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Prática punitiva, de crime e extermínio, não foi exclusiva do Peru, tenso sida aplicada também em países como Chile, Brasil, Uruguai, Argentina e Bolívia (Foto: Congresso do Peru / Facebook)

Avança no Peru “Lei de Anistia” para transformar militares assassinos em heróis nacionais

Saques, incêndios e massacres compõem o histórico de atuação das Forças Armadas e Policiais durante o chamado “conflito interno” no Peru, entre 1980 e 2000

Gustavo Espinoza M.
Diálogos do Sul Global
Lima

Tradução:

Beatriz Cannabrava

Com 15 votos a favor e 6 contra, a Comissão de Constituição do Congresso da República do Peru aprovou uma presumida “Lei de Anistia”, ratificada com uma pressa assombrosa pelo Pleno do Legislativo, em favor de integrantes das Forças Armadas e Policiais envolvidos na autoria de delitos vinculados à violação de direitos humanos e outros, no chamado período do “conflito interno”. Certamente votaram a favor do projeto os parlamentares de Força Popular e os grupos mais reacionários que apoiam o regime atual.

Em torno do tema, têm-se tentado cunhar dois conceitos equivocados. O primeiro pretende assegurar que se trata de “comandos” policiais ou militares que atuaram “combatendo o terrorismo e a subversão”.

Tal afirmação é falsa e busca transformar em “esforçados lutadores” aqueles que, nos anos da violência, atacaram, saquearam, roubaram e incendiaram aldeias, violaram e mataram pessoas impunemente. No calor desses delitos, apoderaram-se de bens que encontraram nos povoados ou que arrebataram de vítimas submetidas a práticas cruéis, desumanas e degradantes.

Não foram heróis, portanto, mas carrascos, quando não ladrões e assassinos, vestidos com os uniformes que o Estado lhes havia confiado. Em sua defesa, puderam argumentar – não sem fundamento – que os enviaram “à frente” precisamente para isso: para cometer crimes com o objetivo de escarmentar ou exterminar populações.

Foi esse o caso dos que atacaram Accomarca, Umaro, Bellavista e Llocllapampa em 1986, sob o comando das Brigadas “Lince”, operadas sob a condução direta de Thelmo Hurtado. Ainda se recorda que eles trancaram crianças e mulheres em uma casa rural e atearam fogo até queimá-los vivos, para depois lançar granadas de guerra para exterminar seus corpos.

Os autores do fato, interrogados na época por congressistas da República – entre eles o senador Javier Valle Riestra – asseguraram que agiram em cumprimento de “ordens superiores” e que assassinaram crianças de três e quatro anos para evitar que “crescessem terroristas”.

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Na ocasião, a Justiça Militar “condenou” Hurtado a “8 dias de rigor” por “excesso no cumprimento de sua função”. Embora essa sanção tenha sido posteriormente modificada, a instituição castrense nunca o deixou sem apoio. Fez de tudo para protegê-lo, enviando-o inclusive para os Estados Unidos para evadir a justiça. Além disso, foi promovendo-o para que “não fosse prejudicado”.

Não foi, certamente, o único caso. Houve dezenas de massacres semelhantes em todo o território nacional. Poderiam ser lembrados casos específicos, como Santa Rosa, Putis, Pomatambo, Cayara, Parcco Alto, Chucchi; e também a matança dos penitenciários, ocorrida em junho de 1986 – há 39 anos – e que deixou como saldo 300 mortos entre o CRAS de San Pedro e a Colônia Penal de El Frontón, bombardeada pela Marinha de Guerra.

Seria preciso escavar os terrenos de quartéis como Los Cabitos de Ayacucho, ou bases como a do Estádio Municipal de Huanta, ou outras situadas em Ayacucho, Huancavelica, Apurímac ou Cusco, onde, com toda probabilidade, serão encontrados restos humanos, para se conhecer a real magnitude dos delitos em questão.

Além disso, cabe recordar a atuação dos Esquadrões da Morte, como o Grupo Colina, que exterminou cerca de 60 pessoas em distintas regiões do país, desde La Cantuta até Pativilca, passando por Barrios Altos. Para eles, o governo de Fujimori também, em seu momento, tentou criar uma “anistia”, que não prosperou justamente pela mesma crítica internacional que agora se levantará contra a que se pretende impor hoje.

Comissão de Constituição do Congresso da República do Peru aprovou “Lei de Anistia” por 15 votos a 6 (Foto: Congresso do Peru / Flickr)

Pelo teor do projeto sancionado pela Comissão Parlamentar, os autores desses crimes não apenas seriam eximidos de responsabilidade legal, mas também ficariam, perante a história, como “combatentes que lutaram pela pacificação do país”, como heróis temporariamente incompreendidos e sacrificados.

Mas há um segundo “argumento” que tem sido usado para justificar a disposição em questão: afirma-se que “o tempo já passou” e que estes fatos nunca foram julgados. Fazê-lo agora seria “inoportuno”.

Admitindo que, de fato, passaram-se muitos anos desde esses crimes, cabe se perguntar a razão de tal demora. A culpa, certamente, não foi das vítimas. Tampouco dos familiares delas, que denunciaram os fatos e clamaram por justiça. Além do obsoleto sistema de justiça – responsabilidade da classe dominante –, é preciso destacar que, durante todos esses anos, os autores desses delitos foram protegidos pelas instituições policiais e militares, que se esmeraram em dilatar os procedimentos e tornar ainda mais lenta a ação da justiça.

Em alguns casos, os mantiveram como “fugitivos” e, em outros, ajudaram-nos até mesmo a sair do país para escapar da lei. O caso do “comandante Camión” foi emblemático nesse sentido. Ademais, os responsáveis por capturá-los e colocá-los “à disposição” tampouco o fizeram, de modo que puderam viver sem incômodos por muitos anos. Não têm, então, qualquer autoridade para alegar a questão do “tempo transcorrido”.

Cabe sublinhar que essa prática punitiva, de crime e extermínio, não foi exclusiva do Peru. Aplicou-se em outros países, como Chile, Brasil, Uruguai, Argentina e Bolívia. Fez parte de uma espécie de “escola de guerra” ditada pelo Império para intimidar os povos e acabar com a resistência às políticas opressoras da classe dominante.

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Como ocorreu antes, é previsível que tanto no país quanto além de nossas fronteiras se levante agora um sólido movimento de protesto, rejeição e resistência a uma disposição como a que se pretende impor no país. O fato é que, em todas as partes, cresce a convicção de que esses crimes não podem ser esquecidos. Também é forte a ideia de que não prescrevem com o passar do tempo.

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Ademais, as convenções internacionais que regulam os Direitos Humanos no mundo já estabeleceram que não são admissíveis disposições ou leis que concedam anistia, indulto ou outros benefícios similares aos responsáveis por esses crimes, os quais podem ser objeto de condenação por qualquer tribunal, independentemente do tempo transcorrido. Em outras palavras: os julgamentos permanecerão abertos em todos os lugares e as ações que deles derivarem não prescreverão em nenhuma circunstância.

Além disso, no que diz respeito ao Peru, esses tratados, assinados pelo Estado peruano, têm força de lei e peso decisivo, dado que foram incorporados como mandamento da própria Constituição. O chamado “controle difuso”, que opera sobre a ação da justiça, permitirá aos juízes eludir essa irritante disposição.

Não basta, então, que isso seja dito por uma comissão ou um plenário para que se imponha. O sangue – dizem os ingleses – é mais denso que a água. Não desaparece facilmente.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

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