Pesquisar
Pesquisar

China começou incomodar os EUA e europeus, isso foi um erro geoestratégico, diz especialista

De acordo com Lanxin Xiang, especialista em relações entre China, EUA e Europa, futuro da relação entre os dois países irá depender das próximas eleições estadunidenses
Pepe Escobar
Diálogos do Sul

Tradução:

Um governo Trump 2.0 turbinaria sua aposta com o objetivo de espremer a China “maligna” em uma frente de guerra híbrida múltipla, minar o excedente comercial chinês, cooptar grandes extensões da Ásia, enquanto insiste em caracterizar a China como o diabo encarnado.

A equipe Biden, mesmo que não professe nenhum desejo de cair na armadilha de uma nova Guerra Fria, de acordo com a plataforma oficial Democrata, seria apenas um pouco menos conflituosa, “poupando” ostensivamente a “ordem baseada em regras”, enquanto mantém as sanções impostas por Trump.

Pouquíssimos analistas chineses estão melhor posicionados para examinar o tabuleiro de xadrez geopolítico e geoeconômico do que Lanxin Xiang: especialista em relações entre China, EUA e Europa, professor de História e Relações Internacionais no IHEID em Genebra e diretor do Center for One Belt, One Road Studies, em Xangai.

De acordo com Lanxin Xiang, especialista em relações entre China, EUA e Europa, futuro da relação entre os dois países irá depender das próximas eleições estadunidenses

Reprodição: Twitter
Para Xiang, "se Biden vencer, o perigo de uma Guerra Fria virando Guerra Quente será drasticamente reduzido".

Xiang obteve seu PhD na Escola de Estudos Internacionais Avançados (SAIS) na Johns Hopkins, e é tão respeitado nos EUA quanto na China. Durante um webinar recente, ele expôs os fundamentos de uma análise que o Ocidente ignora por sua própria conta e risco.

Xiang tem se concentrado no impulso da administração Trump de “redefinir um alvo externo”: um processo que ele assinala como “arriscado, perigoso e altamente ideológico”. Não por causa de Trump – que “não está interessado em questões ideológicas” – mas devido ao fato de que a “política da China foi sequestrada pelos verdadeiros “Guerreiros Frios” (Cold Warriors)”. O objetivo: uma “mudança de regime”. Mas esse não era o plano original de Trump”.

Xiang explode a lógica por trás desses Cold Warriors: “Nós cometemos um grande erro nos últimos 40 anos”. Isto é, ele insiste, “absurdo – lendo de volta à História, e negando toda a trajetória das relações EUA-China desde Nixon”. E Xiang teme essa “falta de estratégia geral”. Isso cria uma enorme incerteza estratégica – e leva a erros de cálculo”.

Complementando o problema, “a China não está realmente certa do que os EUA querem fazer”. Porque vai muito além da contenção – o que Xiang define como “muito bem pensado em estratégia por George Kennan, o pai da Guerra Fria”. Xiang detecta apenas um padrão de “civilização ocidental versus uma cultura não-caucasiana”. Essa linguagem é muito perigosa. É uma reedição direta de Samuel Huntington, e mostra muito pouco espaço para concessões”.

Em resumo, essa é a “forma americana de tropeçar em direção a uma Guerra Fria”.

 Uma surpresa de outubro?

Tudo isso se conecta diretamente com a grande preocupação de Xiang sobre uma possível Surpresa de Outubro: “Provavelmente, poderia ser Taiwan. Ou um engajamento limitado no Mar do Sul da China”. Ele salienta: “Os militares chineses estão terrivelmente preocupados”. Surpresa de outubro como um confronto militar não é impensável, porque Trump pode querer restabelecer uma presidência de guerra”.

Para Xiang, “se Biden vencer, o perigo de uma Guerra Fria virando Guerra Quente será drasticamente reduzido”. Ele está muito consciente das mudanças no consenso bipartidário em Washington: “Historicamente, os republicanos não se importam com os direitos humanos e a ideologia. Os chineses sempre preferiram lidar com os republicanos. Eles não podem lidar com os democratas – direitos humanos, questões de valores. Agora a situação está invertida”.

Xiang, aliás, “convidou um alto conselheiro de Biden para Pequim. Muito pragmático. Não muito ideológico”. Mas no caso de uma possível administração Trump 2.0, tudo poderia mudar: “Meu palpite é que ele estará totalmente relaxado, podendo até mesmo reverter a política da China em 180 graus”. Eu não ficaria surpreso. Ele voltaria a ser o melhor amigo de Xi Jinping”.

Na situação atual, o problema é “um chefe diplomata que se comporta como um chefe propagandista, tirando vantagem de um presidente errático”.

E é por isso que Xiang nunca descarta nem mesmo uma invasão de Taiwan pelas tropas chinesas. Ele joga com o cenário de um governo taiwanês anunciando, “Somos independentes”, juntamente com uma visita do Secretário de Estado: “Isso provocaria uma ação militar limitada, e poderia se transformar em uma escalada”. Pense em Sarajevo. Isso me preocupa. Se Taiwan declarar a independência, os chineses invadirão em menos de 24 horas.“

Erros de cálculo de Pequim

Ao contrário da maioria dos estudiosos chineses, Xiang é extremamente franco sobre as próprias deficiências de Pequim: “Várias coisas deveriam ter sido mais bem controladas. Como abandonar o conselho original de Deng Xiaoping de que a China deveria esperar seu tempo e manter um perfil discreto”. Deng, em seu último testamento, tinha estabelecido uma linha do tempo para isso, pelo menos 50 anos”.

O problema é que “a velocidade do desenvolvimento econômico da China levou a cálculos precipitados e prematuros”. E uma estratégia não bem pensada. A diplomacia do “guerreiro lobo” é uma postura extremamente assertiva – e uma linguagem. A China começou a incomodar os EUA – e até mesmo os europeus. Isso foi um erro de cálculo geoestratégico”.

E isso nos leva ao que Xiang caracteriza como “a sobre-extensão do poder chinês: geopolítico e geoconômico”. Ele gosta de citar Paul Kennedy: “Qualquer grande superpotência, se superesticada, torna-se vulnerável”.

Xiang chega ao ponto de afirmar que a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, en inglês) – cujo conceito ele elogia entusiasticamente – pode estar sobrecarregada: “Eles pensaram que se tratava de um projeto puramente econômico. Mas com um alcance global tão amplo?”.

Então, a BRI é um caso de superesticamento ou uma fonte de desestabilização? Xiang observa como, “os chineses nunca estão realmente interessados nas políticas internas de outros países”. Não estão interessados em exportar um modelo”. Os chineses não têm um modelo real. Um modelo tem que ser maduro – com uma estrutura. A menos que você esteja falando de exportação da cultura tradicional chinesa”.

O problema, mais uma vez, é que a China pensou ser possível “esgueirar-se para áreas geográficas às quais os EUA nunca prestaram muita atenção, África, Ásia Central, sem necessariamente provocar um revés geopolítico. Mas isso é ingenuidade”.

Xiang gosta de lembrar aos analistas ocidentais que, “o modelo de investimento em infra-estrutura foi inventado pelos europeus. Ferrovias. A Trans-Siberiana. Canais, como no Panamá. Por trás desses projetos, sempre houve uma competição colonial. Nós perseguimos projetos similares – menos o colonialismo”.

Ainda assim, “os planejadores chineses enterraram a cabeça na areia. Eles nunca usam essa palavra – geopolítica”. Assim, há constantes piadas com os formuladores de políticas chinesas: “Você pode não gostar da geopolítica, mas a geopolítica gosta de você”.

 Pergunte a Confúcio

O aspecto crucial da “situação pós-pandêmica”, segundo Xiang, é esquecer “essa coisa de guerreiro-lobo”. A China pode ser capaz de reativar a economia antes de qualquer outro. Desenvolver uma vacina realmente eficaz. A China não deve politizá-la. Deve mostrar um valor universal sobre ela, buscar o multilateralismo para ajudar o mundo, e melhorar sua imagem”.

Na política interna, Xiang é inflexível ao apontar que “durante a última década a atmosfera em casa, nas questões das minorias, na liberdade de expressão, tem sido restringido ao ponto de não ajudar a imagem da China como uma potência global”.

Compare isso, por exemplo, com as “visões desfavoráveis da China” em uma pesquisa sobre nações do Ocidente industrializado que inclui apenas dois asiáticos: o Japão e a Coréia do Sul.

E isso nos leva ao The Quest for Legitimacy in Chinese Politics (Busca pela Legitimidade na Política Chinesa) de Xiang – sem dúvida o estudo contemporâneo mais importante de um estudioso chinês capaz de explicar e superar a divisão política Leste-Oeste.

Este livro é um avanço tão importante que suas principais análises conceituais serão objeto de um texto de desdobramento.

A tese principal de Xiang é que “a legitimidade na filosofia política de tradição chinesa é uma questão dinâmica”. Transplantar os valores políticos ocidentais para o sistema chinês não funciona”.

No entanto, como o conceito chinês de legitimidade é dinâmico, Xiang salienta, “o governo chinês está enfrentando uma crise de legitimidade”. Ele se refere à campanha anti-corrupção dos últimos quatro anos: “A corrupção oficial generalizada, que é um efeito colateral do desenvolvimento econômico, trazendo à tona o lado ruim do sistema”. Crédito a Xi Jinping, que entendeu que se permitirmos que isto continue, o PCC perderá toda a legitimidade”.

Xiang enfatiza como, na China, “a legitimidade se baseia no conceito de moralidade – desde Confúcio. Os comunistas não podem escapar da lógica.

Ninguém antes de Xi se atreveu a combater a corrupção. Ele teve a coragem de erradicá-la, prendeu centenas de generais corruptos. Alguns até tentaram dois ou três golpes de Estado”.

Ao mesmo tempo, Xiang é inflexível contra o “enrijecimento da atmosfera” na China em termos de liberdade de expressão. Ele menciona o exemplo de Cingapura sob Lee Kuan Yew, um “sistema autoritário esclarecido”. O problema é que” a China não tem um Estado de direito. Há muitos aspectos legais, no entanto. Cingapura é uma pequena cidade-estado. Como Hong Kong. Eles acabaram de assumir o sistema jurídico britânico. Está funcionando muito bem para esse tamanho”.

E isso leva Xiang a citar Aristóteles: “A democracia nunca pode funcionar em países maiores. Em cidades-estado, funciona”. E, armados com Aristóteles, entramos em Hong Kong: “Hong Kong tinha um Estado de direito – mas nunca uma democracia. O governo foi nomeado diretamente por Londres. Foi assim que Hong Kong realmente funcionou – como um dínamo econômico. Os economistas neoliberais consideram Hong Kong como um modelo. Trata-se de um arranjo político único. A política dos magnatas. Sem democracia – mesmo que o governo colonial não tenha governado como uma figura autoritária. A economia de mercado foi desenfreada. Hong Kong era governada por Jockey Club, HSBC, Jardine Matheson, com o governo colonial como coordenador. Eles nunca se preocuparam com as pessoas no fundo do poço”.

Xiang observa como, “o homem mais rico de Hong Kong paga apenas 15% do imposto de renda”. A China queria manter esse padrão, com um governo colonial nomeado por Pequim. Ainda assim, a política dos magnatas. Mas agora há uma nova geração. Pessoas nascidas após a transferência de poder – que não sabem nada sobre a história colonial. A elite chinesa que governa desde 1997 não prestava atenção à base e negligenciava o sentimento da geração mais jovem. Durante um ano inteiro, os chineses não fizeram nada. A lei e a ordem entraram em colapso. Esta é a razão pela qual os chineses do continente decidiram intervir. É disso que se trata a nova lei de segurança”.

E o que dizer daquele outro ator “maligno” favorito em todo o Beltway – Rússia? “Putin adoraria ter uma vitória de Trump”. Os chineses também, até três meses atrás. A Guerra Fria foi um grande triângulo estratégico. Depois que Nixon foi à China, os EUA se sentaram no meio manipulando Moscou e Pequim. Agora tudo mudou”


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Veja também

   

Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo
jornalístico e de qualidade.

A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista
Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os
nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção
jornalística.

Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Pepe Escobar Pepe Escobar é um jornalista investigativo independente brasileiro, especialista em análises geopolíticas e Oriente Médio.

LEIA tAMBÉM

José Carlos Mariátegui
94 anos sem Mariátegui, fonte eterna para entender as cicatrizes do Peru e da América Latina
Equador_Noboa_plebiscito 2
Plebiscito no Equador: povo rechaça modelo "ultraliberal" proposto por Noboa
Colômbia_Acordo_de_Paz
Descumprimento de acordos coloca em risco processo de paz na Colômbia
Sem títulodsads
Venezuelanos vão às urnas para decidir onde e como aplicar orçamento público