Quantos desafios nos coloca o momento que estamos vivendo! Quantas certezas se desmancham como pó! Quantas mentiras que a mídia e os mais poderosos pretenderam passar por verdades ficaram a nú! Muito disso seria motivo de comemoração, não fosse o seu custo uma inimaginável tragédia humanitária.
Vou tentar não repetir o que já muitos disseram ou escreveram. Mas é óbvio que uma pandemia das proporções da que está a nos atingir neste início de 2020 nos obriga a repensar muitas questões que mesmo não sendo novas, a partir de agora passam a ter outra relevância. Trata-se de desafios teóricos e de desafios práticos. Dos desafios teóricos (com possíveis consequências práticas, se levados a sério) um dos que primeiro me ocorre é uma pergunta tão antiga quanto a própria civilização mas que hoje nos interpela com toda dramaticidade: o que vem primeiro, a sociedade ou o indivíduo?
Parece uma questão alheia à hercúlea tarefa de derrotar o nosso inimigo invisível. Mas não é. Da resposta virão posturas muito diferentes na estratégia e no comportamento para enfrentar o contágio e minimizar o estrago en vidas humanas.
Na China, por exemplo, a filosofia que orienta não só o governo, mas, principalmente, o próprio conjunto de cidadãos ficou demonstrada ao longo do processo de combate ao Covid-19: os interesses coletivos se antepõem a qualquer interesse individual. Um exemplo representativo da forma como são assumidos os direitos e deveres decorrentes da vida em sociedade foi a resposta em Wuhan, epicentro da pandemia, a um chamado de voluntários. A tarefa? Medir a temperatura dos vizinhos nos bairros mais afetados pela doença, um controle necessário para minimizar o avanço da infecção, e comprar alimentos para todos os moradores em quarentena. Dez mil voluntários apresentaram-se e, em menos de dez horas, comitês comunitários foram criados para atender os necessitados.
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Da resposta virão posturas muito diferentes na estratégia e no comportamento para enfrentar o contágio e minimizar o estrago en vidas humana
Outro desafio, relacionado ao anterior (o que vem primeiro, a sociedade ou o indivíduo) também antigo mas de renovada atualidade é a questão: o que é mais importante numa sociedade, a liberdade ou a igualdade? O debate em torno deste tema inflamou os círculos políticos durante décadas no século passado, no marco da luta ideológica entre capitalismo e socialismo/comunismo. A argumentação em favor da liberdade, tal como era entendida nesse contexto – lembremos que o conceito de liberdade foi mudando ao longo da história – basicamente era a defesa do sistema capitalista, da livre iniciativa, e do mercado. O argumento central desta corrente girava em torno da crítica ao Estado no modelo soviético, no qual os ‘’direitos individuais’’ estavam submetidos à lógica coletiva. Em contrapartida, os que entendiam que a igualdade é o elemento mais importante para a vida em sociedade apontavam a falácia da liberdade no sistema capitalista. Para eles, por deixar a condução da economia nas “mãos invisíveis do mercado”, o capitalismo só oferece para maior parte da sociedade uma liberdade ilusória por limitada, uma liberdade que, numa metáfora bem-humorada, se reduz à possibilidade de escolha entre Coca-Cola e Pepsi-Cola…
E hoje, esses debates são relevantes?
Bem, se os leitores estão acompanhando a cobertura da pandemia do Coronavírus nos meios de comunicação, no Brasil e no mundo, poderão coincidir comigo que esses temas permeiam todas as conversas mas aparecem só indiretamente nas mesas redondas ou ocupam poucos segundos das matérias ao vivo, quando a palavra é dada a algum popular mais consciente, nas reportagens de rua. Porém, essas questões não ficam explícitas.
Por quê? Porque colocam “o dedo na ferida”: se for aberto o debate, obrigariam a admitir que as nossas sociedades, em particular no mundo ocidental, quando submetidas à versão neoliberal do capitalismo, são disfuncionais. Se isso for admitido, o passo seguinte deveria ser a discussão das mudanças necessárias no modelo que nos oprime como sociedade e nos condena como espécie, pelo dano irreparável que está provocando no nosso lar comum, o planeta Terra.
Teríamos que enfrentar o debate sobre os absurdos de um sistema que não permite que quebrem os bancos, mas sim admite que sejam jogadas fora as vidas de milhões de seres humanos, condenados à miséria, à fome, aos quais sequer lhes é dada a mínima oportunidade de fazer parte, verdadeiramente, da sociedade. Teríamos que colocar de cabeça para abaixo as prioridades de investimento, do uso dos recursos naturais, proibindo as práticas predatórias do meio ambiente, repensar o trabalho humano para que volte a ser não uma forma de exploração e de discriminação, mas a chave para a nossa realização como seres racionais… E, finalmente, seria imperativo julgar e condenar os responsáveis por esses desatinos (ou devemos, sem eufemismos, chamá-los crimes?).
Então, como estes temas não podem fazer parte da pauta de debates, nos meios de comunicação globais se discutem questões relativas à pandemia tocando só superficialmente os problemas de fundo.
Hoje os grandes banqueiros, os CEO das holdings, os membros do 1% que explora o 99% da Humanidade e, entre eles a mídia oligopólica (cujo principal papel não é informar e sim a defesa dos interesses da classe dominante, tornando-se um dos principais alicerces dos governos neoliberais, salvo exceções), estão com uma “batata quente” nas maõs, como se diz popularmente. Um minúsculo vírus conseguiu a proeza de mostrar que todas as certezas que alicerçavam os seus discursos não passavam de um castelo de cartas de baralho. Mas não podemos esperar deles um ato de arrependimento ou de “mea-culpa”.
Porém, com o sem mídia a incentivar esse debate, cada um de nós pode, neste momento, repensar o seu papel neste mundo. Aliás, a quarentena, o isolamento social, favorecem reflexões que não faríamos em outros momentos. Se antes refletir sobre o sentido mais profundo da nossa existência não era uma questão presente nas nossas aflições, hoje pode passar a ser. O rigor das medidas que demanda a pandemia quase que naturalmente exige assumirmos que os interesses coletivos se antepõem aos interesses individuais. De alguma forma, a resposta à pandemia nos faz constatar que não somos indivíduos isolados; fazemos parte de um conjunto cujo destino, fatalmente, está entrelaçado. E essa constatação leva-nos a agir em consequência!
As demonstrações espontâneas de solidariedade em diversas partes do mundo, insistentemente reproduzidas nas redes sociais, assim como a doação generosa de milhões de médicos, enfermeiros, técnicos de saúde, pessoal de limpeza – que continuam ao lado dos pacientes contaminados nos hospitais, mesmo ao elevado preço de suas próprias vidas -, tudo isso demonstra que cada um de nós pode fazer a diferença. Revela, ainda, o poder transformador que existe em cada um de nós e o quanto é poderosa a ação coletiva. E também demonstra – sem ignorar a ajuda significativa fornecida pelas novas tecnologias – que foram e continuam a ser homens e mulheres, oriundos de diferentes segmentos da sociedade, os responsáveis pelo combate e, em última instância, pela reversão da pandemia.
Sem uma sociedade organizada nós, indivíduos, não podemos sobreviver. E sem uma sociedade em que a igualdade seja um valor a ser procurado, também não! Na hora da crise, como ficou demonstrado dramaticamente nestes dias, todos dependemos de todos, e ninguém está a salvo se não conta com a ajuda do próximo.
O Coronavirus parece estar destinado a nos “infetar” não só literalmente, mas também metaforicamente, e neste caso, de modo positivo. Nos obriga a nos descobrir como membros de uma mesma espécie, todos ameaçados, e como habitantes do mesmo lar, nosso belo planeta azul, que não tem fronteiras e também está ameaçado, neste caso, pela ação predatória da nossa própria espécie…
A pandemia também demonstra que na falta de orientação e liderança de cima (pois poucas autoridades aqui, no Brasil, e mundo afora, demonstraram estar à altura do desafio), as iniciativas vindas da sociedade, produto da auto-organização, se multiplicam. Os vizinhos arregaçam as mangas e vão à procura de paliativos ou mesmo de soluções improvisadas. Cada um, dentro de seus limites e suas possibilidades, começa a pensar na melhor forma de se doar, de servir. (O que não significa desconhecer a existência de casos perversos de exploração do sofrimento alheio no meio da crise).
Se pensarmos neste aprendizado como um embrião de algo novo, as possibilidades de uma mudança de comportamento futuro são encorajadoras. Demonstram que as nossas sociedades têm o potencial da resposta aos desatinos dos que governam e dos que exercem, de fato, o poder detrás deles. E a experiência também revela que quando existe sintonia, confiança, entre o governo e a sociedade, a eficácia da acão governamental aumenta. Nesse caso, a população assume para si, livremente, sem coerção, a responsabilidade de implementar as medidas a serem adotadas e a fiscalização da sua execução.
E com estas reflexões retomamos o tema daquelas dicotomias – sociedade/indivíduo e liberdade/igualdade. Aparentemente seriam excludentes, mas vemos que não é assim. A crise nos obrigó a enxergar um aspecto importante da nossa existência: cada um de nós, cada indivíduo, com suas características pessoais, só consegue desenvolver as suas potencialidades – e, num momento de crise, como este, só consegue sobreviver – por fazer parte de uma sociedade.
De outro lado, seres racionais que somos, necessitamos viver em liberdade; mas a experiência histórica demonstra que a liberdade verdadeira só pode ser atingida numa sociedade que procure permanentemente a igualdade. O sentido mais profundo de uma só se atinge com a realização da outra.
Estas reflexões são importantes neste momento não pelas consequências a curto prazo, mas pelos efeitos que poderão ter no futuro.
É necessário compreender que essas experiências de auto-organização, de solidariedade horizontal e espontânea, essa força social que emerge na adversidade, não podem se desmanchar com a vitória sobre o vírus. Ao contrário, o “dia seguinte” não será fácil. Muito teremos perdido, em termos humanos e materiais, depois da crise. Por isso mesmo, teremos que continuar unidos, organizados, pro-positivos, buscando novos caminhos para assegurar um futuro diferente para nossas sociedades e para a relação dos seres humanos com o seu habitat.
Já tem se afirmado, corretamente, que nesse amanhã nada será como antes. É verdade. Mas temos que assegurar que as lições da pandemia façam surgir uma sociedade humana melhor que a atual – mais justa, mais solidária, que cultive valores mais altruístas e disposta a uma radical mudança na relação com o nosso lar natural, com o nosso planeta Terra.
Beatriz Bissio é professora universitária e do Conselho Editorial da Diálogos do Sul
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