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De Pinochet a Bolsonaro: quão “desumano” é comemorar a morte de um genocida?

Torcer pela morte do presidente brasileiro ou comemorar que ele eventualmente morra de obstrução intestinal, seria algo humanamente errado?
Victor Farinelli
Diálogos do Sul Global
Santiago

Tradução:

Em 2006 eu já morava no Chile e vivi aqui o dia em que faleceu Augusto Pinochet um dos exemplos de vida de Jair Bolsonaro – de quem falarei depois.

Milhares de pessoas foram às ruas do Centro de Santiago e também em outras cidades, para comemorar a morte. Também houve quem saiu para homenagear o ditador, mas isso ficou restrito aos bairros de elite da capital.

Pessoalmente, não sei se comemoraria a morte de alguém, mas me lembro claramente da minha reflexão na época, vendo aquelas pessoas felizes porque o tirano finalmente tinha morrido.

Muitas delas eram ex-presas políticas e familiares de pessoas que não sobreviveram àquela ditadura promovida por militares e liberais. Pessoas que buscaram Justiça pela via dos tribunais, mas ela nunca veio. O genocida nunca foi preso, graças às manobras judiciais que impediram sua detenção durante os últimos anos de sua vida, e graças à blindagem que mesmo os governos chilenos de centro-esquerda deram a ele – havia uma condenação contra ele em um tribunal da Espanha, a centro-esquerda rejeitou a extradição alegando que o condenaria “no Chile, como deve ser”, mas isso nunca aconteceu.

Diante daquela impunidade, a única reflexão possível era: quem sou eu pra dizer que aquelas pessoas que comemoravam estavam fazendo algo errado? Aquelas pessoas que esperaram por justiça pela via regular e esta nunca chegou, como eu poderia dizer que elas não tinham o direito de celebrar o fato de que aquele genocida já não existia mais?

Torcer pela morte do presidente brasileiro ou comemorar que ele eventualmente morra de obstrução intestinal, seria algo humanamente errado?

Carlos Latuff
Agora, no Brasil, se levanta nas redes sociais a ideia de que, supostamente, comemorar a possibilidade de que Jair Bolsonaro pode morrer.

Um mundo sem Pinochet era um prêmio de consolo. Conheci muitas dessas pessoas durante todos esses anos no Chile, e sei que a grande maioria delas queria sim que o ditador tivesse vivido pra conhecer a cadeia e pagasse pelos seus crimes, mas essa justiça nunca veio, e em um determinado momento, muito antes da sua morte, ficou claro que isso jamais iria acontecer.

Agora, no Brasil, se levanta nas redes sociais a ideia de que, supostamente, comemorar a possibilidade de que Jair Bolsonaro pode morrer. Alguém pode achar que é ridículo comparar Bolsonaro com Pinochet, porque um foi eleito e o outro não, mas depois de 540 mil mortes por covid (e contando), a maioria delas causada por uma política sanitária propositalmente negligente, e agora se está investigando inclusive se houve corrupção em meio a essa negligência. Quão menos genocida ele é em comparação com seu ídolo chileno?

Sendo assim, a única coisa que impede a reflexão que fiz no Chile, é o fato de que Bolsonaro ainda não morreu. Na verdade, nem mesmo o risco de vida é algo oficialmente admitido. Mas torcer pela morte de Bolsonaro, ou comemorar que ele eventualmente morra de obstrução intestinal, seria algo humanamente errado?

Primeiro, é preciso explicar que ao se tratar de um genocida, esses sentimentos são muito diferentes de algo casual ou cotidiano. Quando se trata de uma pessoa que cometeu um crime de roubo ou até de homicídio, em uma situação que afeta a vida de um pequeno grupo de pessoas, mesmo ao tentar se me colocar no lugar de alguém que perdeu um parente, um amor, uma amizade querida em casos assim, é possível racionalizar sobre sentimentos como perdão e compaixão, defender a ideia de “não se igualar” a quem cometeu esse erro e questionar o “olho por olho”.

Agora, lembre-se que no caso do Brasil não é só uma pessoa assim. Junto com as 540 mil mortes por covid no país há milhões de pessoas, uma grande parte da população brasileira que está nessa situação de ter perdido alguém sem sequer poder se despedir. Pessoas que perderam alguém com quem se convivia normalmente até que, em um dia qualquer, sem prévio aviso, veio um vírus e ela desapareceu, morreu sozinha e sequer teve direito a um funeral tradicional, devido às restrições sanitárias.

Aconteceu o mesmo com os desaparecidos nas ditaduras, no Chile e no Brasil. Em muitos casos, familiares das vítimas sequer sabem o que foi feito com os corpos. Outra coisa que une a pandemia com as tragédias das ditaduras é que muitos perderam mais de uma pessoa querida, e alguns chegaram a perder uma família inteira.

As pessoas sabem que a dor é resultado de toda uma política que afetou milhões de pessoas. Uma política baseada na ideia de não dar importância ao vírus e que morra quem tiver que morrer. E não foram só os que morreram. Também estão aqueles que padeceram a doença, mas sobreviveram. Alguns chegaram perto da morte. Alguns ficaram com sequelas. Até nisso a pandemia se assemelha as atrocidades cometidas em uma ditadura.

Diante desse sofrimento, essas pessoas não podem desejar o mesmo sofrimento ao responsável por essas políticas? É possível usar esse argumento de que “não se deve se igualar” a um genocida? Ou melhor: é possível “se igualar” a um genocida somente desejando mal a ele.

Em muitos casos, esse desejo é somente um “bem feito para ele”, sendo que “ele”, no caso, é um gestor que não só promoveu a morte como política pública, que não só vitimou seus entes queridos como ainda por cima tripudiou sobre eles, se burlou dos que morreram e dos que sofreram com a doença, dos que tiveram perdas de pessoas queridas. Bolsonaro riu do sofrimento alheio em transmissão ao vivo para todo o país, não uma, não duas, diversas vezes!

Também se trata, assim como no caso de Pinochet no Chile, de um sentimento de revolta amplificado pela impunidade, porque sua eventual morte pode significar que não será responsabilizado pelas suas políticas, e porque mesmo a sua sobrevivência não dá garantias de que ele pagará por seus feitos. A CPI da Covid caminha, mas as ameaças das Forças Armadas às instituições não dão garantias de que os resultados serão os esperados. Nem falar dos pedidos de impeachment, que estão travados no Congresso pelo Centrão bolsonarista regado a recursos públicos.

É muito bonito dizer que “quero o Bolsonaro vivo e condenado”. No começo dos Anos 2000, os chilenos também acreditaram no discurso da centro-esquerda de que “não vamos entregar o Pinochet para a Espanha porque vamos condenar ele em casa”. Tomara que seja assim, no caso do brasileiro.

Mas, ao se dizer isso, se estabelece um compromisso velado de que essa expectativa será cumprida. Que essa Justiça prometida vai acontecer. E se não acontecer, como não aconteceu no caso do Chile, ficará uma frustração que pode ter consequências muito grandes a médio ou longo prazo – entre os chilenos, isso se uniu a um acúmulo de frustrações que explodiram, todas juntas, em outubro de 2019.

Quem deseja ou pretende comemorar uma eventual morte do Bolsonaro é tão ser humano quanto qualquer outro, falível como qualquer outro, imperfeito como qualquer outro, incluindo os que se acham moralmente superiores por querê-lo vivo, mesmo admitindo que se trata de alguém que realizou uma política genocida.

O futuro do presidente está longe de depender de quem participa desse debate. De quem deseja o melhor ou o pior ao Bolsonaro. De quem acha normal torcer pela sua morte ou quem vê isso como algo repudiável.

Esse futuro está nas mãos dos médicos que o estão tratando, e dos políticos e dos militares que o apoiam – ou que eventualmente podem traí-lo. Para quem não faz parte de nenhum desses grupos, qualquer sentimento a respeito desse futuro é legítimo.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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