“Há uma fenda, uma fenda em tudo. É assim que a luz entra”, é um fragmento da canção Anthem, de Leonard Cohen, e no amanhecer de uma época política e social que promete ser uma das mais escuras da história moderna dos Estados Unidos, as fissuras são essenciais para iluminar, ainda que um pouco, este anoitecer estadunidense.
E diante do convite desta última eleição para que o mais feio e bárbaro venha à tona, é necessário um antídoto imediato. Os adultos prestes a assumir as rédeas deste país estão dedicados a assustar crianças e prejudicar os mais vulneráveis. Propõem realizar batidas policiais e separar famílias imigrantes, perseguir seus opositores políticos, anular os direitos básicos das mulheres e minorias, reduzir a já escassa assistência pública, privatizar a educação, proibir livros, reverter regulamentações e medidas de proteção à saúde pública e ao meio ambiente, e a lista continua.
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Um antídoto inicial, embora não possa curar de imediato essa infecção do mal na vida política e social estadunidense, é a beleza e o convite a tudo que há de mais nobre. Não é a resposta mais eficiente, nem a mais pragmática, nem pode deter balas, bombas ou crimes de ódio, mas é a lembrança instantânea do que deve ser e merece ser defendido, o que resgata a consciência do ser humano e do que significa ser humano.
Studs Terkel, o lendário entrevistador, conta que, logo após a Segunda Guerra Mundial, em meio à devastação da Alemanha e da Áustria, com pessoas saindo dos escombros e passando meses sem alimento suficiente, uma das coisas mais importantes foi reunir os músicos sobreviventes e tocar, o mais rápido possível, tanto para eles mesmos quanto para aqueles que viveram o pesadelo coletivo de anos, a música de Mozart. O pão era o mais urgente, mas também a beleza.
“Pão para todos, e rosas também”
Na histórica greve têxtil de Lawrence, Massachusetts, surgiu um lema e uma canção que resumiam as demandas das trabalhadoras – quase todas imigrantes – e que eram compreendidas em todos os idiomas: “Pão para todos, e rosas também”.
Em um dos maiores atos de desafio contra os invasores que ocuparam os Estados Unidos sem permissão dos nativos, em Wounded Knee, Dakota do Sul, em 1890, centenas de indígenas sioux, fartos da opressão dos colonizadores estadunidenses – que incluía a proibição de seus rituais e expressões culturais –, enfrentaram as tropas federais sem armas e começaram a dançar. Essa dança foi percebida como um ato tão perigoso que eles foram massacrados.
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We Shall Overcome, o hino do grande movimento pelos direitos civis liderado por afro-americanos nos anos 50 e 60, foi difundido por Pete Seeger e Guy Carawan nas montanhas do Tennessee, na escola de educação e capacitação popular Highlander Center, onde foi ouvido pelo reverendo Martin Luther King Jr. A canção tornou-se parte da trilha sonora das lutas sociais deste e de outros países.
Em 1999, o primeiro dia da cúpula da Organização Mundial do Comércio em Seattle teve que ser cancelado, enquanto ministros de todo o mundo e o próprio anfitrião, o presidente Bill Clinton, decidiram não sair de seus hotéis para comparecer ao centro de convenções. A ameaça eram milhares de manifestantes antineoliberais que ocuparam pacificamente todas as vias que levavam ao centro de convenções com danças em massa. Em cada esquina, a música foi escolhida, variando de rap e reggae a rock & roll e outros estilos.
A resistência à injustiça, a insistência na dignidade e o repúdio ao desumano, assim como o ato de continuar cantando, dançando, desenhando e atuando, apesar de tudo, estão profundamente enraizados em cada país, inclusive neste. Aqui, isso se expressa no blues, no jazz, no tap, no gospel e no rock, no folk, no hip hop, nos murais e na arte gráfica, nos presentes que cada onda de imigrantes traz para enriquecer este país. Todas essas luzes são o antídoto e passarão pelas fendas, mais uma vez.
Bônus musical
Leonard Cohen | Anthem
La Jornada, especial para Diálogos do Sul Global – Direitos reservados.