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Ao sul da quarentena: injustiça, discriminação, exclusão social e o sofrimento dos vulneráveis

A pandemia tornou evidente a necessidade de adotar alternativas ao modo de viver, de produzir, de consumir e de conviver nestes primeiros anos do século XXI
Boaventura de Souza Santos
ALAI / Agência Latino America de Informação
Coimbra

Tradução:

A quarentena não só torna mais visíveis, como reforça, a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento injusto que elas provocam. Acontece que tais assimetrias se tornam mais invisíveis em face do pânico que se apodera dos que não estão habituados a ele.

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São muitos os grupos para os quais a quarentena é particularmente difícil. Têm em comum ter uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela. No seu conjunto, estes colectivos sociais constituem a maioria da população mundial.

Seleciono uns poucos.

A pandemia tornou evidente a necessidade de adotar alternativas ao modo de viver, de produzir, de consumir e de conviver nestes primeiros anos do século XXI

Wikimedia Commons / Releitura: Pimentel Neto
Vergonha?

As mulheres

A quarentena será particularmente difícil para as mulheres e, nalguns casos, pode mesmo ser perigosa. As mulheres são consideradas “as cuidadoras do mundo”, dominam na prestação de cuidados dentro e fora das famílias. Dominam em profissões, como enfermagem ou assistência social, que estarão na linha da frente da prestação de cuidados a doentes e idosos dentro e fora das instituições. Não se podem defender em quarentena para garantir a quarentena de outros.

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São elas também que continuam a ter a seu cargo, exclusiva ou maioritariamente, o cuidado das famílias. Postas em quarentena, poderia imaginar-se que havendo mais braços em casa as tarefas poderiam ser mais distribuídas. Suspeito que assim não será, em face do machismo que impera e quiçá se reforça em momentos de crise e de confinamento familiar. O aumento do número de divórcios em algumas cidades chinesas durante a quarentena pode ser um indicador do que acabo de dizer. Por outro lado, é sabido que a violência contra as mulheres tende a aumentar em tempos de guerra e de crise – e tem vindo a aumentar agora. O confinamento das famílias em espaços exíguos e sem saída pode oferecer mais oportunidades para o exercício da violência contra as mulheres. O jornal francês Le Figaro noticiava em 26 de Março, que as violências conjugais tinham aumentado 36% na semana anterior em Paris.

Os trabalhadores precários, informais e autônomos

Depois de quarenta anos de ataque aos direitos dos trabalhadores em todo o mundo por parte das políticas neoliberais, este grupo de trabalhadores é globalmente dominante, ainda que sejam muito significativas as diferenças de país para país. O que significará a quarentena para estes trabalhadores, que tendem a ser os mais rapidamente despedidos sempre que há uma crise econômica?

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No dia 23 de Março, a Índia declarou a quarentena por três semanas, envolvendo 1,3 mil milhões de habitantes. Considerando que na Índia, entre 65% e 70% dos trabalhadores pertencem à economia informal, calcula-se que 300 milhões de indianos ficaram sem rendimentos.

Na América Latina, cerca de 50% dos trabalhadores trabalham no setor informal. Em África, por exemplo, no caso do Quênia ou Moçambique a maioria dos trabalhadores é informal. As recomendações da OMS parecem ter sido elaboradas pensando numa classe média que é uma pequeníssima fracção da população mundial.

O que significa a quarentena para trabalhadores que ganham dia-a-dia para viver dia-a-dia? Arriscarão desobedecer à quarentena para dar de comer à sua família? Morrer de vírus ou morrer de fome, eis a opção.

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Noutros contextos, os uberizados da economia informal entregam comida e encomendas a domicílio. São eles que garantem a quarentena de muitos, mas para isso não podem proteger contra ela. O seu “negócio” vai aumentar tanto quanto o risco.

Os moradores nas periferias pobres das cidades, favelas, palafitas

1.6 mil milhões de pessoas não têm habitação adequada e 25% da população mundial vive em bairros informais sem infraestruturas nem saneamento básico, sem acesso a serviços públicos, com escassez de água e de eletricidade. Vivem em espaços exíguos onde se aglomeram famílias numerosas.

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Dadas as condições de habitação, poderão cumprir as regras de prevenção recomendadas pela OMS? Poderão manter a distância interpessoal nos espaços exíguos de habitação onde a privacidade é quase impossível? Poderão lavar as mãos com frequência quando a pouca água disponível tem de ser poupada para beber e cozinhar?

Muitos destes bairros são hoje fortemente policiados e por vezes sitiados por forças militares sob o pretexto de combate ao crime. Não será esta afinal a quarentena mais dura para estas populações?

Os jovens das favelas do Rio de Janeiro, que sempre foram impedidos pela polícia ou pelos transportes de ir ao domingo à praia de Copacabana para não perturbar os turistas, não sentirão que já viviam em quarentena? Qual a diferença entre a nova quarentena e aquela que foi sempre o seu modo de vida?

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Em Mathare, um dos bairros periféricos de Nairóbi, Quênia, 68.941 pessoas vivem num quilómetro quadrado. Tal como em muitos contextos similares no mundo, as famílias partilham uma sala que também é cozinha, quarto e sala de estar. Como é que se lhes pode pedir auto-isolamento?

Para os moradores das periferias pobres do mundo a atual emergência sanitária vem juntar-se a muitas outras emergências. Segundo nos informa a Garganta Poderosa, um dos mais notáveis movimentos sociais de bairros populares da América Latina, os moradores enfrentam várias outras emergências.

É o caso da emergência sanitária decorrente de outras epidemias ainda não debeladas e da falta de atenção médica. Neste ano foram já registados 1833 casos de dengue em Buenos Aires. Só na Villa 21, um dos bairros pobres de Buenos Aires, registaram-se 214 casos. “Por coincidência”, na Villa 21 70% da população não tem água potável.

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É o caso também da emergência alimentar: os modos comunitários de superar a fome que grassa nos bairros (cantinas populares, merendas) colapsam ante o aumento dramático da procura. Se as escolas fecham, acaba a merenda escolar que garantia a sobrevivência das crianças.

É finalmente o caso da emergência da violência doméstica, particularmente grave nos bairros, e da permanente emergência da violência policial e da estigmatização que ela traz consigo.

Os idosos

Este grupo, particularmente numeroso no norte global, é, em geral, um dos grupos mais vulneráveis, mas a vulnerabilidade não é indiscriminada. Aliás, a pandemia obriga-nos a uma maior precisão sobre os conceitos que usamos. Afinal, quem é idoso? Ainda segundo a Garganta Poderosa, a diferença de esperança de vida entre dois bairros de Buenos Aires (o bairro pobre de Zavaleta e o bairro nobre de Recoleta) é de cerca de vinte anos. Não surpreende que os líderes das comunidades sejam considerados de “idade madura” pela comunidade e “jovens líderes” pela sociedade em geral.  

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As condições de vida prevalecentes no norte global levaram a que boa parte deles fosse viver em lares, casas de repouso, asilos. Em tempos normais, os idosos passaram a viver nestes alojamentos como espaços que garantiam a sua segurança. Em princípio, a quarentena causada pela pandemia não deveria afetar grandemente a sua vida, dado viverem já em permanente quarentena. O que sucederá quando, devido à propagação do vírus, esta zona de segurança se transforma em zona de alto risco, como está a acontecer em Portugal e Espanha?

Estariam mais seguros se pudessem voltar às casas onde viveram toda a vida, no caso improvável de elas ainda existirem? Os familiares que, por exclusiva conveniência própria, os alojaram em lares, não sentirão remorsos por sujeitar os seus idosos a um risco que lhes pode ser fatal? E os idosos que vivem isolados não correrão agora um risco maior de morrer sem que ninguém dê conta?

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Há ainda a acrescentar que, sobretudo no sul global, epidemias anteriores levaram a que os idosos tivessem que prolongar a sua vida ativa. Por exemplo, a epidemia do SIDA matou e continua a matar pais jovens, ficando os avós com a responsabilidade do agregado familiar. Se os avós morrerem, as crianças correm um risco muito alto de fome, desnutrição e morte.

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À luz das experiências destes grupos sociais torna-se particularmente evidente a necessidade de imaginar e adotar alternativas ao modo de viver, de produzir, de consumir e de conviver nestes primeiros anos do século XXI.

Boaventura de Sousa Santos é Diretor Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Boaventura de Souza Santos

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