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ToggleTrinta anos atrás uma grande “corrida do ouro” tomava conta do território yanomami causando degradação social e ambiental, situação que arrefeceu após a demarcação da Terra Indígena Yanomami em 1992. Hoje, sob o governo Bolsonaro, a invasão garimpeira volta a assombrar o destino dos Yanomami e Ye’kwana, assumindo proporções inimagináveis. Mesmo repaginado, com novas estruturas e formas de atuação, o garimpo segue deixando rastros de morte pela floresta, especialmente agora com a Covid-19.
“Nós convivemos com vários problemas antigos aqui na Terra Indígena Yanomami, como os invasores que prejudicam a vida do nosso povo. São mais de trinta anos de garimpo ilegal! Vivemos o massacre do Haximu, mortes, assassinatos e ameaças constantes a nossos parentes, doenças e a destruição de nossa floresta. Esses problemas são antigos e continuam. Os garimpeiros estão cada vez mais dentro do nosso território. É uma perturbação muito grande. Esses invasores ameaçam nossas famílias, nossa floresta, os animais, a biodiversidade, poluem o ar e contaminam nossos rios.”
Dário Vitório Kopenawa Yanomami
Em outubro de 2020, em meio à grave crise na Terra Indígena Yanomami (TIY) com a pandemia do novo coronavírus e o aumento desenfreado do garimpo, o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, Dário Vitório Kopenawa Yanomami, de 37 anos, revisitava memórias de infância, como no relato acima. Ainda era criança quando testemunhou a invasão de seu território por cerca de 40 mil garimpeiros e viu seu pai, Davi Kopenawa, junto a outras lideranças indígenas e apoiadores da causa yanomami, travar uma incansável batalha contra garimpeiros, empresários e políticos pró-garimpo. Uma luta que resultou na demarcação da Terra Indígena Yanomami em 1992, a maior terra indígena no Brasil, com mais de 9 milhões de hectares, localizada nos estados do Amazonas e Roraima.
Os anos seguintes à demarcação foram marcados por melhorias significativas na qualidade de vida dos Yanomami e dos Ye’kwana, outro grupo indígena que habita a TIY. A presença de garimpeiros se tornou mais branda e discreta, e nessa época foram criados os programas de saúde e educação específicos para os indígenas. A situação sanitária melhorou, a malária foi erradicada e, embora a presença do Estado apresentasse ainda diversos problemas, a população indígena retomou o crescimento. Atualmente, os Yanomami e Ye’kwana no Brasil somam aproximadamente 30 mil pessoas, vivendo em mais de 360 aldeias, incluindo grupos yanomami em isolamento voluntário.[1]
No entanto, quase trinta anos depois desta vitoriosa batalha, a história se repete tragicamente, como um pesadelo. Hoje, já adultos, Dário e outras jovens lideranças seguem os passos da geração anterior e assumem a luta que seus pais estão travando há décadas. Diferentemente do passado, a população da TIY organiza-se em sete associações, interligadas através de um sistema próprio de radiofonia que permite a comunicação entre as aldeias e as cidades mais próximas, ampliando o acesso à informação. Essa nova geração Yanomami e Ye’kwana utiliza as redes sociais como espaço de denúncias, ecoando suas vozes e mobilizando uma rede de apoiadores e defensores dos povos indígenas e da Floresta Amazônica. Conectados aos celulares e sempre em contato com seus parentes nas aldeias, criam novas estratégias para vencer uma guerra antiga: sonham com a expulsão dos garimpeiros de sua terra para que possam voltar a viver em paz e com saúde.
Crédito: Ana Maria A. Machado, 2007
Dário Kopenewa Yanomami, uma das novas lideranças yanomami. Ajarani, Terra Indígena Yanomami
A legalidade desprezada: um presidente pró-garimpo
Jair Bolsonaro nunca escondeu suas intenções em enfraquecer a legislação ambiental e indigenista e viabilizar a exploração mineral em Terras Indígenas (TIs). Sempre mostrou-se simpático aos garimpeiros e um crítico ferrenho ao ambientalismo. Esta história tem raízes profundas na vida do presidente: seu pai foi um dos milhares de garimpeiros que tomaram conta de Serra Pelada (PA) na década de 1980.
Durante sua campanha, o atual presidente prometeu legalizar a mineração e o garimpo em Terras Indígenas. Como era de se esperar, sua vitória nas urnas em 2018 foi interpretada por milhares de garimpeiros como uma autorização para invadir a Terra Indígena Yanomami. Esse incentivo ficou evidente, tanto para os indígenas – que observaram um aumento significativo do tráfego aéreo e fluvial em seu território, com balsas e aeronaves alimentando as zonas de garimpo – quanto para quem monitora a floresta por meio de imagens de satélites. Segundo o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Imazon, no período de agosto de 2019 a julho de 2020, início do governo Bolsonaro, a TIY esteve entre as dez áreas protegidas mais pressionadas por desmatamento na Amazônia Legal. E, nos meses seguintes, entre agosto e setembro de 2020, a terra indígena se manteve entre as áreas com os maiores índices de desmatamento do país.
Além do garimpo ilegal, a TIY é também um dos territórios indígenas mais cobiçados por empresas de mineração, que aguardam a regulamentação da atividade para iniciar a exploração nessas áreas. Atualmente, são mais de 534 requerimentos de pesquisa para exploração mineral somente na TIY. Seguindo sua promessa de campanha, em fevereiro de 2020, Bolsonaro assinou o Projeto de Lei 191/2020, que visa regulamentar a exploração de recursos minerais, definindo “condições específicas para a pesquisa e lavra de recursos minerais, inclusive a lavra garimpeira e petróleo e gás, e geração de energia hidrelétrica em terras indígenas”. O PL 191/2020 reverbera o PL 1610/1996, de autoria do ex-senador por Roraima, Romero Jucá, outro político que por décadas buscou autorizar a exploração mineral em TIs. Há três décadas, no auge da invasão garimpeira no território yanomami, Jucá presidia a Fundação Nacional do Índio (Funai) e, como aliado dos garimpeiros, não mediu esforços para propor uma demarcação descontínua da TIY em dezenove pequenas “ilhas”, cercadas por zonas de exploração econômica.
Desde a posse do novo presidente, também houve um sistemático desmonte de órgãos indigenistas e de fiscalização ambiental, evidenciado pela diminuição drástica de seus orçamentos, pela queda no número de autuações ambientais e nos recordes de desmatamento e queimada na Amazônia e Pantanal. Nos últimos dois anos, o Exército, em conjunto com a Funai e a Polícia Federal (PF), realizou algumas operações de combate ao garimpo ilegal na TIY e a PF avançou nas investigações sobre os financiadores da cadeia do ouro, mas os resultados da fiscalização e a punição aos infratores ficaram muito aquém de um controle efetivo das invasões. Com a falta de ações coordenadas entre os diversos órgãos responsáveis pela investigação, a impunidade dos financiadores dessa atividade ilegal e a ausência de ações eficazes para a proteção territorial, as máquinas do garimpo seguem a todo vapor na TIY e em todo o Brasil, especialmente, nas terras indígenas.
Desta maneira, mesmo com a explosão da pandemia no país, o número de garimpeiros na TIY não parou de crescer e eles se tornaram um dos principais vetores da disseminação da Covid-19. O governo brasileiro, sem planos e ações efetivas para a retirada dos invasores e o controle deste fluxo ilegal de pessoas, escancarou a sua omissão. A TIY, demarcada e homologada, transformou-se, em plena pandemia, em um território de livre circulação de garimpeiros, uma multidão de transmissores de doenças infecciosas. Hoje, essa tragédia ganha proporções alarmantes: de 07 de abril de 2020 a 31 de janeiro de 2021, já foram confirmados 1641 casos de Covid-19 e 30 óbitos, entre suspeitos e confirmados[2]. Os povos Yanomami e Ye’kwana, imersos em uma combinação perigosa entre garimpo, malária e Covid-19, estão entregues à própria sorte.
A invasão garimpeira em perspectiva
O auge da primeira corrida pelo ouro na TIY se deu entre o final dos anos 1980 e o início de 1990, quando foi estimada a presença de 40 mil garimpeiros no território. Na época, foram registrados aproximadamente cem garimpos ativos, com trezentas a quinhentas máquinas trabalhando diariamente, oitenta pistas de pouso e trezentos aviões voando a serviço da atividade.[3] Nesse período, o aeroporto de Boa Vista passou a ser o mais movimentado do Brasil.
Os efeitos ecológicos, sociais e epidemiológicos de uma invasão nessas proporções foram devastadores. Os garimpeiros levaram para os Yanomami o que tinham de pior: violência, malária, gripe, doenças sexualmente transmissíveis e tuberculose, causando uma desestruturação tanto sanitária como social nas comunidades. Várias aldeias que até então tinham pouco contato com os não indígenas, frente à invasão massiva de seu território, viram o caos se instalar: mulheres indígenas foram prostituídas e abusadas sexualmente, cresceu o consumo de bebidas alcoólicas e a tensão entre indígenas e garimpeiros aumentou, assim como os conflitos entre os próprios Yanomami. Segundo o Ministério da Saúde, de meados de 1987 a janeiro de 1990, cerca de mil indígenas, ou seja, 14% da população yanomami em Roraima morreu em decorrência de doenças associadas à invasão garimpeira.[4] Da mesma forma, a destruição do leito dos rios e a sua contaminação por mercúrio, óleo diesel e outros resíduos causaram danos significativos aos ecossistemas locais, impossibilitando os indígenas de usufruir de recursos imprescindíveis a seus modos de vida. Para se ter uma ideia da magnitude desse impacto, nas regiões do Papiu e Surucucus (RR), zonas fortemente afetadas pelo garimpo, as comunidades yanomami chegaram a ter 91% de seus habitantes infectados pela malária e 70% da população atingida por infecções respiratórias.
Em visita à região do Papiu, em 1989, o ex-senador Severo Gomes relatou o caos instalado: “Paapiú [sic] parece um cenário da Guerra do Vietnã. De cinco em cinco minutos um avião pousa e decola. Os helicópteros rondam sobre o pano de fundo da selva – trezentos gramas de ouro por hora de voo [sic]. Dali sai uma riqueza de difícil mensuração, e que segue pelos descaminhos da fronteira, deixando atrás a morte da natureza e dos homens […]. Doença, desnutrição, mortalidade infantil. A malária, que não existia, agora flagela grande parte da população”.[5]
Após a demarcação, em 1992, diversas operações para a retirada dos garimpeiros foram realizadas. A “Operação Selva Livre”, a mais famosa delas, foi responsável por destruir boa parte das pistas de pouso que davam suporte à logística garimpeira e reduzir a centenas o número de pessoas atuando ilegalmente na TIY. Entretanto, a ausência de uma política de proteção territorial permanente permitiu o retorno gradual dos invasores, tornando o garimpo um problema crônico que nunca deixou de preocupar as lideranças e associações indígenas da TIY e as organizações que atuam na defesa de seus direitos.
Com a crise mundial de 2008, o preço do ouro recuperou uma trajetória ascendente, impulsionando mais uma vez a exploração aurífera na Amazônia. No começo da década de 2010, porém, um conjunto de ações lideradas pela Funai, em parceria com o Exército brasileiro e com a Polícia Ambiental de Roraima, impediu que a estrutura garimpeira se desenvolvesse para além de acampamentos improvisados com grande mobilidade, visando driblar a fiscalização. Apesar da situação não estar devidamente controlada, a presença do Estado e de seus órgãos de comando e controle, ainda que insuficiente, foi fundamental para conter o agravamento daquele cenário. Em 2011, estimava-se cerca de 3 mil pessoas atuando ilegalmente na TIY, dezenas de pistas de pouso clandestinas e centenas de balsas de dragagem em operação. Até 2013, sucessivas ações conseguiram retirar pelo menos 1.500 garimpeiros, desativar 22 pistas e afundar 84 balsas.
Em meio à crise política no país, de 2016 em diante, o cenário se agravou. Com o sucateamento progressivo das instituições de proteção ambiental, uma nova corrida do ouro foi se desenhando. Nos rios Mucajaí e Uraricoera (RR), as duas regiões mais afetadas pela atividade ilegal, o tráfego de embarcações se multiplicou e a logística do garimpo se complexificou. Além do suporte aéreo, agora também com helicópteros, os acampamentos passaram a ser abastecidos por enormes canoas de alumínio e quadriciclos localizados estrategicamente em trilhas paralelas aos trechos encachoeirados. Em poucos anos, garimpos como o “Tatuzão do Mutum”, no Rio Uraricoera, se transformaram em verdadeiras “vilas” garimpeiras com milhares de pessoas circulando diariamente, bares, mercearias, casas de prostituição, telefone e internet via satélite.
Na nova estrutura de exploração que prevalece desde o final da década de 2010, o garimpo está longe de ser a mera reunião de pessoas desesperadas em busca de uma alternativa econômica para sua sobrevivência. Essa imagem romântica do homem que se faz no garimpo povoa o imaginário de muitos e se vê na monumental estátua do garimpeiro, erguida na principal praça de Boa Vista, capital de Roraima. As investigações da PF, entretanto, têm demonstrado que a base do garimpo mudou, sendo hoje uma atividade que demanda altos investimentos e, portanto, é organizada por um grupo de empresários regionais, com ramificações no restante do país e alhures. Esses “investidores da ilegalidade” controlam a logística, fornecem o maquinário utilizado na extração do ouro e são os responsáveis pelo abastecimento das minas com combustível e alimentação. Os trabalhadores que operam esses equipamentos, por sua vez, são remunerados com uma pequena percentagem do metal encontrado e devem custear o seu transporte, tratamento de saúde e outras necessidades. O efeito socioeconômico desse arranjo é o surgimento de um grupo excepcionalmente rico, que abocanha a maior parte do rendimento da atividade, em detrimento de uma enorme massa de trabalhadores que se mantém pobre, envolvida em conflitos violentos e castigada pela malária. Há também indícios de uma forte influência de milícias armadas na extração ilegal de ouro no território yanomami.
Outra evidência de que o garimpo ilegal ganhou contornos ainda mais dramáticos após a eleição de Jair Bolsonaro está nos dados de exportação do ouro extraído em Roraima. Apesar de não haver nenhuma lavra legal de ouro no estado, entre setembro de 2018 e junho de 2019, Roraima enviou à Índia 194 kg de ouro, extraídos em sua maioria em terras indígenas. O afrouxamento da fiscalização ambiental e o discurso pró-garimpo do presidente têm produzido uma aceleração na nova corrida do ouro na TIY. As lideranças yanomami e ye’kwana estimam que existam, hoje, mais de 20 mil garimpeiros atuando em seu território.
Os rastros do garimpo e suas epidemias
“Vivemos de novo uma grande invasão garimpeira e, com ela, chegam as epidemias, como aconteceu no passado. É o garimpo ilegal que está levando essa nova xawara [epidemia] para dentro da floresta. Cada vez mais a Covid-19 está nos infectando, vemos muita gente adoecendo com sintomas de coronavírus. Mas não só! Os invasores também levaram a malária, muita malária!”
Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana[6]
Em 2020, quando o mundo inteiro foi surpreendido pela pandemia da Covid-19 e tantos serviços foram paralisados ou suspensos, o garimpo na TIY seguiu o movimento contrário: milhares de pessoas adentraram a floresta em busca de ouro e levaram, somado às antigas mazelas, o novo coronavírus. Em 9 de abril, foi registrada a primeira morte por Covid-19 entre os yanomami. O jovem de 15 anos era morador da comunidade Helepe, situada às margens do Uraricoera (RR), uma das principais rotas de entrada do garimpo na TIY. Seu corpo foi enterrado em Boa Vista sem que a família fosse avisada, desrespeitando o ritual funerário tradicional yanomami.
Após a explosão dos casos de Covid-19 entre os indígenas que estavam na Casa de Saúde Indígena, em Boa Vista (RR), paulatinamente foram chegando notícias de possíveis transmissões nas comunidades da TIY, precisamente em regiões historicamente afetadas pelo garimpo, como é o caso de Waikás, no Rio Uraricoera, e de Kayanau, no médio Rio Mucajaí. Pouco tempo depois, as suspeitas foram confirmadas a partir de remoções de pacientes infectados e de óbitos. Em 25 de junho, uma liderança de Waichannha (Waikás), comunidade situada às margens do Rio Uraricoera, denunciou um grave cenário de transmissão comunitária da Covid-19 a partir da contaminação de um jovem ye’kwana que teve contato com garimpeiros da região. Em poucas semanas, constatou-se que 30% da população havia contraído o vírus.
Na região do Kayanau, localizada no encontro dos rios Couto de Magalhães e Mucajaí (RR), o garimpo destruiu mais de 100 hectares de floresta somente entre janeiro e setembro de 2020. A região foi totalmente ocupada pelos garimpeiros que, alheios à ilegalidade de suas ações, fazem uso da pista de pouso comunitária e se valem dos poucos medicamentos destinados aos yanomami no posto de saúde local em troca de ouro. O descontrole total do fluxo de garimpeiros na região espalhou o novo vírus, como denuncia uma yanomami da região:
“Essa doença está muito potente, por causa dos garimpeiros que sempre pousam com seus aviões. Eles chegaram com essa doença forte […]. Quando estávamos só nós, não adoecíamos assim. Hoje em dia, pelo fato dessas pessoas terem chegado com essa doença forte, ela se espalhou por tudo, todos nós nos deterioramos. Por dentro, não estamos bem. Todos estamos adoecidos. Assim ficou o rastro, já que muitos aviões pousam ali. Assim ficou o rastro. Nossa floresta adoeceu”.[7]
Apesar do número de casos confirmados ser alto, ainda está longe de representar o cenário relatado pelos indígenas. A baixa testagem na TIY, principalmente nas regiões mais afetadas pelo garimpo, mascara a real e trágica situação vivida pelos indígenas. Segundo dados do Ministério da Saúde obtidos através da Lei de Acesso à Informação, menos de 5% da população da TIY foi testada até outubro de 2020 e 70,5% dos testes feitos deram positivo, sugerindo que a população total contaminada pode ter sido muito maior do que indicam as estatísticas oficiais. De acordo com o monitoramento realizado pela Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, até 31 de janeiro de 2021, foram confirmados casos de infecção em área em 26 das 37 regiões da TIY, indicando que mais de 10 mil indígenas já podem ter sido expostos ao novo coronavírus.
Não param de crescer os índices de um grave quadro sanitário e socioambiental diretamente relacionado ao garimpo na TIY: a contaminação pela Covid-19, a disseminação da malária, a contaminação por mercúrio e a destruição da floresta. Diante dessa tragédia, o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana criou a Campanha #ForaGarimpoForaCovid, cobrando a imediata desintrusão do seu território e, em dezembro de 2020, a petição da campanha, com mais de 400 mil assinaturas, foi entregue à Câmara dos Deputados. Vitórias no Poder Judiciário também reforçaram o pedido das lideranças indígenas para que medidas fortes fossem tomadas com urgência, como a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709, que exigiu a instalação de barreiras sanitárias e o controle da entrada de não indígenas na TIY. Entretanto, apesar das denúncias feitas pelas organizações indígenas e de inúmeras medidas legais tomadas para obrigar o Estado brasileiro a agir, o que vemos até o momento é a ausência de respostas e ações eficientes para conter a entrada dos invasores na TIY.
Com a disponibilização da vacina, em janeiro de 2021, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) iniciou a imunização na TIY, mas já houve murmúrios de desvios de vacinas e problemas logísticos para atender todas as comunidades. Se o plano de vacinação for colocado em prática de forma rápida e eficiente, a Covid-19 poderá ficar para trás como mais uma entre tantas epidemias às quais os povos Yanomami e Ye’kwana resistiram desde o início dos contatos com os não indígenas. A chegada da vacina está longe de ser um mérito do governo federal que segue o seu traçado genocida, incentivando assaltos às terras indígenas com discursos pró-garimpo e ignorando a ilegalidade da nova corrida do ouro que toma conta do território yanomami. Há 28 anos, a tensão entre os yanomami e invasores levou ao atroz massacre do Haximu, no qual dezessete indígenas, em sua maioria mulheres e crianças, foram brutalmente assassinados em suas casas por garimpeiros brasileiros. Vemos hoje uma nova escalada de conflitos entre esses grupos que, em 2020, desencadeou o assassinato de dois yanomami da região do Parima (RR), e o sequestro de uma adolescente yanomami por garimpeiros em Surucucus (RR). Quais serão, neste ano, os desdobramentos dessa equação explosiva? Oxalá, mais uma vez, os povos da floresta possam ter as suas vozes escutadas e os seus direitos respeitados.
Ana Maria Machado, Daniel Jabra, Estêvão Senra e Majoí Gongora são integrantes da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana.
[1] Uma das referências confirmadas pela Funai refere-se aos “isolados da Serra da Estrutura” ou Moxihatëtëma, situados no interflúvio dos rios Catrimani e Mucajaí, cercados pelo garimpo. Ver SENRA, E. B., ALBERT, B. Moxihatëtëma: os Yanomami isolados da Serra da Estrutura” In: RICARDO, F. GONGORA, M. F. (orgs.). Cercos e Resistências: povos indígenas isolados na Amazônia Brasileira. São Paulo, Instituto Socioambiental, p. 62-71, 2019.
[2] No dia 26/01/21, o Conselho Distrital Indígena Yanomami e Ye’Kwana denunciou a morte de nove crianças, com idade entre 1 e 5 anos, em comunidades do Waphuta e Kataroa (RR), com suspeita de Covid-19. O Conselho alertou também sobre a falta de assistência médica nessas regiões, que já dura meses, em virtude de problemas no contrato de prestação de serviço para o aluguel de helicópteros. As crianças apresentavam sintomas como febre alta, de 38 a 40 graus e dificuldades de respirar. Até o fechamento desta redação, as denúncias ainda estavam sendo apuradas e, caso as mortes sejam confirmadas, o total de vítimas Yanomami pela Covid-19 subirá para 39. Dados do monitoramento independente da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana.
[3] MACMILLIAN, G. At the end of the Rainbow?: Gold, Land and People in the Brazilian Amazon. London, Earthscan Publications Limited, 1995.
[4] RAMOS, A. “Nações dentro da nação: um desencontro de ideologias”, In: Série Antropologia, v. 147, p. 1-10, 1993.
[5] Ação Pela Cidadania (ACP). Yanomami: A Todos os Povos da Terra. São Paulo, CCPY/CEDI, 1990.
[6] O Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, formado por lideranças políticas e representantes das principais associações destes povos, é a principal instância de tomada de decisão da TIY.
[7] Machado et al. Xawara: rastros da Covid-19 na Terra Indígena Yanomami e a omissão do Estado. São Paulo: ISA – Instituto Socioambiental, 2020.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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