê Central Senderista” nas instalações do Serviço de Inteligência Nacional. E depois habilitaram um quarto conjugal para o líder senderista e sua esposa, não sem antes celebrar seu aniversário, com canções e bolos incluídos. Tudo isso está gravado, só que hoje se oculta. 

Algum líder comunista de algum país do mundo, teve alguma vez um comportamento similar? Algum recebeu esses “reconhecimentos” e “presentes” desse tipo? Recordemos apenas a prisão de Prestes nos anos do Estado Novo brasileiro, ou a situação de Rodney Arismendi nos tempos da ditadura fascista do Uruguai, ou o caso do valoroso Luis Corvalán, no Chile na época de Pinochet. 

Inclusive, em nosso país, que líder comunista assumiu um comportamento como o de Guzmán diante dos seus captores?  Jorge del Prado, Isidoro Gamarra, Pedro Huilca?, para mencionar alguns.    

A discussão e o debate, o deslinde de responsabilidades e o desenvolvimento da história, se encarregarão de colocar cada coisa em seu lugar.  E todas as lendas e mitos ficarão onde lhes corresponde. Mas é bom, ao concluir esse texto, sublinhar que o terrorismo não tem relação alguma com o Marxismo nem com o socialismo; que não é uma ideologia, mas sim uma prática concreta; e que não qualifica, mas sim desqualifica seus impulsionadores e aplicadores porque rende culto ao terror, ao espontaneísmo e ao individualismo; e que é, além disso, incompatível com as mais elementares práticas revolucionárias dos povos. 

Pode se dizer, além disso, que se usou o nome do Sendero Luminoso e lhe foi adjudicado o caráter de “Partido Comunista” deliberadamente, para difamar e envilecer a imagem do socialismo; para mimetizar a mensagem socialista com o terror, a morte e a vulnerabilidade permanente. Para que as pessoas associem a bandeira vermelha com a destruição e a barbárie, e assumam a ideia de que a Foice e o Martelo são símbolos envolvidos em sangue e morte. E para que até a sigla do PCP fosse temida e rechaçada pela população. 

Adicionalmente, para romper o binômio Povo- Força Armada, forjado pelo processo de Velasco Alvarado, e que dera consistência à Revolução Democrática e Anti-imperialista de 68. Buscou-se, efetivamente, inverter a ótica das pessoas, de tal maneira que o povo visse nos militares um bando de assassinos e corruptos; e que os fardados assumissem a ideia de que o povo estava ganho pelas “ideias terroristas” diante do que só cabia uma política de extermínio. Colocar um profundo abismo de morte entre a Força Armada e o Povo, para que nunca mais se repita a história. 

E agora, o que farão os que “levantaram” a figura de Guzmán até colocá-lo em um lugar quase inalcançável, reconhecendo-o como “a quarta espada da revolução mundial”? Já não lhes serve, já está morto. Então, o que farão? O encherão de impropérios. Lhe gritarão: “assassino”, “hiena maldita”, “genocida”.

E muitas outras coisas mais. Mas o usaram outra vez para dizer que foi “o símbolo do comunismo”, que sua bandeira era “a bandeira vermelha”, que “promoveu a luta de classes”, que “valeu-se da violência”. Desse modo, todos os que de uma ou outra maneira sustentam tais pontos de vista, serão considerados “senderistas”, “pró senderistas” ou outras sandices do tipo. 

E no contexto atual, em nosso país, se usará como pretexto para desacreditar um governo progressista e popular, e para vinculá-lo à figura desumana da barbárie. Responder a essa campanha é um dever essencial. 

*Colaborador de Diálogos do Sul de Lima, Peru. 


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

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