Passados cinco séculos de processo civilizatório — da exportação do Pau-Brasil ao capitalismo rentista, que, na pobreza do país, faz a festa do sistema financeiro internacionalizado —, passados 200 anos da descolonização (nada obstante a dependência econômico-política que chega aos nossos dias), e após 133 anos, completados este mês, de experiência republicana, sem republicanismo e quase sempre sem povo, somos, na imperecível gravura de Darcy Ribeiro, “um país por ser”: a permanente expectativa de um futuro que teima em não chegar, traída a nação pela sua classe dominante, a mesma de sempre, aquela que nasce com os latifundiários da casa-grande colonial e os armadores de navios negreiros para instalar-se hoje na FIESP e na Faria Lima: uma burguesia sem pioneiros, herdeira da lavoura de exportação sustentada pelo braço escravo de africanos e semiescravo de emigrantes sobre-explorados; uma “elite” alienada e alienígena, presa, econômica e ideologicamente, aos projetos de dominação das metrópoles; uma elite que pode dizer: “o país vai mal, mas meus negócios vão bem”.
Entender o presente é o desafio que se coloca para a esquerda brasileira.
Como explicar nosso fracasso em construir uma sociedade fraterna em uma das mais ricas e belas províncias do mundo? Como explicar nossa história presente, pautada pela emergência de uma extrema-direita com raízes populares, em condições de fraturar o processo democrático-institucional, sustentado até aqui aos trancos e barrancos, ao preço de tanta dor? Como explicar a resistência política e social à abolição (quase 400 anos de exploração do braço africano)? O nosso país ostenta o miserável título de último bastião escravocrata das Américas, para ao fim do regime condenar suas vítimas ao desamparo e à fome.
Como explicar, ainda hoje, a vitória do latifúndio sobre a reforma agrária — um projeto capitalista levado a cabo pelas nações desenvolvidas há algo como dois séculos? Nada mais indicativo do atraso e do reacionarismo de nossa classe dominante. Senão, vejamos: em 1823, em nossa primeira Constituinte, José Bonifácio (o patriarca da Independência, que desejava formar o Reino Unido Portugal-Brasil e Algarves) apresentou um projeto de reforma agrária e abolição gradativa da escravidão; em 1964, a defesa da reforma agrária pelo presidente João Goulart foi uma das razões aventadas pelos militares para sua deposição; na segunda década do terceiro milênio os camponeses do MST (que lutam por terra para nela produzir) são criminalizados pelo aparelho repressor, e os indígenas são assassinados ou expulsos de suas terras por grileiros.
Valter Campanato/Agência Brasil
Ato golpista em frente ao Quartel General do Exército em Brasília
Como explicar quase 70 anos de apego nacional a um monarquismo nascido arcaico, e a resistência ao republicanismo, a persistência do poder da terra, das oligarquias, do mandonismo, da segregação de classe, do racismo estrutural e da concentração de renda, da pobreza nos níveis de miserabilidade que dão o quadro das grandes cidades brasileiras, a começar por São Paulo e Rio de Janeiro? Pobreza que se naturaliza, como se naturalizam a opressão de classe, o desemprego, a fome (em país que é o terceiro exportador mundial de alimentos).
Como explicar a preeminência do agrarismo exportador? Na colônia e no império, dependíamos da exportação de madeira, de açúcar, de algodão, ouro e prata e café em grão; chegamos mesmo a exportar indígenas apresados pelos bandeirantes, pioneiros no assassinato em massa do gentio. Em pleno capitalismo pós-industrial-monopolista somos exportadores de grãos, carne e minérios in natura, que reimportamos, por exemplo, da China, na forma de trilhos.
Como explicar uma República (esta que sobrevive a ditaduras e golpes de estado militares) descartada dos princípios básicos do republicanismo, privatizada pelo grande capital?
Desamparada do apelo popular, que a desconheceu, porque nasceu de um golpe militar, a República, nesses seus primeiros e dramáticos 133 anos de existência, viveria a curatela da caserna, independentemente do caráter e origem do governo. O agônico momento de hoje — o apagar das luzes do governo de extrema-direita, corrupto e assassino — não é uma especificidade em leque de experiências autoritárias que conhece ainda golpes de estado e ditaduras militares. A desmilitarização da República, sem a qual ela não sobreviverá e não alcançaremos a democracia, não é tarefa de um governo, mesmo consagrado pelas urnas; precisa ser projeto do clamor social.
Como explicar que, a esta altura do caminhar da humanidade, o projeto da classe dominante brasileira seja uma “paz” que exclui a justiça social? Como explicar que o mantra do “equilíbrio fiscal” seja reclamado como prioridade sobre o desenvolvimento, que gera emprego e renda e é o único antídoto conhecido no capitalismo contra o desemprego e a fome? Como explicar a ausência de um projeto nacional para além dos interesses da classe dominante?
Segundo o professor Lincoln de Abreu Penna (Qual república queremos? Ed. Autografia. Rio de Janeiro. 2022) vamos encontrar as razões desse desarranjo — político, econômico e social — em nossa formação social, dominada pelo escravismo, pelo patrimonialismo, pelo autoritarismo, e em nossa incapacidade histórica de remover o legado escravocrata que em muitos aspectos condiciona o racismo estrutural e a prática da conciliação de classes, de que resultou o que somos: uma grande periferia na periferia do capitalismo.
O passado explica o presente e os mortos reinam entre os vivos. O que poderia ser uma grande potência econômica (apta portanto ao desenvolvimento social) é um projeto de dependência fundado na subordinação política e estratégica nacional (subordinação, portanto, das atuais forças armadas do estado brasileiro) à lógica econômica-militar dos EUA, como já fomos da Inglaterra, como já fomos de Portugal.
Se estamos diante do legado de um passado que se faz tão atual, é preciso estudá-lo. Conhecer as raízes de nossa formação para compreender o presente, estudar o passado para impedir sua sobrevivência no presente, e assim abrir caminho para a construção de um novo pacto social de que poderá resultar uma sociedade fundada na democracia e no socialismo – cuja defesa, por sinal, foi esquecida pela esquerda brasileira organizada. Daí o fim dos projetos revolucionários, a vitória de um reformismo cada vez mais bem-comportado, os receios diante das possibilidades de ruptura, o desaparecimento dos partidos revolucionários, subsumidos pela institucionalização acrítica e por um eleitoralismo que impôs as táticas e as práticas do conservadorismo. Fenômeno que, lembra Lincoln, remonta à Guerra Fria e à opção prioritária comunista pela luta anti-imperialista, de que resultou o abandono da denúncia do capitalismo e da sociedade fundada na exploração de classe, e, ao fim e ao cabo, o abandono da defesa do socialismo. A consequência de tanto desvio ideológico seria a invenção, entre nós, de uma burguesia nacionalista à qual os comunistas ofereceriam aliança, de resto rejeitada.
A renúncia à batalha ideológica chega aos nossos dias, com as consequências consabidas. A revolução transitou para o reformismo, a esquerda transitou para a social-democracia, que transitou para o centro, que transitou para a direita, que transitou para a extrema-direita, que namora o fascismo. A crise brasileira reproduz a crise da esquerda ocidental, pontuada pela decadência dos partidos de esquerda tradicionais (como exemplificam os desastres do Partido Comunista Italiano e do Partido Comunista Francês), a crise geral da social-democracia europeia, a vitória da extrema-direita na Itália e, em aliança com a direita, na Suécia, após o surto trumpista nos EUA.
A crise estrutural dos partidos comunistas e de esquerda de um modo geral foi uma das muitas consequências, no Brasil e no mundo homogeneizado pelo ditado tático-ideológico do PCUS, da paralisia do pensamento e da teoria revolucionária, estancando a ação.
Se não há reflexão, não há possibilidade de interpretação do processo histórico; sem reflexão não há teoria, e sem teoria não há nada: não há tática, nem estratégia, nem ação.
O conhecimento da formação social brasileira, escreve Lincoln Penna, é, de substancial importância para desvelarmos as razões de todos os males que têm coexistido com nossa fragilíssima república, “uma solução das elites dominantes depois de abolida a escravidão”, operada pelo seu braço armado, a oficialidade do exército sediada na Corte: “Sua inautenticidade [da República] se explica pelos rumos traçados por quem sempre deteve o poder de mando, desde os tempos das feitorias do início da empresa mercantil que nos acomodou no império colonial português”.
Conseguimos construir um país, estruturar um estado que hoje aspira à modernidade, ainda que ao preço de uma histórica marcada pela violência: do genocídio das populações originais, da escravidão dos negros, à miséria de um capitalismo concentrador de renda e produtor de pobreza. Mas fracassamos na construção de uma sociedade fraterna. Segue longe de nós a Roma sonhada por Darcy Ribeiro.
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As (esquecidas) lições do passado – Gilberto Carvalho foi uma das poucas vozes que, em tempo, advertiram a tranquilidade petista quanto à necessidade refletir sobre os idos de 2013, para além das aparências. Não foi ouvido. Volta a falar agora, e volta a advertir: “O governo Lula foi um governo poroso, que se abriu para a sociedade, mas a participação social foi limitada porque atendeu a uma elite, à sociedade organizada, com consciência e experiência de organização. Nós não conseguimos dialogar com a grande massa.” Para ele, os protestos de 2013 e “a ausência de gente para defender o nosso projeto diante do impeachment” demonstram “que a inclusão foi econômica, bem feita, meritória, mas não houve a inclusão cidadã”. Conclui que sem diálogo com as massas o risco será repetir 2013 e 2016. Confiemos que será ouvido desta vez (cf. https://apublica.org).
* Com a colaboração de Pedro Amaral
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