Pesquisar
Pesquisar

“As mulheres são sempre as mais afetadas por essas políticas de austeridade”

Em entrevista para Crônicas de uma inquilina, Beatriz Cannabrava e Vanessa Martina Silva falam sobre o cenário político e as eleições no Brasil
Ilka Oliva Corado

Tradução:

No Brasil se falava de direitos humanos, de políticas de inclusão, de um Brasil nos BRICS. Celebrava-se o matrimônio igualitário. Tudo mudou em questão de segundos. Em entrevista para Crônicas de uma inquilina, Beatriz Cannabrava e Vanessa Martina Silva, ambas editoras na revista brasileira Diálogos do Sul, falam sobre a atual situação política do Brasil e das futuras eleições.

Confira a entrevista:

Em entrevista para Crônicas de uma inquilina, Beatriz Cannabrava e Vanessa Martina Silva falam sobre o cenário político e as eleições no Brasil

NULL
Mídia Ninja

O que aconteceu que o povo foi incapaz de impedir a destituição da Dilma ou o que é pior, que não pode impedir que Temer se convertesse em presidente?

O governo do PT sempre foi um governo de conciliação. O partido abandonou o trabalho de base, desmobilizando o movimento sindical e popular, enquanto a direita se articulava no Congresso com o apoio dos meios de comunicação. No momento em que havia que reagir, não havia gente organizada com força para reagir.

Havia um desgosto muito grande das pessoas com a política. Os meios de comunicação falavam todos os dias dos equívocos e dos malfeitos da corrupção que supostamente o PT teria cometido. Então, essas pessoas que antes estavam organizadas nos partidos políticos ficaram com vergonha de defender o governo Dilma, ou contra ele pela traição e somou-se aos manifestantes que queriam sua queda.

Eram tempos duros para defender a Dilma, havia que ter muita coragem para estar contra o golpe e quem estava apanhava muito, sobretudo nas redes sociais.
É verdade também que houve grandes manifestações em São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais em defesa da Dilma, contra o golpe, mas esse movimento não conseguiu fazer o confronto.

Educadora Beatriz Cannabrava

Quais foram os efeitos da reforma trabalhista de Temer?

Desemprego, perda direitos duramente conquistados em anos de luta.
Hoje, se caminhamos por uma cidade como São Paulo, pode ver o aumento da quantidade de pessoas sem teto que temos. Hoje a quantidade de desalentados – pessoas que não têm emprego e que desistiram de procurar – é tremenda; são 4.6 milhões e o total de pessoas desempregadas já é quase de 28 milhões. 

Isso é sentido no aumento da violência e no retorno do país ao mapa da fome.

Os setores sociais que haviam visto alguma esperança durante o governo do PT foram descartados e voltaram para a miséria, para o trabalho intermitente.

Marielle, o que simboliza Marielle para o povo brasileiro?

Marielle simboliza a minoria que chegou a um espaço de decisão, lutando pelos direitos das mulheres, dos negros, dos deslocados.

É um crime de Estado que, seis meses depois, ainda continua sem ser resolvido, e não vai se resolver porque nesse crime estão implicados grupos poderosos e protegidos.

E é precisamente por isso que é tão importante falar de Marielle. Porque estamos aqui discutindo isso só porque ela era vereadora no Rio de Janeiro. Mas todos os dias muitas Meirelles e Andersons Gomes perdem a vida, ou têm seus filhos assassinados pelo Estado e nada acontece. No Rio de Janeiro, por dia, temos 19 mortes pelo enfrentamento entre o tráfico de drogas e a polícia. 

Tivemos também o caso do menino Marcos Vinicius da Silva, de 14 anos que morreu nas mãos da polícia, com uma bala disparada de um helicóptero da polícia. Estava indo para a escola com uniforme. Isso não impediu que fosse morto. Mas dele ninguém fala, já todos esqueceram. 

Jornalista Vanessa Martina Silva

 De uma ou outra forma o incêndio do Museu do Rio de Janeiro é responsabilidade das políticas do governo de Temer; creio que é o maior golpe que se pode dar à cultura e é uma mensagem direta ao povo em resistência. Buscaram acabar com a memória histórica.

Sem dúvida, é um golpe contra a cultura e a memória histórica do Brasil. O edifício pode ser reconstruído, mas o que havia de documentos e resultados de pesquisas não é possível recobrar.

A mensagem ao povo é que não se importam, não respeitam nada que tenha a ver com nossa cultura e história. Aconteceu de fato o que estão fazendo também metaforicamente, que é queimar nossa história; querem reescrever o golpe de 1964, dizendo que era uma revolução. E não apenas os que estão no poder, mas os que não estão também.

Com esse movimento de pessoas que apoiam o candidato Jair Bolsonaro, que nega a violência do Estado e exalta torturadores… e que inclusive diz coisas terríveis a respeito das minorias.

Então, o museu foi uma fatalidade, mas é a consumação de uma vontade dessa gente. 

Como é viver em uma favela em tempos de Temer?

Viver em uma favela é triste em qualquer tempo. 

É difícil dizer, porque é necessário estar vivendo em uma favela para responder isso. O que podemos dizer, sobretudo no Rio de Janeiro, com a intervenção federal, do exército, é que a violência se incrementou e o Estado vê essas pessoas faveladas como inimigos.

As mulheres operárias e camponesas e a comunidade LGBTI são as populações mais afetadas pelas políticas neoliberais de Temer. 

Sem dúvida, as mulheres são sempre as mais afetadas por essas políticas de “austeridade”, sejam operárias ou camponesas, e mesmo da classe média trabalhadora. Por isso quando existe o risco real de termos um governo fascista, que é ainda pior do que o que temos hoje, foram essas mulheres as que se levantaram; são essas mulheres a dizer #EleNão.

Temer não só distanciou o Brasil da unidade que tinha com os países progressistas da região, mas apoia políticas de ingerência de governos fascistas que buscam fazer com que a América Latina volte aos tempos das ditaduras.

Já disse tudo. A política exterior do Brasil agora é um verdadeiro retrocesso.  É muito perigoso o que temos para o papel histórico que o país vinha desempenhando na região, com uma liderança importante, sobretudo no que se refere à questão da Venezuela. Hoje se fala muito de uma intervenção militar dos EEUU no país vizinho e o Brasil é fundamental para impedir que isso aconteça. Infelizmente não podia ser diferente com um governo que está totalmente a serviço do capital financeiro e que chegou ao poder por um golpe.

Há um Brasil antes e depois de Lula. Porque não se convocou uma greve geral indefinida quando ele foi preso? É a rebelião dos povos que lutam pela sua liberdade que provoca as mudanças nas nações. O que aconteceu? 

Uma greve geral teria que ser convocada pelos sindicatos, com adesão do movimento popular. Lamentavelmente os sindicatos estão desunidos, repartidos em várias centrais operárias que não se entendem.

A convocatória de algo assim precisaria de muito tempo para ser armada no Brasil e o próprio Lula era contrário a que se criassem problemas. A realidade era que havia aí um misto de inconformismo e descrença. Muita gente não acreditava que o levariam para a prisão. Mas o levaram…

O movimento de mulheres foi o único que se mobilizou, resultando nessa mobilização nas manifestações do sábado 29 de setembro, por todo o país e no exterior. 

Sim, há uma apatia no país desde o golpe de Estado. Muitos setores da classe média ficaram paralisados ao ver o resultado do que ajudaram a fazer com a caída da Dilma.
Mas ocorreram muito atos contra Michel Temer, o “fora Temer”, mas não tiveram uma unidade do ideal comum. Agora, com Bolsonaro, com a ameaça que é aos direitos das mulheres, elas conseguiram se unir.

Mas isso não se originou de um movimento social organizado, mas sim das redes sociais, um movimento auto convocado, sem liderança e sem partido. O que é muito perigoso, mas que nesse caso conseguiu reunir pessoas de diversos partidos políticos e, inclusive uma minoria da direita. É importante dizer também que o levante de 29 de setembro ocorreu em uma classe média esclarecida, ou seja, que conhece o avanço da temática feminista e que diz que não vai aceitar retrocessos.

Que papel desempenhou a esquerda que sempre foi afinada com a direita. O que pudemos ver na destituição da Dilma com sua passividade?

Continuam igual. Dizem que são a verdadeira esquerda e tratam de dividir ainda mais e confundir os eleitores. Seus candidatos têm nas pesquisas 9% e alguns apenas traço, com 1% ou até menos, e nos debates eleitorais jogam pela direita, atacando o Fernando Haddad.

Talvez seja uma cegueira histórica, talvez só oportunismo. A história vai julgá-los e não cremos que sejam postos num lugar de destaque.

Eles conseguiram se unificar com o progressismo depois de Temer ou continuam sendo adeptos das políticas fascistas? 

Não sei se é certo dizer que são adeptos do fascismo, mas fazem uma análise que, desde nosso ponto de vista, é equivocado. Pensam que com a debacle do PT vão conseguir hegemonizar a esquerda e não é o que está acontecendo. Nem o PT vai acabar, nem serão vistos como alternativas. 

A palavra cultura em tempos de um governo fascista é um grito de resistência da população. Está sendo cultural a luta contra o governo de Temer?

A cultura quando feita com verdade é sempre revolucionária e há muitos coletivos que estão fazendo esse movimento contra o Temer. Isso teve um papel fundamental no imaginário coletivo de que este é um governo golpista e que está contra os pobres e trabalhadores. Isso é um trabalho de formiga, devagar, mas que agora aparece quando todos os candidatos que são identificados com Temer não conseguem sair dos 10% de intenção de votos. 

Quem é e o que representa Bolsonaro para o Brasil?

Bolsonaro é o candidato da extrema direita. Bolsonaro é o grito das elites contra essas pessoas de baixo que conseguiram subir. É o grito dos militares que não foram punidos pelos crimes que cometeram na ditadura e que têm medo de uma comissão da verdade que revele as atrocidades que fizeram. É o grito dos homens que não suportam que as mulheres tenham direitos e que possam dizer “não”, e dos patrões que não podem conviver com sua empregada no aeroporto tomando o mesmo voo para o Nordeste. É o grito surdo dos machos que estão no armário e não podem olhar a felicidade dos gays que se amam e querem construir uma família.
É o grito do retrocesso, da barbárie, de uma volta aos tempos em que se queimavam as bruxas junto com os livros e todo o conhecimento realmente livre.

Quem é e o que representa Haddad? Que é quem ficou no lugar de Lula devido a sua prisão.

Fernando Haddad é simbolicamente o contrário. É a civilização na luta contra a barbárie. É importante aqui retomar um pouco da sua trajetória e de por que foi escolhido pelo Lula. 

Durante os governos do ex-presidente Lula, Haddad foi ministro da educação responsável por programas importantes como Prouni, Fies, Sisu que puseram os pobres dentro das universidades públicas e privadas, garantindo o que foi um slogan do governo Lula: “a filha da empregada doméstica agora é doutora”. Ele incrementou o acesso ao ensino superior em 110%. Depois foi prefeito de São Paulo, a maior cidade do país. Fez um trabalho realmente bom, principalmente no aspecto da mobilidade urbana (quem conhece São Paulo sabe o terrível que é locomover-se por aqui). Ficaram famosas as ciclovias da cidade. Em 2016, ele tentou a reeleição, mas perdeu em primeiro turno com a dura campanha dos meios de comunicação contra ele e o ódio ao PT que havia nesse momento (nessa eleição o PT se reduziu muito), ou seja, não perdeu somente por causa de seus erros, mas por uma conjuntura que estava contra ele.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Ilka Oliva Corado Nasceu em Comapa, Jutiapa, Guatemala. É imigrante indocumentada em Chicago com mestrado em discriminação e racismo, é escritora e poetisa

LEIA tAMBÉM

Mercado de Sucre, na Bolívia
Por que alimentos no Brasil estão caros e na Bolívia, baratos? Segredo está no pequeno produtor
Arthur_De_Olho_Nos_Ruralistas
De Olho nos Ruralistas ganha prêmio Megafone por investigação sobre Arthur Lira
Lira_Centrao_Legislativo_Executivo
Cannabrava | Parlamentarismo às avessas encurrala o poder Executivo
Petrobras
Juca Ferreira | Crise na Petrobras só atende interesses estrangeiros e do mercado