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A crise do abastecimento de água em São Paulo

Ricardo Gaspar

Tradução:

Ricardo Carlos Gaspar*

O planejamento se limitou às áreas ditas nobres, ocupadas pela parcela mais rica da população.
O planejamento se limitou às áreas ditas nobres, ocupadas pela parcela mais rica da população.

As irregularidades climáticas estão se tornando a regra em todo o planeta. As mudanças radicais que o ser humano imprime à paisagem herdada, bem como um sistema econômico com sede insaciável do lucro imediato, incidem pesadamente sobre o clima. A situação se agrava nas grandes metrópoles do terceiro mundo.

São Paulo é, mais uma vez, um poderoso exemplo da ação humana sobre o ecossistema. Uma urbanização em massa que atravessou vertiginosamente todo o século XX levou a cidade a expandir e se conurbar com seus satélites, criando uma das maiores manchas urbanas do planeta. A metrópole cresceu com a quase total ausência de planejamento disciplinando essa expansão. Ou melhor, o planejamento se limitou às áreas ditas nobres, ocupadas pela parcela mais rica da população. Os demais habitantes que se virassem como pudessem, ocupando as áreas menos valorizadas pelo mercado imobiliário e, por isso mesmo, “liberadas” para loteamento ou ocupação irregular.
A lógica por trás desse padrão de estruturação urbana em São Paulo foi – e ainda é – o interesse do capital imobiliário, reservando para si as áreas de maior acessibilidade e relegando aos desprovidos dos recursos para arcar com os altos valores fundiários as piores localizações da cidade. O interesse público mais amplo tem escasso poder de interferência nesse padrão. O resultado é uma metrópole que utiliza mal seus recursos, contamina os mananciais de água e dilapida as áreas verdes e de lazer. Gera, assim, pesados danos ambientais, poluição atmosférica, degradação de rios e córregos e formação de ilhas de calor.
Conjugado aos efeitos do aquecimento global, essa situação de descontrole urbanístico deixa São Paulo a mercê de situações críticas, seja de inundações, por um lado, seja de falta de chuvas e persistência de temperaturas “anormalmente” elevadas, por outro.

Escassez hídrica e importação de águas

A falta de chuvas agravou um quadro de tradicional escassez hídrica na região metropolitana de São Paulo
A falta de chuvas agravou um quadro de tradicional escassez hídrica na região metropolitana de São Paulo

Foi o que ocorreu nesse verão. A falta de chuvas agravou um quadro de tradicional escassez hídrica na região metropolitana de São Paulo, que a faz buscar água para o abastecimento de seus mais de 20 milhões de habitantes fora de sua jurisdição territorial, pois a demanda de água é 432% superior a vazão mínima natural disponível. Mais especificamente, na bacia dos rios Piracicaba (principalmente), Capivari e Jundiaí, que constituem os mananciais do chamado sistema Cantareira, situada entre 80 e 100 km no sentido norte/nordeste da capital paulista.
Mesmo a RMSP sendo dotada de uma topografia favorável e da existência de mananciais próximos, o crescimento vertiginoso, o uso irresponsável e a ocupação desenfreada de áreas que deveriam ser protegidas tornou esse suprimento insuficiente ao longo do século passado. Assim, à primeira outorga do sistema Cantareira, em 1974, por 30 anos, seguiu-se a renovação em 2004, por 10 anos, e a iminência da terceira renovação, em agosto de 2014. Paralelamente à reversão das águas dos rios componentes da bacia PCJ, ocorreu, nesse mesmo período, um expressivo crescimento econômico da região de Campinas (onde se situa a bacia do PCJ), seguido inevitavelmente por forte poluição e mortandade de peixes, sobretudo no Rio Piracicaba.
Da disponibilidade hídrica de 36m³/segundo, o sistema Cantareira, por intermédio das sucessivas outorgas, supre 31 m³/segundo para a RMSP e 5 m³/segundo para a região de Campinas. Como dissemos, o crescimento econômico, a intensa industrialização e o incremento populacional das últimas décadas tornam aquele volume extremamente crítico para a região de Campinas. Portanto, a atual seca só veio escancarar a gravidade do abastecimento hídrico nas duas regiões.

Omissão e ausência de planejamento

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O Governo do Estado e a SABESP não fizeram sua parte nos últimos anos, investindo em novas barragens e represas, diversificando fontes de captação.

Como o Governo do Estado e a SABESP não fizeram sua parte nos últimos anos, investindo em novas barragens e represas, diversificando fontes de captação, controlando significativamente as perdas do sistema e aplicando programas mais eficientes de despoluição de rios e córregos, não há solução de curto prazo à redução dos níveis do Cantareira sem chuva. Nesse sentido, junho é o mês crítico. A vazão do Cantareira para os municípios do PCJ – depois da redução recente das captações determinada pela Agência Nacional de Águas – ANA, hoje está em 3 m³/segundo (São Paulo está com 27,9 m³/s); só a cidade de Capinas precisa de 4 m³/segundo.  Isto não implica que ações de envergadura, estruturais, não precisem desde já ser implantadas, minimizando os riscos do futuro.

Implementar propostas de médio e longo prazos

Não existe solução para o problema do saneamento que não envolva, numa base igualitária, diversas escalas geográficas e administrativas. Referimo-nos, em primeiro lugar, à escala macrometropolitana – que agrega aos 39 municípios componentes da RMSP as regiões de Campinas, Sorocaba, Vale do Paraíba e a Baixada Santista. Essa macro-região foi objeto de um alentado estudo contratado pelo Governo Paulista em 2008 – “Plano Diretor de Aproveitamento dos Recursos Hídricos para a Macrometrópole Paulista” – que deveria ser de leitura e aplicação obrigatória para as autoridades da área, sejam elas do Estado, dos municípios, da academia ou da iniciativa provada. Nele se destacam a natureza sistêmica doas arranjos no campo dos recursos hídricos e se elencam investimentos prioritários que apontam para a duplicação da capacidade de abastecimento hídrico (em relação à disponibilidade presente do Cantareira) no intervalo aproximado de duas décadas. Mas a escala de intervenção proposta deve envolver ainda os estados limítrofes do Rio de Janeiro, Minas Gerais e o Paraná, o que impõe a presença ativa do governo federal nas soluções debatidas.
Ao mesmo tempo, é preciso construir uma institucionalidade democrática, amplamente participativa, acima dos interesses da SABESP e que balize um processo de planejamento ambiental integrado, para o abastecimento de água e o esgotamento sanitário. A priorização de investimentos estruturantes de longo prazo não pode perder de vista sua articulação, no espírito da Lei 11.445/2007, que estabelece as diretrizes nacionais e a Política Federal de Saneamento Básico, com os planos de limpeza urbana, gestão de resíduos sólidos, drenagem e manejo de águas pluviais urbanas -, sobretudo na escala macrometropolitana, capaz de dialogar com os Comitês de Bacias Hidrográficas e agentes da sociedade civil.
Em suma, o tema da água, pela sua urgência e implicações, é uma questão política da maior relevância nos tempos atuais, quando se debate o aquecimento global. Em São Paulo, as prefeituras da região metropolitana precisam assumir seu protagonismo, pois a população e a atividade econômica dessas cidades serão os mais afetados pelo imobilismo dos governos nesse assunto capital.
(*) Professor de Economia da PUC-SP e Secretário Executivo do Comitê Gestor dos Serviços de Água e Esgoto em São Paulo. Colaborador de Diálogos do Sul.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Ricardo Gaspar Professor do Departamento de Economia da FEA – PUC-SP e colaborador de Diálogos do Sul

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