Nota da redação: Beatriz Bissio, jornalista uruguaia, relata fatos de que realmente foi testemunha, como esposa de Neiva Moreira e como militante. Junto com Neiva Moreira criou e dirigiu no exílio a revista Cuadernos del Tercer Mundo e Cadernos do Terceiro Mundo. De regresso ao Brasil após a anistia de 1979, refundaram as revistas que passaram a ser editadas no Rio de Janeiro. CTM deixou de circular em 2005 como a mais longeva das mídias alternativas. Renasceu em 2015 em formato digital e rebatizada como Diálogos do Sul.
Eu fui testemunha de um sonho, um sonho sonhado por muitos. Eram brasileiros no exílio, dispersos pelos quatro cantos do nosso belo planeta azul, e eram brasileiros no exílio dentro do seu próprio país, dispersos pelos recantos daquele que não era mais o Brasil…
Que sonho era esse?
Um que vinha de longe… O de retomar o fio da história; resgatar o trabalhismo do porão onde tinha sido jogado depois do Ato Institucional Num. 2, de 1965, quando foram proibidos os partidos políticos históricos e criado, artificialmente, o bipartidarismo, com a Aliança Renovadora Nacional (Arena), situacionista, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), da oposição enquadrada.
Mas o trabalhismo continuava vivo na memória coletiva e era necessário trazê-lo de volta ao cenário político, recuperar o seu papel histórico.
Uma reunião importante, na caminhada do reencontro do trabalhismo com o seu passado, aconteceu nos primeiros meses de 1979 no México, na bucólica cidade de Cuernavaca. O Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governava esse país, campeão na acolhida de exilados e perseguidos políticos, tinha acedido ao pedido de apoio dos brasileiros que lá residiam, para realizar uma primeira reunião, preparatória de outras que viriam a seguir, cujo objetivo era a reorganização do trabalhismo. Entendia-se que essa era uma das condições necessárias para abrir ao Brasil perspectivas de futuro.
Aquele primeiro semestre de 1979 ainda era um período de muita incerteza, mas as notícias que vinham do Brasil permitiam acalentar razoáveis expectativas de uma abertura do regime. Desde a vitória do MDB nas eleições consentidas de 1974 (que muitos estudiosos consideram o “ponto de inflexão” do longo período ditatorial), com idas e vindas, observava-se um desgaste do governo civil-militar. Para isso tinha contribuído o deterioro do chamado “milagre brasileiro”, uma de cujas consequências, o crescimento da inflação, tinha tido profundo impacto social.
Em particular, inspiravam confiança na perspectiva de abertura política, a atuação firme do segmento progressista da Igreja Católica, a luta dos estudantes, que procuravam criar condições para a reorganização da UNE, e os consistentes avanços das mobilizações em favor da anistia, lideradas inicialmente pelo Movimento Feminino pela Anistia, presidido por Therezinha Zerbini, cuja atuação tinha propiciado a fundação do Comitê Nacional pela Anistia, em fevereiro de 1978.
Com esses dados, que a imprensa internacional recolhia e comentava (enquanto no Brasil as informações eram cerceadas pela censura), e com avaliações oriundas dos que resistiam no interior do país, foi surgindo a convicção de que era chegada a hora de preparar a etapa pós-ditadura, com todos os desafios que ela trazia, após o profundo e doloroso corte de mais de duas décadas, para quem aspirava a retomar o fio da história.
Leonel Brizola estava exilado, na época, nos Estados Unidos, depois de expulso do Uruguai, onde tinha passado quase quinze anos, muitos deles em prisão domiciliar. A sua expulsão, sabe-se hoje, tinha sido uma exigência do regime militar brasileiro, prontamente atendida pelo governo ditatorial uruguaio.
Tendo sido acolhido nos Estados Unidos pela política de direitos humanos implementada pelo presidente Jimmy Carter, Brizola tinha fixado residência, junto com dona Neusa, em Nova Iorque e tinha ganho a possibilidade de se deslocar pelo mundo e de desenvolver uma articulação política internacional que não tivera nos anos de exílio no Uruguai.
A situação política no Brasil e os contatos internacionais, seja com brasileiros exiliados, seja com forças políticas progressistas de vários países, em particular europeias, foram os elementos que mostraram estarem amadurecidas as condições de preparar o relançamento do trabalhismo. Havia a consciência de que essa força política tinha um papel a desempenhar na etapa decisiva que se aproximava.
Um grupo importante de brasileiros que cultivava relações estreitas com Brizola e com o trabalhismo, estava exilado no México: Francisco Julião, Neiva Moreira, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, Benedito Cerqueira, entre outros.
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Brizola durante campanha no Rio Grande do Sul
Longas horas de conversas e avaliações resultaram em algumas decisões que se revelariam decisivas. Uma delas, a necessidade de reunir os trabalhistas do exílio com os trabalhistas que resistiam no Brasil, para lançar a plataforma que colocaria o Trabalhismo novamente no cenário político brasileiro.
A reunião de Cuernavaca, com apoio do PRI, transcorreu numa fazenda, adaptada como hotel, local propício para o desafio que assumiam aqueles brasileiros. Brizola e dona Neusa tinham viajado para o México especialmente desde Nova Iorque para participar da reunião. Com eles estava a pequena Layla, neta deles, de três ou quatro anos. Foi uma companhia ideal para a nossa pequena Micaela, então com menos de dois anos, nascida no México. Nota da redação
Essa reunião acabou se realizando em Lisboa, com apoio do Partido Socialista Português, entre 15 e 17 de junho de 1979, e contou com a participação do Secretário-geral do PS, Mario Soares, em representação do seu partido e da Internacional Socialista. A reunião ficou conhecida como o “Encontro dos Trabalhistas do Brasil com os Trabalhistas no Exílio”, e no último dia aprovou a chamada “Carta de Lisboa”, com a plataforma que definia as principais bandeiras e propostas políticas do Trabalhismo para a nova etapa do país.
Uma delas é muito significativa, pois está hoje tão ou mais vigente do que em 1979:
A experiência histórica nos ensina, de um lado, que nenhum partido pode chegar e se manter no governo sem contar com o povo organizado e, de outro lado, que as organizações populares não podem realizar suas aspirações sem partidos que as transformem em realidade através do poder do Estado. A falta de apoio popular organizado pode levar a situações dramáticas como aquela que conduziu o presidente Getúlio Vargas a dar um tiro em seu próprio peito. Partidos e povo organizados constituem, por conseguinte, as duas condições fundamentais para a construção de uma sociedade democrática.”
Também extremamente vigentes as definições na esfera econômica. O documento afirma que “é dever também dos Trabalhistas lutar contra a brutal concentração da renda que responde inclusive pelo achatamento dos salários, fixados em índices falsificados e sempre inferiores ao aumento das taxas reais do custo de vida.” Em relação a este tema, o documento defende a necessidade de uma nova legislação trabalhista, “que recupere as conquistas subtraídas pela ditadura e permita a ampliação constante dos direitos dos trabalhadores”. Citava, ainda, o compromisso com a reversão das diretrizes da política econômica, “com o objetivo de afirmar, em lugar do primado do lucro, a prioridade de dar satisfação às necessidades vitais do povo, especialmente as de alimentação, saúde, moradia, vestuário e educação.” E denunciava a política econômica que gera um “contraste espantoso entre a super prosperidade das empresas –especialmente as estrangeiras– e o empobrecimento do povo brasileiro.”
É sabido o que aconteceu depois. A anistia foi finalmente decretada em fins de agosto de 1979, durante o governo Figueiredo. O Brasil viveu dias históricos, com a libertação dos presos políticos e a volta dos exilados. Mas a anistia não foi exatamente a que o povo tinha exigido, e hoje talvez mais do que ontem é possível constatar quantas sequelas essa mutilação de projeto original deixou, sentidas nas décadas seguintes.
Fruto de todos os avanços no terreno político, chegou o almejado momento da reorganização partidária. Os mais velhos devem lembrar a perversa argumentação jurídica, idealizada pelo general Golbery do Couto e Silva, o grande estrategista dos governos militares, o chamado “Kissinger brasileiro”, que tirou do Brizola e dos verdadeiros trabalhistas a sigla PTB -Partido Trabalhista Brasileiro-.
Golbery acertara no diagnóstico, desde a sua perspectiva, impregnada da mentalidade originária da Doutrina de Segurança Nacional: “Não podemos cometer o erro de dar ao líder carismático a sigla histórica” …
O golpe foi duro. Brizola chegou às lágrimas, como muito bem lembro. Mas, logo recomposto, escreveu a sigla PTB num papel. E num gesto teatral, o rasgou, na frente da militância que o rodeava. Não era hora de lamentações. Era urgente pensar em alternativas. E, sem demora, surgiu a sigla que identificaria os verdadeiros trabalhistas na etapa pós-ditadura: Partido Democrático Trabalhista, PDT.
É importante fazer uma análise minuciosa dos acontecimentos que se seguiram, mas não é aqui o propósito nem o momento. No entanto, é pertinente trazer para a lembrança algumas das iniciativas que constituíram a marca indelével do PDT e das duas administrações de Leonel Brizola no governo do Rio de Janeiro: a forte liderança nas Diretas Já, a prioridade à educação, com a construção de 506 escolas públicas, projetadas para ser de horário integral, os famosos CIEPs, idealizados por Darcy Ribeiro e apelidados pelo povo de “Brizolões”; a criação da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF); “o desmantelamento de 50 grupos de extermínio, com a prisão de cerca de duzentos policiais; a prisão e o indiciamento dos envolvidos nas chacinas da Candelária e de Vigário Geral, o que conquistou elogios de entidades internacionais de direitos humanos, como a Americas Watch; criação de delegacias especializadas, como a de atendimento ao turista e de crimes contra o consumidor; e criação dos centros comunitários de defesa da cidadania, com a instalação de postos de atendimento às comunidades de serviços como Instituto Félix Pacheco, Registro Civil, Defesa Civil, Polícia Civil, PM e Defensoria Pública, entre outros” 1.
A construção do sambódromo, que mudou para sempre o carnaval do Rio de Janeiro e do Brasil; o programa Cada Família, Um Lote, que procurou regularizar a propriedade nas principais favelas do Rio; o início do projeto de despoluição da Baía de Guanabara; a construção da Linha Vermelha; a denúncia do racismo estrutural e a promoção de negros, índios, mulheres, jovens, através de iniciativas variadas e mediante a nomeação para cargos de destaque na administração e no partido.
Quem não lembra o fato histórico do cacique Juruna eleito deputado federal? E de Abdias do Nascimento eleito senador, ambos pelo PDT? E a cerimônia de posse do Brizola no primeiro governo? Uma posse histórica, com uma representação internacional digna de um chefe de Estado!
Igualmente importante foi a participação dos trabalhistas do PDT na Constituinte e a atuação do Brizola no cenário internacional, uma de cujas iniciativas mostrava as prioridades da agenda diplomática do PDT: a visita, junto com uma comitiva do partido, a Angola e Moçambique, para prestar solidariedade às então recentemente independizadas nações africanas lusófonas.
E como não citar, nestes anos em que sofremos as consequências da porteira aberta para passar a boiada criada pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a consistente denúncia de Brizola do papel nocivo dos meios de comunicação e, particularmente, da Rede Globo? A parcialidade e compromisso da Rede Globo e da maior parte da mídia mainstream com uma agenda contrária à soberania do Brasil e aos interesses das classes populares foi permanentemente denunciada por Brizola.
E, importante, ainda, nesta conjuntura, lembrar a atitude assumida por Brizola quando foi Lula e não ele, quem passou para o segundo turno nas eleições de 1989! Brizola arregaçou as mangas e foi fazer campanha ao lado do dirigente do PT, mesmo com a dor de ver frustrada a sua longa (e justa) aspiração a chegar à presidência da República!
Muitos leitores se perguntarão qual a razão de estar agora fazendo esta síntese e trazendo a tona estas lembranças?
A resposta é simples: Esse passado, não tão longínquo, deve ser lembrado no momento em que vivemos uma situação mais grave ainda que aquele período do início dos anos 1980, quando o PDT fez a sua estreia!
Neste ano de 2021, em boa parte do mundo, a distopia representada pelo sistema capitalista, que ameaça a própria sobrevivência da espécie humana, ficou a nu com a pandemia. No Brasil, o Covid-19 já cobrou perto de 300 mil mortes e o país é definido a nível internacional como uma ameaça, pela inexistência de um plano consistente de combate à pandemia e pelas dramáticas consequências dessa omissão. Nesse contexto, a crise brasileira se alastra em todos os planos, da saúde pública à economia, da política à justiça.
Que faria, neste momento, o PDT liderado por Brizola e secundado por aqueles bravos brasileiros e brasileiras? Possivelmente estaria denunciando o governo atual e convocando a uma grande aliança de forças progressistas, mas também, seguindo a tradição de uma inserção soberana no contexto mundial, acompanharia o debate que já faz parte da agenda internacional, sobre os caminhos e as prioridades da etapa posterior à erradicação ou domesticação do vírus. Propor alternativas ao sistema capitalista, ao individualismo, ao falso nacionalismo, é parte do legado do trabalhismo. Seria demais pensar que esse Trabalhismo estaria na linha de frente de uma grande aliança mundial de enfrentamento à pandemia e, sobretudo, de planejamento das ações posteriores à erradicação ou domesticação do vírus?
Não podemos esquecer que o PDT de Brizola defendia um projeto de sociedade próprio do Trabalhismo, o “socialismo moreno”, entendido como um sistema alternativo ao capitalismo que incorporasse as especificidades brasileiras.
O desmonte de tudo o que o povo brasileiro construiu, principalmente desde a segunda metade do século 20, a perda de soberania que isso implica, além da exploração e subtração de direitos do povo trabalhador, torna extremamente vigente o ideário do Trabalhismo como via ao socialismo. Mas o Trabalhismo sumiu do cenário brasileiro.
O PDT de 2021 está longe de ser o herdeiro daquele sonho.
Com algumas honrosas exceções – homens e mulheres que ainda lutam, dentro do partido, para que assuma os seus verdadeiros compromissos históricos –o que se constata é a nítida perda de protagonismo decorrente do abandono dos mais importantes compromissos do Trabalhismo.
Se estivessem vivos hoje figuras da estatura daqueles que deram os primeiros passos no rumo da refundação do trabalhismo, em Cuernavaca, em Lisboa, no Brasil, lideranças como Brizola, Dona Neusa, Francisco Julião, Neiva Moreira, Darcy Ribeiro, Doutel de Andrade, Brandão Monteiro, Luiz Carlos Prestes, Jackson Lago, José Gomes Talarico, Theotônio dos Santos, Bocaiúva Cunha, Vânia Bambirra, Maria Yeda Linhares, Bayard Boiteux, Abdias Nascimento, Hésio Cordeiro, o PDT estaria na primeira linha na convocatória à unidade na resistência e na defesa da soberania e dos direitos do povo brasileiro.
Mas as bandeiras históricas do trabalhismo não estão sendo levantadas neste momento; estão sufocadas pela ambição medíocre de usufruto de benesses em benefício de poucos; uma política viabilizada por uma estrutura interna não democrática que se perpetua com o clientelismo. Quantos dos que hoje estão amparados no sigla PDT teriam espaço no partido se vivos fossem os líderes históricos e se a democracia partidária tão pregada, mas não praticada, fosse realmente implementada?
Triste fim de um sonho acalentado durante tantos anos!
Mas o exemplo do próprio Brizola mostra o caminho. Não adianta se refugiar na dor do sonho perdido. É necessário procurar novos caminhos, como foi a fundação do PDT diante da perda da sigla PTB.
Não estará já amadurecida a hora de refundar, mais uma vez, o Trabalhismo?
Não será hora de construir uma nova utopia?
Eu creio que sim. A gravidade deste momento assim o exige.
Faz falta no cenário político brasileiro o Trabalhismo, com “T” maiúscula. Esse novo Trabalhismo pode preencher um espaço que não está sendo ocupado; pode levantar novamente as bandeiras históricas, dando conteúdo ideológico à luta. E, dessa forma, poderá colaborar na construção de uma importante frente progressista, formada por partidos políticos, movimentos sociais e lideranças independentes; uma frente onde sejam acolhidos todos aqueles que continuam engajados no projeto de construção democrática, de respeito aos direitos humanos, e de repúdio ao neoliberalismo.
Não há tempo a perder.
O Verdadeiro Trabalhismo, aquele capaz de honrar a sua história, deve voltar ao cenário político brasileiro. Necessita empreender, mais uma vez, como em 1979, com a Carta de Lisboa e com os demais documentos fundacionais do partido, a luta política junto ao povo, pela reconquista de todas as dimensões da democracia, dos direitos sociais, econômicos, ambientais, e muito especialmente, pela recuperação da soberania nacional.
É a dívida que todos temos com aqueles que lutaram por esse sonho e cujo exemplo nos inspira. __
Notas
[1] Dados reproduzidos do verbete Leonel de Moura Brizola – sitio web da Fundação Getúlio Vargas: -http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/leonel-de-moura-brizola
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