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ToggleA Medida Provisória (MP) 966, publicada em 13 de maio de 2020, é mais um capítulo que deslumbra as intenções de afronta deste governo à democracia ao dar nova interpretação sobre como responsabilizar a ação e omissão em atos dos agentes públicos relacionados à covid-19.
Em tempos de pandemia, a edição deste tipo de instrumento com força de lei pelo presidente da República deveria ser limitada, já que a medida possui efeitos imediatos de eficácia, pois imprime diretrizes incompatíveis com a realidade normativa e sem o amplo debate com a sociedade civil.
O uso deste recurso é indevido quando analisado sob dois aspectos: o primeiro, pela via utilizada, que não é condizente com a iniciativa do presidente da República e, em segundo lugar, pela adoção genérica de conceitos amplos que visam encobrir fatos delituosos, cuja tendência deve ser agravada pela escassez de recursos já mencionada pelas autoridades.
A utilização deste instrumento desloca a competência originária do Parlamento ao chefe do executivo de acordo com a norma constitucional, aplicado em situações em que devem ser observados os requisitos concomitantes de relevância e urgência, o que não nos parece estar presente neste caso, bem como em outras MPs editadas neste período de pandemia, que tratam de questões complexas e que necessitam de debate amplo com a sociedade, mas que de forma totalitária são postas em vigência.
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A intenção do governo alcança patamares que arranham a democracia
A recepção desvirtuada da medida provisória
Originário do direito italiano, o instituto foi tropicalizado quando, no Brasil, com vistas a atender interesses do sistema político-partidário e, por isso, apresenta regras diferentes como a desvinculação da aprovação da medida provisória à sobrevida do governo. Na Itália, se o parlamento a rejeita, o conselho de ministros cai, pois se entende que o dispositivo fora utilizado de maneira inconveniente, o que não ocorre com a mesma envergadura no Brasil.
A intenção do governo alcança patamares que arranham a democracia pelo desrespeito a utilização errônea do processo de elaboração das leis e a afronta vertical as regras já existentes, pois esta MP inova ao criar interpretações inconcebíveis ao envolver a responsabilização de agentes públicos durante a pandemia da covid-19, que está contido em processo sistêmico de quebra de direitos e garantias, sendo este apenas mais um capítulo dentro da concertação herdada do governo de Michel Temer.
Nesta seara, portanto, dessume-se o anseio do presidente da República em polarizar o discurso ao conclamar pelo retorno imediato das atividades econômicas, ciente de que este ato concorre com o aumento exponencial de infectados e mortos e, a conversão da MP em lei sem alterações potencializa este quadro, mas vem ao encontro de interesses industriais que menosprezam a vida humana o que se constatou em reuniões recentes com os chefes do Executivo e do Judiciário.
Sem foco, presidente busca criar novos atritos
A interpretação de hipóteses de responsabilização por agentes públicos encontra-se disciplinado, não restando dúvida da manobra em desviar a atenção da opinião pública que se encontra atônita com as dificuldades em digerir o sofrimento de milhares de pessoas sem acesso a recursos de saúde, enquanto os dirigentes políticos se articulam na propositura de soluções a serem utilizadas no futuro, quando instados a responder pela marcha sucessiva de atos que levam ao atual quadro de balbúrdia na saúde pública.
As fissuras causadas na democracia pela construção de narrativas equivocadas são responsáveis pela crise política que agrava, por sua vez, a crise sanitária e a resposta do governo vem na forma de estrangular direitos que não podem ser objetos de MPs, desequilibrando a harmonia com os demais poderes e impactando negativamente as relações sociais.
Rogério do Nascimento Carvalho é doutorando no Programa de Integração da América Latina – Universidade de São Paulo (USP) e mestre pela Escola de Guerra Naval. Colaborador da Diálogos do Sul
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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