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Paulo Cannabrava Filho: Biden deve trazer EUA de volta ao multilateralismo

Não será fácil para Biden. Nunca na história esteve a sociedade estadunidense confrontada a tamanha crise
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

Joe Biden é o novo presidente dos Estados Unidos. Maravilha… venceu a democracia na maior democracia do mundo! 

É incrível a falta de juízo crítico das pessoas que atuam como formadores de opinião nos jornais e salas de aula neste país. O sistema político nos Estados Unidos foi montado para garantir o poder das oligarquias que fundaram o Estado (uma verdadeira dinastia). 

O sistema serviu aos traficantes de escravos e de ópio e depois passou a servir aos novos-ricos do petróleo e dos bancos e ao complexo militar industrial. Um sistema político que foi montado para executar um projeto de expansão territorial e de hegemonia econômica. Serviu de exemplo para o III Reich. 

A doutrina Monroe e todas que a complementaram a cada governante projeta os EUA dominando do Canadá à Patagônia. Essa é a América Grande sonhada pelos pais da pátria e todos que os sucederam no poder.

Trump foi episódico. O confronto entre as velhas oligarquias e os novos-ricos surgidos com a utilização das tecnologias da informação e de comunicação e nas cirandas financeiras transformou o mundo em um cassino global e deixou o país e todos que o apoiam sem rumo. Sim, perderam o rumo a favor de um pensamento único imposto pelo capital financeiro.

Trump cometeu crimes de altíssima gravidade ao incitar seus áulicos a invadirem o Capitólio, o templo da democracia deles. Trump não é homem de se entregar. Se não for detido, cometerá outras violências contra as instituições. Mas, sua saída, sem dúvida, baixa as tensões. Só isso já é muita coisa.

Não será fácil para Biden. Nunca na história esteve a sociedade estadunidense confrontada a tamanha crise

Agência Brasil
Biden centrou também na intenção pacificadora para aliviar a tensão

O discurso de posse de Biden é uma inteira exortação à grandeza da América deles, mas que também inclui a América que é a Nossa América. Este é o primeiro ponto que marca a diferença entre os interesses de Nossa América e as intenções dos Estados Unidos da América do Norte. Mais do que diferença: conflito. 

Biden centrou também na intenção pacificadora para aliviar a tensão. A presença de gente boa e séria em seu governo igualmente corrobora para a distensão. 

A presença de uma negra filha de imigrantes, Kamala Harris, não só para ser vice, mas para ter protagonismo no governo, certamente encheu de esperança as milhares de famílias de imigrantes que foram e estão separadas, confinadas em verdadeiros guetos.

Em questões de política externa, nas relações dos EUA com o mundo, também gerou expectativas de uma maior distensão. No que concerne a Cuba, Venezuela, Irã, os pontos mais álgidos do expansionismo ianque na atualidade, é o que mais nos interessa, aos amantes da paz.

Confira a série Biden para a América Latina 

O retorno ao Acordo do Clima de Paris e ao Acordo Nuclear com o Irã significam muita coisa, pois é a vontade manifesta de um retorno ao multilateralismo abandonado pela administração republicana. 

A Europa não se desfez do Acordo, para estar bem com Europa, Ásia e Oriente Médio, a tendência é voltar a ele. Para o Irã voltar, basta com Biden levantar as sanções impostas por Trump.

Já com relação a Cuba, onde a burrice e a teimosia ianque mais se manifesta, já são 50 anos de fracasso, é provável que volte às boas falas iniciadas pelo governo de Obama, do qual Biden era o vice. 

Mais uma evidência do fracasso, o Conselho Conjunto UE-Cuba, em sua terceira reunião, acaba de ratificar o acordo de cooperação em investimento e comércio bilateral.

Já com relação à Venezuela não podemos esquecer que foi o governo de Obama quem decretou o país como uma ameaça inusual à segurança nacional dos EUA. Por quê? Petróleo e minerais que são estratégicos.

Brasil

A novidade é que quem fará par com a Venezuela como perigo à segurança nacional dos Estados Unidos será o Brasil. Eles, os que compõem o staff já deixaram bem claro que a política externa se fundará principalmente na questão ambiental e de direitos humanos. Apontaram que o Brasil de Bolsonaro não terá trégua.

Parece contraditório, considerando que os militares brasileiros integram o South Command, são obedientes às ordens do Pentágono e que são os militares que estão no poder. 

Parece, mas não é. 

A imagem do governo brasileiro está muito desgastada e associada à imagem de Trump. Não dá para um governo, que muda radicalmente de política, manter esse casamento incômodo. É uma questão de imagem, de discurso, como no tempo de James Carter e também de Obama. 

Multilateralismo

Vladimir Putin, o presidente da Federação Russa, torce, evidentemente, para o regresso ao multilateralismo. Sua primeira manifestação foi indicar que aguarda que Biden dê atenção ao Tratado de Limitação de Armas, que vence agora no início de fevereiro.

O problema dos EUA com a Rússia não está na Rússia, está nos EUA, na cabeça de mais de uma geração que foi criada no anticomunismo e anti sovietismo. Essa ideia de que só Cristo salva, só Trump salva, tem a ver com o dogma das denominações evangélicas, pentecostais e neopentecostais, que lá têm muita força.

Os meios chineses saudaram com entusiasmo as primeiras manifestações do governo Biden. As relações agressivas com a China, com Trump, também foram episódicas. 

Para além da questão política, havia preconceito e ódio só justificados numa mente racista. Pequim anunciou sanções contra 28 membros da equipe de Trump, começando com Mike Pompeo, por promoverem ingerência em assuntos internos e socavar as relações bilaterais. Empresas ligadas a essas pessoas não farão negócios da China.

Os Estados Unidos precisam se repensar. Um começar tudo de novo a partir daquilo de novo que está a emergir.

Não será fácil 

Nunca na história esteve a sociedade estadunidense confrontada a tamanha crise. Pegos de surpresa por um vírus que já provocou mais mortes do que os que caíram nas duas grandes guerras.  Só houve mais mortes na guerra civil. Na economia, já há quem considere uma situação de crise pior do que aquela da quebradeira geral de 1929.

Para sair da crise nos anos 1930, Franklin Delano Roosevelt conseguiu, com o New Deal, colocar o país no caminho de se tornar a potência industrial que chegou a ser. Biden terá que conseguir um Novo Pacto. 

Mesmo sem considerar os efeitos da pandemia sobre a produção e o emprego, o país já estava com metade da população ativa desempregada ou vilmente empregada. O vírus só agravou a situação. 

Biden salva o capitalismo se romper com o status quo, que é a negação do capitalismo, um cassino em que dinheiro só serve para fazer mais dinheiro e corromper as pessoas. 

Para nós, o caos

Considerando que para o Império o caos é o que mais lhe convém, os EUA podem estar apostando em convulsionar o país. 

Aras, o Procurador Geral da República, aquele que deveria fazer o Executivo andar de acordo com a Lei, antevendo um Estado de Calamidade pública provocado pela pandemia, ameaça decretar Estado de Defesa, que é o mesmo que Estado de Sítio. A Lei não vale para ninguém, só valem o poder das armas e do arbítrio. 

E isso por quê? Violência é a típica reação dos néscios à sua própria incompetência. 

Veja, começou a campanha de vacinação, mas faltam insumos para a produção de vacinas, além disso, não foram compradas coisas básicas, como seringas. O episódio da falta de oxigênio em Manaus ilustra bem a incompetência com que o tema vem sendo tratado. O povo cansou e saiu às ruas pedindo a cabeça do governo.

Em maio de 2020, o governo militar de ocupação rejeitou fazer parte da Covax, a Aliança Mundial de Vacinas, uma coalizão de 165 países para garantir a vacina contra a Covid-19. 

Pelas normas da Covax, o Brasil poderia encomendar mais de 200 milhões de doses (o equivalente a 50% da população brasileira). Pelo tamanho de sua população, o país automaticamente estaria entre os cinco primeiros a receber as vacinas.

Em 20 de outubro de 2020,  o general Eduardo Pazuello, que ocupa o Ministério da Saúde, anunciou a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac. Em menos de 24 horas, Jair Bolsonaro suspendeu compra da vacina CoronaVac. 

E convenhamos, por que só 46 milhões e não pelo menos 200 milhões? Este nosso país não é do tamanho das forças armadas. 40 milhões de  doses vacinas corresponde à metade da população do Estado de São Paulo, pois a dose é dupla.

Será por que Guedes não quer estourar o teto do déficit público, ou, como disse o general que ocupa o Ministério da Saúde, as vacinas são muito caras?

Paulo Cannabrava Filho é jornalista e editor da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1967. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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