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O marxismo continua atual para a crítica do capitalismo e a denúncia das desigualdades

A teoria do valor-trabalho é uma referência indispensável para a análise do capitalismo, qualquer que seja a fase do desenvolvimento das forças produtivas
Ricardo Machado
Revista IHU On-line

Tradução:

A teoria marxista se sustenta em três linhas do pensamento moderno, surgidos a partir da Revolução Industrial e Energética: economia política inglesa, filosofia alemã e socialismo francês. “De uma forma ou de outra (mas não sem questionamentos), estes três pilares continuam vivos e vão permanecer como referência para a crítica social enquanto houver relações capitalistas de produção”, avalia José Eustáquio Diniz Alves. “Porém, fundamentando toda sua análise na teoria do valor, Marx não conseguiu resolver as incongruências quantitativas entre a magnitude do valor e o preço das mercadorias.” Sendo assim, “uma hipótese fundamental do marxismo que não se confirmou foi a ‘queda tendencial da taxa de lucro’, o que seria um ponto-chave, pois teria como resultado a ‘crise final do capitalismo’”, explica em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Ao refletir sobre o legado teórico de Marx, Alves reconhece que ele nem chegou perto do “sonho de uma sociedade sem exploração e sem dominação, uma sociedade verdadeiramente comunista”. Ao citar o lema “de cada um conforme suas capacidades, a cada um conforme suas necessidades”, afirma que “esta bela utopia […] parece estar mais distante da materialização do que a possibilidade de o ser humano ultrapassar os limites da Via Láctea”.

Para discutir marxismo, Alves também trata do capitalismo. Para ele, “a filosofia marxista continua atual, especialmente no que diz respeito à crítica ao funcionamento do sistema capitalista e à denúncia das desigualdades sociais da sociedade urbano-industrial”. No entanto, ressalva “que o marxismo já nasceu desatualizado no que se refere à relação entre a humanidade e a natureza”.

Sobre um dos debates contemporâneos, acerca da renda básica universal, Alvesconsidera que, “se bem implementada, pode ser um importante mecanismo de transferência de renda, de compensação das falhas do mercado, de combate à pobreza, de melhoria da distribuição de renda e de fortalecimento da cidadania”. No entanto, chama de ideia romântica a aposta de que ela possa salvar o capitalismo. “Acreditar na possibilidade de os capitalistas taxarem os futuros onipresentes e oniscientes robôs e distribuírem uma renda básica universal para que a população desocupada tenha recursos para comprar os seus próprios produtos é uma ideia surreal.”

José Eustáquio Diniz Alves é doutor em Demografia, mestre em Economia e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, com estágio pós-doutoral na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Foi professor da Universidade Federal de Ouro Preto de 1987 a 2002. É pesquisador titular da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Ence/IBGE.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a atualidade de Karl Marx em termos filosóficos? Que intuições se confirmaram e quais nunca foram sequer sombras da realidade?

José Eustáquio Diniz Alves – A teoria marxista foi tecida a partir de três linhas do pensamento moderno, que surgiram a partir do início da Revolução Industrial e Energética, entre o último quartel do século XVIII e o primeiro quartel do século XIX: a economia política inglesa (teoria do valor-trabalho), a filosofia alemã(materialismo histórico-dialético) e o socialismo francês (fim da propriedade privada e da “escravidão assalariada”). De uma forma ou de outra (mas não sem questionamentos), estes três pilares continuam vivos e vão permanecer como referência para a crítica social enquanto houver relações capitalistas de produção.

Porém, fundamentando toda sua análise na teoria do valor, Marx não conseguiu resolver as incongruências quantitativas entre a magnitude do valor e o preço das mercadorias. Assim, um dos problemas não adequadamente equacionados do marxismoé o da “transformação do valor em preço”. Desta forma, uma hipótese fundamental do marxismo que não se confirmou foi a “queda tendencial da taxa de lucro”, o que seria um ponto-chave, pois teria como resultado a “crise final do capitalismo”.

Mas apostar no determinismo do colapso capitalista em função de suas “contradições internas” é como apostar contra o cassino, acreditando na incompetência do crupiê. Com mostrou Geoff Mulgan [1], autor do livro The locust and the bee (o gafanhoto e a abelha), o capitalismo é essencialmente um sistema em movimento, no qual tendências fortemente predatórias (o gafanhoto) se articulam com forças construtivas (a abelha) para formar um amálgama cuja marca é a transformação. Para Mulgan, Marx errou ao subestimar a capacidade do capitalismo de responder e se adaptar às ameaças e pressões políticas. Ou como diria Joseph Schumpeter [2], o capitalismo é um sistema dinâmico, que funciona em ciclos de “destruição criativa” e que se desenvolve impulsionado pela liderança do empresário inovador.

Completando a resposta, o que nem sequer chegou perto da realidade foi o sonho de uma sociedade sem exploração e sem dominação, uma sociedade verdadeiramente comunista, funcionando à base do lema: “De cada um conforme suas capacidades, a cada um conforme suas necessidades”. Esta bela utopia, que também era compartilhada pelos anarquistas, parece estar mais distante da materialização do que a possibilidade de o ser humano ultrapassar os limites da Via Láctea.

É possível pensar a produção teórica de Marx dentro das sociedades contemporâneas cada vez mais imersas na Revolução 4.0?

A teoria do valor-trabalho é uma referência indispensável para a análise do capitalismo, qualquer que seja a fase do desenvolvimento das forças produtivas. Mas nos últimos 200 anos, desde o nascimento de Marx, o conflito capital versus trabalho se complexificou e não gerou uma polaridade entre uma maioria esmagadora de operários empobrecidos e uma reduzida minoria de capitalistas escandalosamente enriquecidos. Marx e Engels [3], de certa forma, deixando implícita a ideia de um empobrecimento absoluto da classe trabalhadora, disseram no Manifesto Comunista: “Os proletários nada têm a perder, a não ser os seus grilhões. Têm um mundo a ganhar”.

Contudo, houve conquistas além dos grilhões e, na realidade, a extrema pobreza foi reduzida. Segundo os dados do site “Our World in Data”, um projeto da Universidade de Oxford com dados disponíveis gratuitamente na internet, a população mundial, que era de 1,08 bilhão de habitantes em 1820, tinha 1,02 bilhão vivendo na extrema pobreza (representando 94% da população total) e 60,6 milhões vivendo acima da linha da extrema pobreza (representando 6% do total). Em 2015, a população mundial chegou a 7,35 bilhões de habitantes, com 6,6 bilhões (89,8%) acima da linha da extrema pobreza e 705,6 milhões de pessoas (10,2%) vivendo na extrema pobreza. Em resumo, a extrema pobreza caiu de 94% do total populacional, em 1820, para 10% em 2015. A significativa redução da extrema pobreza global foi acompanhada pela melhoria dos indicadores demográficos. A mortalidade na infância (0 a 5 anos) atingia 43,3% das crianças em 1800 (56,7% sobreviviam após os 5 anos) e caiu para 4,2% em 2015 (com 95,8% das crianças sobrevivendo após os 5 anos). A esperança de vida ao nascer da população mundial, que estava abaixo de 30 anos no século XIX, chegou a 71,4 anos em 2015.

Todos estes avanços socioeconômicos só foram possíveis porque houve progresso das forças produtivas, avanços científicos e tecnológicos de grande monta, uma ampla diversificação da estrutura produtiva, o surgimento de um bônus demográfico e uma enorme disponibilidade de energia fóssil a preços baixos. Embora as relações capitalistas de produção sejam hegemônicas, o modo de produção capitalista não funciona no vácuo, pois está inserido em formações sociais concretas. Isto quer dizer que as relações capitalistas de produção, mesmo sendo dominantes, não abarcam todas as formas de se produzir bens e serviços em uma sociedade. Desta forma, nem todos os trabalhadores fazem parte da classe operária (“classe em si”). E, mesmo entre os operários, não é fácil alcançar, na prática, uma consciência de classe (“classe para si”). Em geral, há mais divergências do que convergências unindo os interesses dos diversos trabalhadores de uma estrutura produtiva global tão heterogênea e desigual.

Como todas as transformações tecnológicas da contemporaneidade reconfiguram o conceito de valor de Marx?

José Eustáquio Diniz Alves – A Revolução 4.0 tende a diversificar ainda mais a estrutura produtiva, rompendo de vez com o rígido arcabouço fordista de uma produção padronizada e de massa. A atual revolução científica e tecnológica difere das três anteriores na profundidade e na velocidade das transformações, com grande impacto no mundo do trabalho. Não se trata mais de lidar com o “gorila domesticado” de Henry Ford [4], ou com a recomposição da linha de montagem do Toyotismo, que busca capturar o pensamento do operário incorporando suas iniciativas afetivo-intelectuais aos objetivos da produção de bens e serviços. Os trabalhos que vão surgir serão necessariamente diferentes dos atuais, não havendo garantias que serão suficientes para compensar os postos que vão desaparecer, e dificilmente as organizações sindicais atuais dos trabalhadores conseguirão se manter na nova configuração produtiva, tanto quanto os chamados “direitos adquiridos”. Haverá uma produção mais maleável, descentralizada e com flexibilização do processo de trabalho, tanto temporal quanto físico, além da tendência à “individuação” (a “pejotização” é apenas um aspecto) e do enfraquecimento do trabalho material, aglomerado e coletivo. A teoria do valor continuará válida sempre, mas a possibilidade de formação de uma “classe em si” será cada vez menos provável, e o surgimento de uma “classe para si” será um fenômeno quase inimaginável.

Dentro da Teoria do Valor, os robôs estão do lado do trabalho ou do capital? Por quê?

Por mais que os robôs possam ser parecidos com os seres humanos, eles entram no processo produtivo do lado do capital e não do trabalho. Isto acontece porque, no regime capitalista, o processo produtivo é composto por dois elementos fundamentais: trabalho e capital, sendo que o primeiro é dividido em duas partes: o trabalho pago (salários) e o trabalho não pago ou mais-valia (trabalho excedente). A lógica dos patrões, para maximizar o lucro capitalista, é aumentar a parte referente ao trabalho não pago (mais-valia) e reduzir a parte do trabalho pago. Como nenhum indivíduo consegue trabalhar 24 horas e 7 dias por semana, existe um limite material à exploração da mais-valia absoluta. Porém, a mais-valia relativa não depende da superexploração física das horas de trabalho e sim da produtividade do trabalho, isto é, do aumento do produto por hora trabalhada. Por conta disto, desde o início da luta entre o capital e o trabalho, o capitalista buscou substituir o trabalhador por máquinas, para criar uma superpopulação relativa (ou exército industrial de reserva) e para aumentar a mais-valia relativa, via aumento da composição orgânica do capital. Os robôs simplesmente exponenciam esta lógica, aumentando a produtividade, desempoderando o trabalhador e aumentando a apropriação capitalista do excedente (mais-valia relativa).

Como os robôs reorganizam a noção de mais-valia à medida que, diferente dos humanos, não necessitam de horas de descanso e tampouco exigem reajustes no pagamento das horas de trabalho?

Não há novidade neste aspecto. Os robôs são máquinas. As máquinas nunca necessitaram descanso e pagamento pelas horas trabalhadas, apenas manutenção e reposição. Elas fazem parte do capital fixo. O que a robótica da Revolução 4.0 traz de novo é o casamento das máquinas com a Inteligência Artificial e a Internet das Coisas. Isto permite não só substituir aquele operário representado por Charles Chaplin [5] em Tempos modernos, mas possibilita também uma enorme reorganização da produção e um exponencial aumento da produtividade.

O desenvolvimento tecnológico, especialmente a automação e robotização industrial, que retira postos de trabalhos humanos não gera um tipo de produção entrópica? Se não há renda do trabalho para os humanos, como haverá consumidores?

A insuficiência de renda e o subconsumo são componentes inerentes da dinâmica capitalista. As crises de superprodução do capitalismo são recorrentes, e as crises de realização sempre acontecem no processo de reprodução ampliada do capital. As crises são momentos de ajuste de contas e de distribuição dos prejuízos. O boom econômico é momento de aumento de salário e distribuição de lucros. As recessões, como etapas do ciclo econômico, são partes do movimento e da disputa entre as forças predatórias (“gafanhotos”) e as forças construtivas (“abelhas”). Ainda não há elementos para dizer com certeza se a Revolução 4.0 vai criar uma crise permanente de subconsumo, pois a geração de emprego e renda depende da propensão marginal a investir e da demanda agregada, vetores que são influenciados pela política macroeconômica, primordialmente, pelos níveis das taxas de juros e de câmbio. Se os instrumentos da política econômica forem bem administrados e não houver ruptura entre poupança e investimento, poderia valer o estabelecido na chamada Lei de Jean-Baptiste Say [6]: “a oferta cria sua própria demanda”.

A 4ª Revolução Industrial não vai acabar necessariamente com os empregos e o ganha-pão dos trabalhadores. O trabalho é a galinha dos ovos de ouro do capitalismo. Atualmente, os três países com maior uso de robôs em relação à força de trabalho manufatureira são Coreia do Sul, Cingapura e Japão, todos três com baixas taxas de desemprego. A China tinha uma população em idade ativa (15-64 anos) de 1 bilhão de pessoas em 2015, que deve cair para 814 milhões em 2050 e para 555 milhões em 2100. Ou seja, a força de trabalho chinesa vai se reduzir quase pela metade ao longo do século XXI, e o uso de robôs não roubará empregos, mas, provavelmente, substituirá os trabalhadores que vão “desaparecer” em função da queda da fecundidade, especialmente depois da implementação da política de filho único. Já o Brasil de 2018, que está completamente atrasado no avanço da Revolução 4.0, tem uma taxa de desemprego aberto em torno de 13% e uma taxa de subutilização da força de trabalho próxima de 25%. O desemprego no Brasil nada tem a ver com tecnologia, e o desenvolvimento tecnológico da Coreia do Sul não tem gerado desemprego em larga escala.

Nesse sentido, a necessidade daquilo que chamaríamos hoje de renda básica universal não seria a próxima etapa para “salvar” o capitalismo, afinal sem consumidores não há onde escoar a produção, cada vez mais intensiva?

A renda básica universal, se bem implementada, pode ser um importante mecanismo de transferência de renda, de compensação das falhas do mercado, de combate à pobreza, de melhoria da distribuição de renda e de fortalecimento da cidadania. Mas achar que a renda básica universal possa salvar o capitalismo é uma ideia romântica. Acreditar na possibilidade de os capitalistas taxarem os futuros onipresentes e oniscientes robôs e distribuírem uma renda básica universal para que a população desocupada tenha recursos para comprar os seus próprios produtos é uma ideia surreal. Ainda mais bizarro é sonhar com a possibilidade de os robôs com inteligência artificial fazerem todo o trabalho de dominação e exploração da natureza e, obedientemente, produzirem bens e serviços capazes de sustentar uma humanidade ociosa que, preguiçosamente, possa viver no conforto, no lazer e no desfrute eterno de um crescente consumo conspícuo e antiecológico.

Quando Thomas Paine [7], em 1795, no livro Agrarian justice, propôs a criação de um fundo de cidadania, que seria financiado pela taxação da renda da terra, para apoiar os idosos e fornecer uma renda aos jovens para que eles pudessem, autonomamente, se estabelecer na economia, não estava pensando em eliminar a força de trabalho e nem visava a subsidiar o consumo. A proposta do fundo de cidadania do grande revolucionário britânico, que foi pessoa-chave na Independência dos Estados Unidos e no desenrolar da Revolução Francesa, está mais próxima das atuais políticas de proteção social na área de previdência e de geração de renda para os jovens e não da atual concepção da renda básica universal.

Não dá para ignorar que os robôs, com ou sem inteligência artificial, estão do lado do capital, na equação da teoria do valor, e são utilizados no processo produtivo para aumentar a mais-valia relativa. Taxar os robôs para financiar uma renda básica universal é o mesmo que taxar o capital para “expropriar os expropriadores” da mais-valia. A taxação é uma luta que ocorre dentro do conflito distributivo inerente à disputa capital-trabalho. Ao longo da história do capitalismo urbano-industrial, os trabalhadores e os cidadãos, especialmente aqueles com poder de voto na democracia liberal-burguesa, conseguiram arrancar alguns recursos da mais-valia, que seriam apropriados pelos capitalistas, para financiar os direitos de cidadania nas áreas de saúde, educação, infraestrutura etc. Isso foi possível na medida em que houve uma sinergia entre os trabalhadores mais saudáveis e mais qualificados e o aumento da produtividade do trabalho, que incrementou os excedentes da produção. Este é o pacto que tem viabilizado a sobrevivência do capitalismo. Todos ganham (uns mais do que os outros) com o avanço da produtividade e da acumulação de capital. Os trabalhadores, os cidadãos e os capitalistas ficam mais ricos. Somente perdem os ecossistemas. A humanidade progride, enquanto o meio ambiente regride, pois a natureza não tem direitos intrínsecos e os direitos humanos são totalmente antropocêntricos. No modelo hegemônico atual, a renda básica universal aumentaria o enriquecimento da humanidade às custas do empobrecimento do meio ambiente.

É possível fazer um paralelo entre a renda básica universal e o comunismo, que, segundo Marx, seria o destino final do capitalismo?

Para Marx, o capitalismo seria destruído pelas suas próprias contradições internas e, via luta de classes, seria substituído pelo socialismo, entendido como uma organização social classista, mas com o proletariado no comando (ditadura do proletariado). Como, em tese, no socialismo teórico, os interesses do proletariado coincidiriam com os interesses da humanidade, o fim da dominação e da exploração de classe levaria a uma convivência social sem a apropriação privada dos meios de produção, livre da “escravidão assalariada” e livre do Estado repressor. Sem os elementos centrais da dominação burguesa, o caminho estaria aberto para o desabrochamento da utopia comunista. Pelos princípios do materialismo histórico, o socialismo, liderado pelo proletariado, seria o sucessor do capitalismo, e o comunismo, o sucessor do socialismo, configurando a etapa mais avançada possível do progresso humano.

O comunismo não seria uma sociedade sem trabalho; ao contrário, todas as pessoas teriam trabalho, mas não o trabalho alienado e gerenciado pelas relações sociais de produção, de dominação e de exploração do capital. Na visão marxista, a força de trabalho do comunismo teria o poder de gerar um sistema cornucopiano, capaz de criar uma abundância fáustica ilimitada, pois o progresso das forças produtivas não encontraria barreiras para se desenvolver e satisfazer todas as demandas da população (“a cada um conforme suas necessidades”). Portanto, no comunismo não haveria necessidade de uma renda básica universal, mesmo porque não haveria mais capital (e nem mais-valia) para ser taxado e redistribuído.

É possível produzir riqueza sem o trabalho humano?

Depende do conceito de riqueza. Em geral, os dicionários definem riqueza como “abundância na posse de bens materiais, tais como dinheiro e propriedades”. Este tipo de riqueza só surge por meio do trabalho humano. É possível obter “valor de uso” sem trabalho humano, mas não “valor de troca”. A riqueza capitalista é fruto do suor do trabalhador, apropriado pelos proprietários dos meios de produção. Além de gerar riqueza, o trabalho faz parte da essência humana, como explica Engels no texto Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem.

Mas há também, desde antes do surgimento do Homo sapiens, uma incomensurável riqueza que é oferecida gratuitamente pela natureza e que não requer interferência das atividades antrópicas. Refiro-me à riqueza que brota da interação espontânea dos ecossistemas. Por exemplo, o ar que respiramos é a riqueza mais essencial para a vida (ninguém sobrevive alguns minutos sem oxigênio) e, no entanto, ele não tem valor de troca, pois o ato de respirar é gratuito e não requer trabalho humano.

Deseja acrescentar algo?

Voltando à pergunta inicial, reafirmo que a filosofia marxista continua atual, especialmente no que diz respeito à crítica ao funcionamento do sistema capitalista e à denúncia das desigualdades sociais da sociedade urbano-industrial. Mas, completando o raciocínio, é preciso lembrar que o marxismo já nasceu desatualizado no que se refere à relação entre a humanidade e a natureza. O modelo marxista, ao dar ênfase ao conflito capital versus trabalho, deixou em segundo plano o conflito entre as demandas do ser humano e os direitos da natureza. Evidentemente, Marx escreveu sobre a degradação do meio ambiente em várias ocasiões. Todavia, secundarizou o conflito ecológico, considerando que, no comunismo, não haveria grandes contradições entre homem-natureza-demais espécies. Marx ignorou contribuições ambientais pioneiras de autores como Alexander Von Humboldt [8] (1769-1859), Henry David Thoreau [9] (1817-1862) e John Stuart Mill[10] (1806-1873), pesquisadores que escreveram obras essenciais, antes mesmo de o jovem Marx publicar o Manifesto Comunista. A história do marxismo relegou a segundo plano a contradição entre o “capital antrópico” (salários + lucros) e o “capital natural”, fato que as tendências mais antenadas do ecossocialismo tentam corrigir, ao reconhecerem que a depleção da natureza está se convertendo cada vez mais em um elemento desestabilizador da acumulação de capital.

Talvez o maior desafio da contemporaneidade seja levantar evidências de que o capitalismo acabe sendo destruído não por suas contradições internas, mas pelo seu sucesso, já que a enorme produção de bens e serviços e a vitória da incessante acumulação de capital gera uma aceleração tão grande das atividades antrópicas que o modelo “extrai-produz-descarta” entra em contradição direta com a realidade física do fluxo metabólico entrópico da natureza. A produção em massa de mercadorias realizada pelo modo de produção capitalista e pelas formações sociais subordinadas ao capitalismo fizeram a humanidade ultrapassar a capacidade de carga do Planeta, sendo que a Pegada Ecológica global está 70% acima da Biocapacidade global. Além disso, segundo o Stockholm Resilience Centre, quatro das nove fronteiras planetárias foram ultrapassadas, sendo que, duas delas, a mudança climática e a integridade da biosfera, são o que os cientistas chamam de limites fundamentais e têm o potencial de levar a civilização ao colapso.

A 4ª Revolução Industrial pode ser a festa de despedida do capitalismo, na medida em que gere uma explosão do consumo que seja ao mesmo tempo uma implosão ecológica e o rastilho de pólvora para o aumento da entropia e para o irreversível desequilíbrio homeostático do planeta. A 6ª extinção em massa da vida na Terra colocaria fim não somente à biodiversidade, mas também encerraria o conflito capital-trabalho, seja no âmbito do capitalismo ou do socialismo. Não daria sequer para voltar à barbárie. Devido à globalização e à universalização da engrenagem insana que move o atual modo de produção e consumo – responsável pela “grande aceleração” do Antropoceno –, um possível colapso do capitalismo não deixaria alternativas ou rotas de fuga, pois significaria, também, um colapso ambiental e civilizacional global.

Notas

[1] Geoff Mulgan (1961): diretor executivo do Fundo Nacional para a Ciência, Tecnologia e Artes (em inglês, National Endowment for Science Technology and the Arts – NESTA), instituição de caridade independente que trabalha para aumentar a capacidade de inovação do Reino Unido. Também é professor visitante da University College London, da London School of Economics e da University of Melbourne. Entre os livros que escreveu, estão Communication and Control: Networks and the New Economies of Communication (1991), Politics in an Anti-Political Age (1994), Connexity (1997), Good and Bad Power: the Ideals and Betrayals of Government (2006), The Art of Public Strategy (2009) e The Locust and the Bee (2013). (Nota da IHU On-Line)

[2] Joseph Schumpeter (1883-1950): economista austríaco, entusiasta da integração da Sociologia como uma forma de entendimento de suas teorias econômicas. Seu pensamento esteve em debate no I Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia, promovido pelo IHU em 2005. (Nota da IHU On-Line)

[3] Friedrich Engels (1820-1895): filósofo alemão que, junto com Karl Marx, fundou o chamado socialismo científico ou comunismo. Ele foi coautor de diversas obras com Marx, entre elas Manifesto Comunista. Grande companheiro intelectual de Karl Marx, escreveu livros de profunda análise social. (Nota da IHU On-Line)

[4] Henry Ford (1863-1947): empreendedor estadunidense, fundador da Ford Motor Company e o primeiro empresário a aplicar a montagem em série, de forma a produzir em massa automóveis em menos tempo e a um menor custo. A introdução de seu modelo Ford T revolucionou os transportes e a indústria norte-americanos. Ford foi um inventor prolífico e registrou 161 patentes nos Estados Unidos. Como único dono da Ford Company, se tornou um dos homens mais ricos e conhecidos do mundo. A ele é atribuído o “fordismo”, isto é, a produção em grande quantidade de automóveis a baixo custo por meio da utilização do artifício conhecido como “linha de montagem”, o qual tinha condições de fabricar um carro a cada 98 minutos, além dos altos salários oferecidos a seus operários – notavelmente o valor de 5 dólares por dia, adotado em 1914. (Nota da IHU On-Line)

[5] Charles Chaplin (1889-1977): ator, diretor, produtor, humorista, empresário, escritor, comediante, dançarino, roteirista e músico britânico. Um dos principais atores da era do cinema mudo, notabilizado pelo uso de mímica e da comédia pastelão. Bastante conhecido pelos seus filmes O Imigrante, O Garoto, Em Busca do Ouro, O Circo, Luzes da Cidade, Tempos Modernos, O Grande Ditador, Luzes da Ribalta, Um Rei em Nova York e A Condessa de Hong Kong. Considerado por alguns críticos o maior artista cinematográfico de todos os tempos e um dos pais do cinema, junto com os Irmãos Lumière, Georges Méliès e D.W. Griffit. Sua carreira no ramo do entretenimento durou mais de 75 anos, desde suas primeiras atuações quando ainda era criança nos teatros do Reino Unido, durante a Era Vitoriana, quase até sua morte aos 88 anos de idade. (Nota da IHU On-Line)

[6] Jean-Baptiste Say (1767-1832): economista francês que formulou uma lei econômica, a Lei de Say, que se manteve como princípio fundamental da economia ortodoxa até a grande depressão de 1930. (Nota da IHU On-Line)

[7] Thomas Paine (1737-1809): político britânico, além de panfletário, revolucionário, inventor, intelectual e um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos da América. Viveu na Inglaterra até os 37 anos, quando imigrou para as colônias britânicas na América, em tempo de participar da Revolução Americana. Suas principais contribuições foram os amplamente lidos Common Sense (1776), advogando a independência colonial americana do Reino da Grã-Bretanha, e The American Crisis (1776-1783), uma série de panfletos revolucionários. Paine também influenciou bastante a Revolução Francesa. Escreveu Rights of Man (1791), um guia das ideias iluministas. Mesmo não falando francês, foi eleito para a Convenção Nacional Francesa em 1792. Em dezembro de 1793, foi aprisionado em Paris, sendo solto em 1794. Tornou-se notório por The Age of Reason (1793-94). Na França, também escreveu o panfleto Agrarian Justice (1797), discutindo as origens da propriedade, e introduziu o conceito de renda mínima. Ele também defendeu a posse de arma por parte dos cidadãos. Paine permaneceu na França durante o início da Era Napoleônica, mas condenava a ditadura de Napoleão, chamando-o de “o mais completo charlatão que já existiu”. A convite do presidente Thomas Jefferson, em 1802 retornou aos Estados Unidos. Foi enterrado onde hoje é chamado Thomas Paine Cottage, em New Rochelle, NY, onde viveu depois de retornar aos EUA. Seus restos mortais foram desenterrados por um admirador, William Cobbett, que procurava retorná-los para o Reino Unido e dar a ele um novo enterro solene em sua terra natal. Os ossos, entretanto, foram perdidos e sua localização atual é desconhecida. (Nota da IHU On-Line)

[8] Alexander von Humboldt [Friedrich Heinrich Alexander, Barão de Humboldt] (1769-1859): naturalista e explorador alemão. Atuou também como etnógrafo, antropólogo, físico, geógrafo, geólogo, mineralogista, botânico, vulcanólogo e humanista, tendo lançado as bases de ciências como Geografia, Geologia, Climatologia e Oceanografia. (Nota da IHU On-Line)

[9] Henry David Thoreau (1817-1862): autor norte-americano, poeta, naturalista, ativista anti-impostos, crítico da ideia de desenvolvimento, pesquisador, historiador, filósofo e transcendentalista. Ele é mais conhecido por seu livro Walden, uma reflexão sobre a vida simples cercada pela natureza, e por seu ensaio Desobediência Civil, uma defesa da desobediência civil individual como forma de oposição legítima frente a um estado injusto. A edição número 509 da IHU On-Line tem a obra do filósofo como tema de capa. (Nota da IHU On-Line)

[10] John Stuart Mill (1806-1873): filósofo e economista inglês. Um dos pensadores liberais mais influentes do século XIX, defensor do utilitarismo. (Nota da IHU On-Line)


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Ricardo Machado

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