Vários jornais internacionais [1] trazem notícias [2] da empresa israelense de hacking NSO, que vende seu software de vigilância e espionagem a vários regimes. O software então é usado para “capturar” os telefones de inimigos do regime, opositores políticos ou jornalistas mal comportados.
Tudo isso já era sabido, mas a história tem novidades e várias centenas de pessoas que foram espionadas podem agora ser nomeadas.[3] Como isso aconteceu é bastante interessante:
Os telefones apareceram numa lista de mais de 50 mil números concentrados em países conhecidos por vigiar os próprios cidadãos e também conhecidos por terem sido clientes da empresa israelense NSO Group, líder mundial na crescente – e muito ralamente controlada por leis – indústria da espionagem industrial privada, como a investigação descobriu.
A lista não identifica quem pôs lá aqueles números; e não se sabe como aqueles telefones foram visados ou vigiados. Mas a análise forense dos 37 smartphones descobriu que muitos números mostram estreita correlação entre horários associados a um número da lista e o início da vigilância, em alguns casos de apenas poucos segundos.
Forbidden Stories [lit. “Histórias Proibidas”] jornal parisiense sem finalidade de lucro, e Anistia Internacional, grupo de direitos humanos, tiveram acesso à lista e partilharam-na com organizações jornalísticas, as quais aprofundaram a pesquisa e a análise dos dados. Security Lab, da Anistia Internacional, analisou tecnicamente os smartphones.
Na lista, os números não são identificados, mas repórteres, mediante pesquisa e entrevistas em quatro continentes, conseguiram identificar mais de 1.000 pessoas, em mais de 50 países.
Quem teria feito aquela lista e a quem Anistia Internacional e Forbidden Stories a teriam enviado?
NSO[4] é uma das empresas israelenses que “monetiza” o trabalho da unidade 8.200 de inteligência militar de Israel. ‘Ex-membros’ da unidade 8200 passaram-se para a NSO, para produzir ferramentas de espionagem que, na sequência, foram vendidas a governos estrangeiros. O preço da licença está entre $7-8 milhões, por 50 telefones a serem vigiados. É negócio sombrio, mas lucrativo para a empresa e para o estado de Israel.
NSO nega as acusações de que seu software seja usado para objetivos daninhos e argumenta com enormes quantidades de asneiras:
A matéria de Forbidden Stories está cheia de pressupostos errados e teorias não demonstradas que levantam sérias dúvidas sobre a confiabilidade e os interesses das fontes. É como se as “fontes não identificadas” tivessem dado informações sem qualquer base factual e distantes da realidade.
Depois de examinar suas alegações, negamos firmemente as acusações feitas naquela reportagem. As fontes forneceram informações sem base factual, como se evidencia pela falta de documentação de apoio a muitas das acusações. Na verdade, são acusaçõ es tão ofensivas e distantes da realidade, que NSO considera iniciar um processo por difamação.
A matéria, por exemplo, alega que o governo indiano do primeiro-ministro Narendra Modi usou o software da empresa NSO para espionar o líder do partido de oposição Rahul Gandhi.
Como NSO poderia desqualificar essa alegação? Não pode.
Adiante, na declaração, a empresa NSO contradiz-se, ela mesma:
Como NSO já declarou, nossa tecnologia não esteve associada, de modo algum, ao odioso assassinato de Jamal Khashoggi. Podemos confirmar que nossa tecnologia não foi usada para ouvir, monitorar, rastrear ou recolher informação sobre ele ou membros de sua família mencionados no inquérito. Já investigamos essa acusação a qual, outra vez, é feita sem qualquer validação.
Gostaríamos de enfatizar que NSO só vende suas tecnologias a agências de aplicação da lei e agências legais de inteligência de governos aprovados, para o único propósito de salvar vidas e impedir crimes e atos de terrorismo. NSO não opera o sistema e não tem visibilidade dos dados.
Assim sendo… como NSO poderia negar que o governo saudita, um de seus clientes, tenha usado o software em questão para espionar o depois assassinado Jamal Khashoggi, se ‘não opera o sistema’ nem tem ‘visibilidade dos dados’?
Não se pode afirmar ao mesmo tempo que (a) se tem conhecimento seguro; e que (b) não haveria como obter o tal conhecimento.
Mas voltemos à questão real:
- Quem teria capacidade para listar 50 mil números de telefone, em lista que inclui pelo menos 1.000 nomes de pessoas que eram espionadas com o software da empresa NSO?
- Quem poderia ‘vazar’ essa lista para uma ou outra ONG e garantir que vários veículos da mídia ‘ocidental’ saltassem sobre os nomes listados?
- Quem tem interesse em derrubar a empresa NSO ou, no mínimo, dificultar consideravelmente seus negócios?
Empresa concorrente, diria eu. E a única concorrente real nesse campo é a Agência de Segurança Nacional dos EUA [ing. USA National Security Agency].
Os EUA frequentemente usam ‘inteligência’ como uma espécie de moeda diplomática que mantém outros países atrelados aos norte-americanos e dependentes. Se os sauditas forem obrigados a pedir que os EUA espionem alguém, torna-se muito mais fácil ‘influenciar’ os sauditas. E a NSO israelense está atrapalhando esse negócio.
Há também o problema de que o software de primeira classe para espionagem que a israelense NSO está vendendo para clientes ‘obscuros’ pode muito facilmente cair em mãos de algum grande adversário dos EUA.
Reprodução/Olhar Digital
O ‘vazamento’ para Anistia Internacional e Forbidden Stories é, portanto, instrumento para manter controle monopolista sobre regimes-clientes e sobre a alta tecnologia de espionagem. (Os Panama Papers foram ‘vazamento’ similar, patrocinado pelos EUA, dirigido só ao campo financeiro.)
Edward Snowden, que foi funcionário e apoiador da NSA, mas vazou documentos porque queria que a agência não saísse do campo legal, está apoiando essa campanha:
Edward Snowden @Snowden – 16:28 UTC · Jul 18, 2021
Parem o que estão fazendo e leiam isso. Esse vazamento será a reportagem do ano: https://theguardian.com/world/2021/…
—
Edward Snowden @Snowden – 15:23 UTC · Jul 19, 2021
Há algumas indústrias, alguns setores, dos quais ninguém está protegido. Não se admite mercado comercial de armas atômicas. Se você quer proteger-se, você tem de mudar o jogo; e o modo que se muda o jogo é acabando com esse comércio.
Guardian: Edward Snowden diz que é preciso banir o comércio de spyware, no momento em que surgem revelações sobre o Pegasus
Snowden parece dizer que a empresa NSO, que vende seu software exclusivamente para governos, deve parar de fazer tal coisa, mas que a NSA deve continuar a usar esse instrumento de espionagem:
Falando em entrevista ao Guardian, Snowden disse que as descobertas do consórcio ilustram o modo como um malware comercial tornou possível, para regimes repressivos, pôr muito mais gente sob os mais invasivos tipos de vigilância.
Quanto a isso, a opinião de Snowden é um tanto estranha:
chinahand @chinahand – 17:28 UTC · Jul 19, 2021
fascinante o modo como Mr “EUA-estado-de-vigilância-é-a-maior-ameaça-à-humanidade” fica tão perturbado ou tão excitado quando uma fração da vigilância do estado é aparentemente ‘transferida’ para fornecedor privado, por atores estatais de médio e baixo escalão.
Edward Snowden @Snowden – 17:06 UTC · Jul 19, 2021
Leiam sobre funcionários de Biden, Trump e Obama que aceitaram dinheiro de sangue do grupo NSO para enterrar quaisquer esforços para cobrar/prestar contas [ing. accountability] – mesmo *depois* do envolvimento deles na morte e detenção de jornalistas e defensores de direitos humanos em todo o mundo!
Washington Post: Como negociadores do poder em Washington arrancaram vantagens das ambições do spyware do grupo NSO (ing.)
A agitação na mídia criada pela revelação de NSO já está tendo o efeito desejado:
Amazon Web Services (AWS) fechou infraestrutura e contas linkadas ao Grupo NSO, israelense, vendedor de programas de vigilância – disse a Amazon, em declaração.
O movimento é efeito da ação de um grupo de veículos de mídia e organizações de ativistas que publicaram nova pesquisa sobre o malware de NSO e números de telefone possivelmente selecionados para atingir governos clientes de NSO.
“Quando soubemos dessa atividade, agimos rapidamente para fechar infraestrutura e contas relevantes” – disse um porta-voz de AWS a Motherboard por e-mail.
Há anos a AWS sabe das atividades de NSO. NSO usa CloudFront, rede de distribuição de conteúdo que pertence à Amazon:
A infraestrutura de CloudFront foi usada na distribuição de malware do grupo NSO contra alvos, inclusive para o telefone de um advogado francês de direitos humanos, segundo relatório da Anistia Internacional. O movimento para CloudFront também, em certa medida, protege o Grupo NSO contra pesquisadores ou outros terceiros que tentem desenterrar a infraestrutura da companhia.
“Usar serviços de nuvem protege o Grupo NSO contra técnicas de escaneamento da Internet” — acrescentava o relatório de Anistia Internacional.
Aquela proteção já não é válida. O Grupo NSO terá muitos problemas para substituir serviço tão conveniente.
Israel protestará, mas tenho a impressão de que os EUA decidiram derrubar o Grupo NSO.
No que diga respeito a mim e a você, o risco de sermos espionados diminui. Mas bem pouco, só marginalmente.*******
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[1] O assunto é matéria no Guardian, aqui [NTs].
[2] No Brasil, o “Jornal Hoje” (17/7/2021), da Rede Globo, falou (em 56:42) desse evento, mas sem qualquer referência a “empresa israelense”, nem a “vigiar” todo o mundo, nem a o governo Bolsonaro ter tentado comprar o tal “Pegasus”, coisa de espionagem da braba, jornalismo ruim e notícia zero! [NTs]
[3] O blog Diário do Centro do Mundo apresentou excelente fala do prof. Sérgio Amadeu, especialista no assunto, muito oportuna, sobre o ‘caso Pegasus’ (aqui).
[4] NSO Group Technologies, fundada em 2010 (NSO é sigla formada pelas iniciais dos três fundadores Niv, Shalev e Omri), é empresa israelense de tecnologia proprietária do programa spyware Pegasus, que permite a vigilância remota de smartphones [NTs].
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