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Por que voto em Haddad

Para varrer o PT do mapa, para vetar Lula, foi preciso tentar ferir de morte a política e a própria República. O público foi tragado pelo mercado
Luiz Eduardo Soares

Tradução:

Devo começar declarando minha admiração por Guilherme Boulos (Psol) e Ciro Gomes (PDT). Acredito que Boulos se tornará uma grande referência política, cujo protagonismo contribuirá para redesenhar a configuração partidária atual e espero poder acompanhá-lo no futuro pós-eleitoral. Sua candidatura, entretanto, foi assumida como oportunidade de politização da sociedade, particularmente das classes subalternas, sem a pretensão de disputa efetiva. E aí está o problema, porque as eleições de 2018 são dramaticamente decisivas para o país. 

Ciro Gomes é um dos políticos mais inteligentes e preparados de nossa história republicana e propõe ao país uma transformação importante, dispondo-se a enfrentar os interesses do capital financeiro com o propósito de retomar o desenvolvimento e reduzir as desigualdades, tendo em vista sempre a defesa da soberania nacional, profundamente ameaçada pelo atual governo ilegítimo. Considero sua aliança com a senadora Katia Abreu (PDT-TO) — candidata a vice — compreensível, no esforço de evitar o isolamento, mas não subestimo os riscos aí envolvidos, uma vez que, mesmo tendo sido contrária à farsa do impeachment, ela tem um histórico extremamente negativo, no que diz respeito ao meio ambiente, à preservação das terras indígenas e à luta contra o trabalho escravo. 

Todavia, há uma dificuldade mais relevante: Ciro é um homem na ventania. Quero dizer o seguinte: o candidato atua e se situa no mapa político como indivíduo, isto é, como um agente desprovido de vínculos orgânicos com organizações democráticas da sociedade civil e movimentos sociais. Seu partido, embora proveniente de uma origem respeitável, há muito tempo afastou-se da identidade que Leonel Brizola tentou construir. Por isso, Ciro transita entre zonas distintas do espectro político conforme cálculos táticos, apoiados em seu projeto pessoal, que por mais generoso que seja é, antes de tudo, seu próprio projeto. E, como sabemos, as conjunturas, sobretudo nesse período de constante instabilidade, são centrípetas e agonísticas. A taxa de imprevisibilidade da candidatura do PDT é elevada. Quando os críticos lhe cobram pelo temperamento explosivo erram o alvo. O que é explosivo, incerto e errático é seu destino político, porque condenado a ser moldado por decisões individuais, sob os constrangimentos das diferentes conjunturas. Sim, trata-se de um grande homem, mas é um indivíduo. E o que há lá fora é ventania.

Por fim, Haddad. Vamos lá.

O PT vinha perdendo seus laços com os movimentos sociais porque, a despeito das enormes conquistas dos governos de Lula (2003-2010), os melhores de nossa história, não estava sendo capaz de realizar sua autocrítica, publicamente, extraindo daí todas as consequências. Entretanto, o Partido dos Trabalhadores e os movimentos sociais se reencontraram. Velhos militantes decepcionados, como eu mesmo, voltaram à trincheira comum. A aprovação do partido, que caíra vertiginosamente, retornou à marca de 24%. Críticos contumazes, como eu mesmo, cerraram fileiras com os antigos companheiros. Desafetos resolveram colocar a gravidade da situação política acima de desentendimentos, por mais significativos que fossem.

Por quê?

Eis a resposta — há aqui muito de testemunho pessoal.

Creio que o processo de afastamento foi revertido pela brutalidade com que as elites passaram a agredir o partido, chegando ao ponto de negar as conquistas alcançadas, tentando apagar da memória coletiva o fato de que Lula concluiu o segundo mandato com 85% de aprovação popular e se recusou a sequer considerar a hipótese de aceitar a mudança das leis para buscar um terceiro mandato, que lhe cairia nas mãos por gravidade, mesmo sem campanha. Apesar de a grande mídia insinuar que o presidente terminaria por copiar os passos do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez (1999-2013), ele fez o contrário, dando a maior demonstração possível — não consigo imaginar outra que fosse comparável — de que, acima de tudo, respeita o Estado democrático de direito, o qual, paradoxalmente, não o respeitou, desrespeitando-se a si mesmo, negando sua própria natureza, mergulhando o país no arbítrio de violações sucessivas. 

Para varrer o PT do mapa, para vetar Lula, foi preciso tentar ferir de morte a política e a própria República. O público foi tragado pelo mercado

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Fernando Haddad e Manuela D’ávila em Recife (PE) Foto: Ricardo Stuckert/ Fotos Públicas

Por uma
questão de honestidade intelectual, importa assinalar que o ex-presidente FHC
não resistiu ao canto da sereia, ele que, com seu partido, condena o
“bolivarianismo”. Mas é claro que a compra de votos para que se viabilizasse a
reeleição e a mudança das regras de jogo, enquanto o jogo era jogado, não
feriram a sensibilidade moral da mídia conservadora, a qual não apenas
calou-se, cúmplice, como apoiou a candidatura do PSDB à reeleição, cancelando,
com o despudor que lhe é próprio, os debates entre os candidatos, nos quais FHC
teria de responder por seus malfeitos na economia, na política, na ética.

A campanha pelo impeachment

A campanha
pelo impeachment foi tão cínica, venal e repulsiva, que infiltrou e disseminou
na opinião pública o veneno do antipetismo, o grande mal que nos assola e
divide. Desde aquele momento, impunha-se, para qualquer democrata, resistir com
o antídoto: o anti-antipetismo. Era preciso e urgente denunciar o perigo
escandaloso das generalizações, não apenas aquelas que estendiam para o
conjunto dos membros do partido qualquer acusação que atingisse algum de seus
membros, como aquelas que comprometiam todas as conquistas históricas do
partido e de seus governos ao conectá-las a erros econômicos específicos e
recentes. E ainda aquelas generalizações que conectavam crise econômica a
corrupção. O antipetismo escapou ao controle dos comunicadores que o gestaram,
vestiu o uniforme do fascismo e retirou dos armários em que se escondiam,
envergonhados, o racismo, a sede de vingança, os cavaleiros da barbárie. 

O processo
grotesco foi sendo conduzido por vazamentos seletivos, estrategicamente
distribuídos. E por decisões evidentemente artificiais. Direitos foram violados
sob o silêncio de uns e os aplausos da mídia conservadora. O que era importante
e necessário combate à corrupção, converteu-se em método de desconstituição
política, ideologicamente orientado. A Justiça degradou o direito e a
Constituição corrompeu-se na exceção.

O resultado do incêndio

Para que
incendiaram o país e o contaminaram com esse ingrediente patológico, o ódio
feroz ao PT, transfigurado em signo do mal?

Para levar
ao poder, em nome da luta contra a corrupção, os que mais fundo enterraram seus
pés no pântano. Mas é claro que havia uma razão superior para que se
perpetrasse tamanha traição ao que um dia chamaram pátria. Era preciso
aproveitar a oportunidade para impor goela abaixo do povo brasileiro, que
jamais o aceitaria pelo voto, uma agenda neoliberal extremada, liquidando
direitos sociais e o patrimônio nacional, inclusive ambiental.

Eis,
enfim, o propósito do golpe. Havia duas metas a cumprir para garantir a
continuação da política ruinosa em curso:

1.  
excluir Lula das eleições, a qualquer preço;

2.  
difundir a versão mais primária da ideologia liberal
nas camadas médias.

Segundo
essa concepção tosca, haveria uma oposição entre Estado e Sociedade. No âmbito
dessa visão de mundo primitiva, o Estado atuaria como predador, a serviço dos
interesses de seus operadores (governantes, legisladores e funcionários): os
sanguessugas sorveriam a energia e os frutos do trabalho da sociedade, a qual
seria um saco de batatas, um aglomerado de indivíduos — como gostava de dizer
Margareth Tatcher.

Como salvar o Brasil?

Conclusão:
para salvar o Brasil, seria necessário reduzir o Estado ao mínimo e liberar o
mercado, porque a sociedade entregue a si mesma, livre das garras do Estado e
de seus impostos escorchantes (que só serviriam para alimentar políticos e
funcionários), se desenvolveria a pleno vapor, harmoniosa e feliz. Como veem,
não há mitologia mais adequada para justificar o darwinismo social.

A pobreza
e as desigualdades seriam expressões da distribuição desigual do mérito. É
nesse ponto que a corrupção torna-se central: o sangue drenado do corpo social
alimenta o vampiro imoral, o mal supremo, a mãe de todos os males: a corrupção.
Desse modo, uma ideologia política, travestida de descrição objetiva e neutra
da “realidade”, ganha a alma que falta ao discurso economicista e suscita o
ódio que a radica nas redes intersubjetivas que formam opiniões coletivas.

Nesse
sentido, a corrupção é a linguagem que engata percepções, valores e afetos no
âmbito da ideologia neoliberal. Corrupção, enquanto tema midiaticamente
associado ao impeachment de natureza golpista, é antes de tudo o veículo da
ideologia anti-Estado, anti-política, é a dramaturgia do ódio, a conclamação ao
linchamento, a exaltação da vingança, o combustível do punitivismo e a dupla
negação: por um lado, da sociedade como conjunto de contradições, constelação
de classes sociais em conflito; por outro lado, do Estado, como espaço de luta
por hegemonia.

Em síntese, eis aí o resultado:

Lula preso
e excluído da disputa eleitoral, que ele venceria no primeiro turno; o
neoliberalismo disseminando-se como o outro lado da moeda da corrupção; a
recusa à Política como apanágio da moralidade popular. Enquanto isso, o país
segue sendo entregue aos interesses internacionais e a grande massa da
população volta a mergulhar na miséria, ouvindo dia e noite a cantilena anti-política.

Para
varrer o PT do mapa, para vetar Lula, foi preciso tentar ferir de morte a
política, como atividade humana imprescindível na democracia, e a própria
República. O lugar do público foi tragado pelo vórtice do mercado. O coletivo
reduzido ao ajuntamento de indivíduos. As desigualdades acabaram justificadas
pelo mérito.

Sabem qual
é o nome disso, desse fenômeno monstruoso? Jair Bolsonaro (PSL).

Nesse
contexto, se vejo assim o país, como eu poderia não apoiar Fernando Haddad (PT)?

Claro que,
além disso, além do que julgo ser meu dever — confrontar sem medo o antipetismo,
resistir à tentação de capitular (por exemplo, aceitando que uma vitória do PT
produziria muito desgosto nas hostes opostas e geraria uma atmosfera
excessivamente tensa no país) —, além de tudo isso, há o candidato, Haddad, um
dos políticos jovens mais talentosos, preparados e inteligentes de sua geração.
Estão mais do que claros seus compromissos com a democracia (e a urgentíssima
democratização da mídia), a soberania nacional e os direitos humanos, com a
luta contra o racismo, as desigualdades, e com a defesa do meio ambiente, das
sociedades indígenas e das minorias.

Chega de
violações aos direitos e de manipulação. Está em jogo o futuro do país.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Luiz Eduardo Soares Sociólogo de origem brizolista e um dos maiores especialistas do país em segurança pública

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