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Os primeiros meses do governo Bolsonaro na educação: apropriação do público pelo privado

Assistimos a ataques às universidades e aos institutos federais por parte do Ministério da Educação (MEC) e do presidente desde o início do mandato em janeiro
Penildon Silva Filho
Fundação Perseu Abramo
São Paulo (SP)

Tradução:

Os primeiros meses da gestão Bolsonaro podem ser caracterizados como o aprofundamento do processo iniciado no governo de Michel Temer de apropriação do campo da educação pública pelos interesses de fundações e empresas privadas nas diversas instâncias. Isso pode ser depreendido das ações de governo e do tratamento dispensado à educação básica e superior.

Assistimos a ataques às universidades e aos institutos federais por parte do Ministério da Educação (MEC) e do presidente desde o início do mandato em janeiro. São ataques de natureza retórica e de natureza orçamentária, que apontam para o fechamento dessas instituições por falta de condições de funcionamento ainda no ano de 2019. Os argumentos governamentais para os cortes nos orçamentos, que na verdade são bloqueios que tendem a se manter pelo ano todo, foram sendo desmontados a partir da intervenção de dezenas de reitores por meio da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).

Até mesmo veículos de comunicação profundamente identificados com a pauta bolsonarista, conservadora e privatista, publicaram e veicularam que os primeiros ataques contra a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA) eram de caráter persecutório e ideológico, infringindo claramente regras básicas da administração pública, que deveria primar pela impessoalidade, pela transparência e pelo espírito republicano. Publicaram também que as informações de que essas instituições eram pouco produtivas ou “espaços de balbúrdia” eram claramente falsas, pelo fato destas figurarem entre as vinte mais ativas na publicação científica brasileira e por estarem continuamente melhorando suas colocações em rankings do próprio MEC.

Assistimos a ataques às universidades e aos institutos federais por parte do Ministério da Educação (MEC) e do presidente desde o início do mandato em janeiro

Foto: Jonas Santos/Mídia Ninja
A educação pública brasileira é responsável por mais de 80% das matrículas na educação básica

Em seguida o bloqueio foi estendido a todas as instituições federais, ao mesmo tempo em que o atual presidente afirmava que as instituições públicas não produziam pesquisa, e sim as particulares, e que o orçamento havia sido aprovado em ano anterior ao seu mandato. Argumentos corrigidos posteriormente por entidades científicas sérias como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Associação Brasileira de Ciência, a própria Andifes e várias outras associações setoriais.

Por fim, o que restou do discurso antiacadêmico e anti-intelectual da gestão Bolsonaro, sempre desmentido pelos dados do próprio governo federal, que indicam que as instituições públicas são as únicas produtivas e estão melhorando todos os anos no âmbito internacional, foi a versão de que se investiria mais na educação básica em vez de investir na Universidade.

Percebe-se que essa parte do discurso, de que se investiria mais na educação básica, também não procede, pois foram bloqueados pelo MEC até 17 de maio, R$ 5,7 bilhões, o que representa cerca de 23% de seu orçamento discricionário (não obrigatório), cortando verbas direcionadas a todas as etapas da educação, mas desse total apenas R$ 2,1 bilhões foram bloqueios das universidades. A destruição chegou fortemente à educação básica também, contradizendo o discurso usado de defesa da educação “para os mais pobres”, numa tentativa de estabelecer uma contraposição irreal entre a educação superior e a básica, como se fosse o ensino para os ricos contra o ensino para os pobres.

Além da diminuição forte e sistemática de recursos da educação básica, temos pela frente um desastre maior ainda para esse nível de ensino, trata-se da descontinuidade do Fundo Nacional de Manutenção da Educação Básica e Valorização do Magistério (Fundeb). A extinção do Fundeb significará a destruição da educação na maior parte do país, especialmente nas regiões Nordeste e Norte, além de Minas Gerais, que também precisa desse fundo de suplementação de recursos federais. O fim do Fundeb está dentro da lógica que se estabeleceu no momento pós-golpe institucional de 2016 (que destituiu a presidente Dilma), que é a lógica para retirar direitos e destruir a Constituição de 1988.

No período dos governos Lula e Dilma identificamos a ampliação de direitos e das responsabilidades do Estado, com mais investimentos. A disputa no âmbito das políticas públicas pela ampliação de direitos e na conformação de uma nova institucionalidade educacional começa em 2003 com as conferências da educação e culmina com a promulgação do Plano Nacional de Educação (PNE) em julho de 2014.

Entretanto, no período pós-ruptura institucional de abril de 2016, presenciamos o desmonte rápido e acentuado das políticas públicas e dos direitos sociais básicos conquistados na Constituição de 1988, com a hegemonia do setor financeiro e dos interesses do capital estrangeiro no país.

A apropriação dos recursos da educação pelos atores privados

Para entender o projeto para a educação do atual bloco de poder no governo deve-se levar em conta as fundações, institutos, empresas e ONGs que têm se articulado nos últimos anos com o campo da política conservadora com três objetivos: 1) de intervir politicamente no cenário nacional e disputar o poder; 2) lucrar com venda de produtos e serviços, terceirização do sistema de ensino e de “pacotes educacionais”; 3) intervir no currículo e na organização escolar para disputar a hegemonia, especialmente a cultural, na formação das gerações mais jovens.

A educação pública brasileira é responsável por mais de 80% das matrículas na educação básica, pelo maior programa de livro didático do mundo, pelo segundo maior programa de alimentação pública do mundo, pelo maior “banco de investimentos” na educação, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). A educação pública atende 45 milhões de crianças e jovens, responde por pelo menos 25% do orçamento de estados e municípios e 18% do orçamento da União.

Assim como a reforma da Previdência visa ampliar a presença do capital das empresas de capitalização no mercado previdenciário por meio da destruição da Previdência pública e dos direitos da população mais pobre, essa lógica se repete em outros setores. O governo insiste no discurso de que o Sistema Único de Saúde (SUS) é insustentável e caberia ao Estado subsidiar um plano de saúde privado “popular”, na Educação não é diferente. Na Educação, o principal é a entrada dos grandes conglomerados empresariais nesse campo. São muitas as áreas para ocupar: no mercado de livros, de sistemas de ensino padronizados e plataformas digitais de aprendizagem, de venda de produtos de tecnologia e informação, na alimentação escolar e na própria gestão das escolas com empresas ou organizações sociais, a exemplo do que já se faz em alguns estados brasileiros, como Goiás e São Paulo, sem desconsiderar a proposta principal do atual governo, que é a instituição de “vouchers” para os alunos destinarem a instituições privadas.

O outro objetivo do bloco hegemônico hoje no poder é influenciar sobre o que se ensina, como se ensina, de que forma se ensina, com interesses e objetivos próprios, mudando o currículo, os formatos educativos e os princípios pedagógicos da educação nacional. Inequivocamente, desde a Constituição de 1988 a educação caminhou para um processo de emancipação humana no seu conteúdo pedagógico, com uma proposta de educação democrática, ampla, universal, sem distinção de classe social, priorizando a universalização do acesso, a qualidade na aprendizagem e uma visão de formação não somente para adestramento de mão de obra e reprodução das classes sociais existentes, mas que formasse para os estudos superiores na universidade, para a cidadania e a participação política, para a cultura e as artes. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, as diretrizes curriculares aprovadas no Conselho Nacional de Educação (CNE) a partir dos anos 2000 e mais recentemente o Plano Nacional de Educação de 2014 indicam esse caminho.

Contrariamente a essa trajetória de construção de uma educação democrática, houve o esforço de empresas educacionais para intervir no conteúdo, no currículo e na metodologia da educação com a reforma do ensino médio do governo Temer, hoje defendida pelo governo Bolsonaro. Ela abre caminho para uma volta à dualidade dos sistemas educacionais no Brasil, separando a escola dos ricos e da classe dominante da outra escola destinada aos trabalhadores, mais rebaixada, “apenas profissionalizante”, que não prepara para os postos de direção, para a Universidade e para os espaços de poder na sociedade.

Para entender o crescimento e influência dos conglomerados educacionais, precisamos salientar que hoje apenas dez grupos de educação movimentam as aquisições do setor no Brasil. Em notícias do jornalismo econômico, isso fica bem claro: “O grupo Actis, empresa britânica de private equity voltada, unicamente, a países da Ásia, da África e da América Latina, passou a notar o Brasil em 2009, quando instalou um escritório em São Paulo. Em meados de 2012, adquiriu participação minoritária, porém relevante, do Cruzeiro do Sul Educacional, com investimento de R$ 180 milhões no grupo. Na época, a britânica já havia aplicado 520 milhões no setor, através de outras transações”. Ainda sobre o grupo Advent-Kroton, “em junho de 2009 a empresa global de private equityAdvent International anunciou compra de parte da mineira Kroton Educacional – proprietária da rede de ensino Pitágoras. O investimento foi em torno de R$ 280 milhões (Fonte: Exame, “10 grupos de educação que movimentam as aquisições do setor”, 13/9/2016, https://exame.abril.com.br/negocios/10-grupos-de-educacao-que-movimentam-as-aquisicoes-do-setor/).

Os grupos passaram por processos de fusões e aquisições e se estendem agora para além do setor de ensino, para editoras e produtoras de conteúdo, geralmente com sede fora do país e processos decisórios que afetam a formação da maior parte de nossos alunos da educação superior a partir de interesses externos. Assim, os grupos que se fortaleceram com o crescimento e os subsídios ao setor privado do ensino superior se associaram às editoras e empresas de tecnologia e adentraram a educação básica com os sistemas de ensino.

Ao lado da expansão econômica, essas empresas e instituições a elas ligadas têm atuação política na eleição de candidatos e contam com uma bancada eleita no Congresso de deputados e senadores. Trata-se de uma força política que intervém em processos políticos, desestabilizando governos e elegendo seus candidatos a presidente, governador ou prefeito. Se observarmos o protagonismo de vários atores no golpe de 2016 e na eleição de Bolsonaro de 2018, verificaremos a presença e as relações desses com institutos e fundações ligados ao mundo empresarial da educação, a exemplo da Fundação Leman.

Então, o desejo de intervir na política e de viabilizar lucros na educação não vem sozinho, há um conteúdo ideológico nos materiais vendidos ou nas reformas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Como sabemos, a educação nunca é neutra, e ela sempre representa os interesses de determinado grupo social hegemônico ou contra-hegemônico. Ela está no centro dessa disputa política, ideológica e cultural no Brasil hoje, e se constitui também em campo para expansão do acúmulo de capital, com diversos interesses confluindo para o desmonte de um modelo construído desde a Constituição de 1988 por vários governos e que agora pode ser substituído por um conglomerado de negócios.

Penildon Silva Filho é professor da UFBA e doutor em Educação (e-mail:silvafilhopenildon@yahoo.com.br)


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Penildon Silva Filho

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