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Sete tiros não matam um velho jornalista

Revista Diálogos do Sul

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No início de maio de 2011, sem uma queixa, o jornalista boliviano Ted Córdoba-Claure anunciou que se preparava para morrer a qualquer momento, desgastado, mais que pelos anos, pelas feridas que recebeu em 1971 no episódio que conta nesta crônica.

Ted Córdoba-Claure*

Ted Córdoba Claure foi um dos mais brilhantes reconhecidos jornalistas latino-americanos das últimas décadas. Ted Córdoba Claure foi um dos mais brilhantes reconhecidos jornalistas latino-americanos das últimas décadas.

“Abaixo o Comunismo!… Viva a Virgem  Maria…. Caralho!” Do meu leito no terceiro andar da clínica Boston de La Paz, escutava essas vozes alcoolizadas. Depois, o guinchado de carros en disparada. Logo se saberia que se tratava de bandos paramilitares que vieram de Santa Cruz que estavam deixando os seus feridos nos combates esporádicos.

Houve 500 mortos nesta noite de agosto de 1971, quando um grupo de militares descontentes, ambiciosos e facilmente manipuláveis, característica fundamental dos militares de republiquetas pobres das Américas, Central e do Sul, e particularmente de Bolívia, onde os militares historicamente perderam todas as guerras pátrias e ganharam todos os massacres na trágica história dessa pobre nação que, não obstante, já há século e meio palpita no coração da América do Sul.

Em 21 de agosto, a maioria dos mortos eram soldados rasos e civis desconhecidos, ingenuamente voluntariosos. Membros do governo de Juan José Torres esperavam que se o regimento presidencial Colorados, comandado pelo leal major Sánchez, se deslocaria em direção ao quartel de Miraflores, esmagaria os insurgentes ali acantonados.

Porém isso jamais ocorreu às 8 da noite, em meio a intenso tiroteio, aproximei-me imprudentemente do Palácio Quemado, o palácio do governo na Bolívia -jamais um nome foi tão bem escolhido. Porém, o então chefe da segurança, o capitão Luis Osinaga, na porta me informou que o general Torres tinha ido para a embaixada do Peru com todos seus colaboradores e enfatizou essas palavras com um percebível sentido irônico, “foram procurar asilo”.

“Eu estou aqui para entregar o palácio aos blindados do regimento Tarapacá que já estão a caminho. Vai embora, senhor Córdova” , gritou. E eu, mais que obediente, manobrei o jipe Wyllis Commander e dei meia volta na praça Murillo. Justo nesse momento, pela colindante rua do Comércio, iluminavam os refletores dos brindados fabricados no Brasil, que aceleravam seus motores em rápida corrida em direção ao palácio, sem encontrar resistência para consumar outro golpe militar, o golpe de número cento e tantos, ou seja, cento e tantas traições – porque não há conspiração sem traição- na postergada Bolívia cuja história, por isso mesmo, é uma história de traidores.

Tanquetas do setor golpista do exército patrulha as ruas de La Paz durante o Golpe de 1971 Tanquetas do setor golpista do exército patrulha as ruas de La Paz durante o Golpe de 1971

E, o que eu estava fazendo ali? Era o diretor da Televisão Boliviana e também do jornal do governo, El Nacional. Porém que valeu nesse momento não foi tanto minha condição de funcionário do governo que estava caindo estrepitosamente, mas sim minha maldita adição por notícia. Era uma confirmação, como diziam os velhos jornalistas, que nas veias não corria sangue, corria tinta de impressão. Fora de meus trabalhos como jornalista governista, nessa época também era correspondente de meios de outros países, de maneira que meu instinto me orientava a averiguar o que estava ocorrendo, enquanto ruminava sobre como escrever essa história. Porém tinha que me livrar do jipe, muito conhecido como veículo do governo, portanto um alvo fácil para os bandos de jovens assaltantes da Falange e outros grupinhos paramilitares que abundavam nas Bolívia como patética expressão do subdesenvolvimento político do país e da mentalidade invejosa e traiçoeira de seus protagonistas na luta pelo poder… Além disso precisa encontrar um lugar seguro para estabelecer minha base de operações.

De repente, em uma rua muito escura, bem em frente de uma curiosa casa do grande pintor Guzmán de Rojas, que se suicidara um ano antes, soou o ratatata de uma metralhadora. Sempre me perguntam o que se sente quando as balas impactam no corpo da gente. Não é uma grande dor, estridente. Sente-se -pelo menos com o calibre que meu coube-, como se a gente estivesse sendo picado por muitas agulhas quentes…. Era o que eu sentia no braço direito e nas pernas, de modo que instintivamente me agachei e me encolhi como um ovo, embaixo do volante. Uma segunda rajada raspou minhas costas. Se estive erguido teria me atravessado o peito na altura do coração.

Estendido no banco, vi como um garoto abria a porta e me iluminava a cara. “Mas sim é o diretor da televisão!”, gritou nesse momento. E escutei outro grito, de foz familiar que vinha correndo para comprovar e gritava: “Teddy, irmãozinho, isto te ocorre por ser comunista! Comunista!”.

Era um “amigo” de infância, Fernando Monrroy, aliás “el mosca”, que fez fama como guarda-costa de políticos falangistas e, portanto, integrante dos bandos de bandoleiros. Efetivamente, nos conhecíamos desde a infância e, desde muito jovem “el mosca” mostrava afeição pelas armas e inclinação pela violência. Era um bandoleiro inato, que quando ficava nervoso chutava portas e paredes para descarregar sua raiva. Esta noite andava buscando assaltar as casas de políticos caídos para saquear os bens e cobrar botins, processo típico nos golpes militares bolivianos. Atrás do assalto ao poder, chegavam os seguidores e guarda-costas procurando um botim ou algum benefício; ou também liquidar com algum inimigo impunemente. Anos depois, “el mosca” foi colocado sob a mira da embaixada estadunidense quando descobriram um complô para assassinar o embaixador Edwin Corry, e outra vez se envolveu com um bando de narcotraficantes de Santa Cruz. Até que um dia apareceu seu cadáver. Disseram que tinha sido morto por um tiro ao jogar roleta russa, só que o corpo tinha uns 40 projeteis…

Nesta noite de 21 de agosto de 1971 não podia ficar tranquilo com uma sensacional notícia debaixo de meu nariz e não enviar para onde eu sabia que esperavam saber das coisas por mim. Por exemplo, a revista Panorama de Buenos Aires, que só conseguiu publicar uma breve nota do irresponsável jornalista Augusto Montesinos, em que informava que eu estava morto. Ou o prestigiado semanário Marcha de Uruguai. Foi enquanto matutava sobre as formas de escrever essa história que cheguei ao momento  da crise. De toda maneira, com apoio do próprio “mosca” e suponho que me ajudou como um gesto de arrependimento, pude chegar até uma casa nos arredores. Quem abriu a porta foi um cavalheiro de origem alemã que me fez sentar numa poltrona, praticamente arrastado de cabeça pra baixo, e ai notei que gotas de meu sangue caiam sobre um elegante tapete. Dessa casa pude entrar em contato com José Montero, gerente do El Nacional de La Paz, que veio me buscar numa ambulância. Dali para a clínica Boston.

A gritaria alcoolizada invocando a Virgem Maria e amaldiçoando o comunismo se repetia madrugada adentro. Na manhã ainda se escutava muitos tiros, mas, mesmo assim, varias pessoas chegaram à clinica para me visitar. Eu sentia um alívio extraordinário  que me elevou pelas nuvens, não pelas santíssimas evocações dos bandoleiros bêbados vindos de outras cidades para fazer o trabalho sujo, mas por uma explicação que me deu o valente médico que me extraiu seis balas – ainda tenho outra no glúteo, que envolta em uma cápsula defensiva de minha própria matéria interna, seguramente ficará ai até que eu morra. “Apliquei um pouco de morfina para tirar as balas”, disse o dr Ossio, para mim o insólito anjo da guarda naquele momento. “Amanhã vai sentir um pouco de dor, mas teve muita sorte. Não tem nenhum órgão vital afetado. É forte e se vê que alguém te protege lá de cima”, terminou o discurso tranquilizador do médico. E em meu petulante agnosticismo fiz uma concessão e pela primeira vez, acreditei em Deus.

Meu caro não é somente um incidente isolado e pessoal, mas um bom exemplo, com sorte da luta que temos travado os jornalistas na América Latina, para o bem de nossos países, por nosso continente.

Ainda se escutavam disparos isolados e, inclusive, alternadamente, ráfagas de metralhadora. Era fins de agosto de 1971 e eu tinha caído com sete tiros. Felizmente, parodiando um corrido mexicano dos tempos de Pancho Villa, “Foram sete tiros… porém nenhum foi mortal”. Foi o golpe militar que derrubou o governo populista do general Juan José Torres e instalou a ditadura neo fascista do coronel Hugo Banzer, que se sentou na cadeira presidencial como resultado de uma ridícula disputa pelo poder entre vários generais e coronéis que até um dia antes eram de uma comovedora subserviência com o Presidente, um homem de feições de bondoso, fartas sobrancelhas e fartos bigodes que contrastavam com seu sorriso piegas. “O novo Tito” qualificavam em alguns meios da Europa, exagerando desproporcionalidade a comparação histórica com o propósito unicamente de valorizar a cobertura do caso boliviano, para justifica uma viagem tão longa até o Altiplano.

O drama boliviano tinha outras facetas típicas da história surreal de uma república inventada ao calor do entusiasmo pela vitória dos exércitos do libertador venezuelano Simón Bolívar pela sequência de batalhas vitoriosas contra os exércitos da longínqua Espanha estupidamente colonialista.

Como tem se repetido na historia sul-americana, a maioria do conspiradores eram traidores por natureza e se consideravam presidenciáveis. Assim surgiram os Juan Perón, os Marcos Pérez, os Augusto Pinochet  o próprio Banzer. Eles se consideravam presidenciáveis. Finalmente, naquela noite, vencida a escassa resistência do governo populista, o coronel Banzer foi imposto pelos dois partidos que estavam confabulando, a Falange Socialista e o Movimento Nacionalista Revolucionário.

Alguns desses dirigentes muito vivos, acreditavam que poderiam manipular o pequeno coronel, mas ele governou sete anos e não necessitou ser manipulado para satisfazer os interesses desses partidos e de seus amigos. Entre os militares que então disputavam já ninguém se lembra. Afinal  foram acidentes passageiros na história boliviana. Dois deles, Selich e Zenteno Anaya morreram assassinados durante o período ditatorial de Banzer. Logo Banzer fundou um partido político e foi assimilando a democracia. É um presidente civil, mas ainda lhe rondam fantasmas desse nefasto período do século vinte da história sul-americana, tempos de assassinatos, torturas e desaparecimentos, tempo que deixou feridas que não cicatrizam e que equivale a um peso na consciência de povos e homens a persegui-los até que se faça justiça.

O caso típico é o de Pinochet, um peso na consciência também para posteriores mandatários civis e democráticos no Chile por ter permitido que se passasse por cima o lema de “não haverá perdão nem esquecimento…” Mas, há os que continuam invocando esse chamado e isso certifica que a impunidade realmente não cicatriza os infames episódios da história. Por isso até o Papa e o presidente da nação mais poderosa andam pedindo desculpas por erros do passado. Todos sabem que enquanto não se fizer justiça, dificilmente ocorrerá uma renovação, seja na vida dos povos como de indivíduos. Repito que sempre me perguntei o que sente alguém quando recebe os impactos de tiros. Não desejo polemizar, pois em nosso tempo já são muitos os jornalista que passaram por experiências parecidas e os tiros sempre doem igual. A verdadeira dor vem depois, quando ficam os ossos quebrados ou o tecido muscular destroçado, ou as vísceras perfuradas.

Durante anos encarei essa experiência como um conto em minha acidentada vida de jornalista em 50 anos. Porém, nos últimos tempos e na medida em que se consolida a advocacia em todo o continente, e se revisam os expedientes dos mais poderosos ditadores, como o caso de Pinochet, e se faz justiça neste mundo global, me dei conta de que meu caso não era somente um incidente isolado e pessoal, mas um bom exemplo, com sorte, da luta que temos travado os jornalista na América Latina pelo bem de nossos países, por nosso continente e, em última instância mas não menos importante, no marco de um esforço por consolidar um mundo global que já não admite injustiças nem impunidade dos que atentaram contra os direitos humanos.

*Original de 80Grados, de Puerto Rico

http://www.80grados.net/siete-balazos-no-matan-un-viejo-periodista/

Luis Eduardo “Ted” Cordova Claure, boliviano de nascimento (1931), sempre se apresentou como “jornalista latino-americano” e era uma especialista nessa realidade. No início dos anos 1970, radicado no Chile, cobriu para “La Opinión de Buenos Aires”o processo político conduzido pelo presidente socialista Salvador Allende até sua derruba em setembro de 1973 por Augusto Pinochet.

Foi editor de internacional nesse diário até 1974 quando foi ameaçado de morte pela Triple A e teve que emigrar para Venezuela onde trabalhou no El Nacional e El Diario de Caracas até meados dos anos 1990. Pioneiro no uso de computadores quando se tratava de um artefato estranho para a maioria de seus colegas, tinha estudado jornalismo na Universidade do Chile em fins dos anos 1950 quando teve seu primeiro emprego como correspondente de Prensa Latina.

Voltou a Bolívia para dirigir a Televisão pública durante governo do general Juan José Torres até sua derrubada em 1971 e sobreviveu a um atentado criminoso e foi levado por seus amigos ao Chile para tratamento.

O general Torres teve menos sorte que ele porque em 1976 foi assassinado no exílio de Buenos Aires tendo sido uma das primeiras vítimas relevantes da Operação Condor. De Caracas Ted regressou a Bolívia onde viveu quase que toda a década de 1990, onde dirigiu simultaneamente dois jornais “Ultima Hora” e “La 5a”, e escrevia colunas em La Razon, Los Tiempos e El Mundo e foi consultor da União Europeia.

Falava inglês, italiano, prosigues, francês e claro, suas línguas nativas, o espanhol e o quechua.

No dia 3 de maio de 2011 sentou pela última vez em sua maquina para despedir-se e anunciou “é certo que antes de sentar-me no computador tomei um trago de William Evans, respeitável bourbon de Kentucky que justamente serve para viagens longas, possivelmente sem retorno”.

Nota publicada e El Arca Digital, de Buenos Aires.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
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