O impressionante caudal de ódio coletivo e individual emanado de parte ponderável da classe média sobre a simbólica personalidade de Luiz Inácio Lula da Silva, não pode deixar de impressionar o observador psicanalista.
As razões político-ideológicas, racistas e nazifascistas são insuficientes para explicar politicamente a descarga odienta.
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As pessoas que não vivenciam essa invasão emocional, independentemente de coloração partidária, ficam estarrecidas com as manifestações passionais de crueldade, principalmente pela comunicação eletrônica (WhatsApp e Facebook).
A Alemanha, a Itália e a Espanha viveram isso antes e depois da segunda guerra mundial, mas não dispunham ainda da mídia que facilita o espontaneísmo passional da violência.
O alvo, Lula, foi construído pela mídia convencional, utilizando o símbolo do maior líder popular já gestado pelos trabalhadores, operários e pobres, negros e índios no Brasil e América Latina, reconhecido internacionalmente.
Não me deterei no triste episódio da derrubada do projeto social, representado por este homem extraordinário, pois pretendo que seus inimigos políticos ultrapassaram todos os limites da Razão na perseguição e destruição do alvo humano-simbólico.
Latuff
Causas e efeitos
A explicação psicanalítica para o bombardeio de ira narcísica pode utilizar os conceitos de narcisismo da diferença, inveja e pulsão destrutiva para tal explicação.
A inveja é um afeto muito primitivo, cujo alvo principal são as coisas boas do outro semelhante, mas visto pelo olhar do invejoso como diferença possuidora de grandeza inalcançável. Assim, por exemplo, o insignificante inveja o famoso, o feio inveja o belo, o medíocre inveja o inteligente e ou, o gênio. Os psicanalistas sabem que a inveja está associada à destruição e ao narcisismo, e põe em marcha a pulsão de morte (Tanatos) que procura destruir a pulsão de vida (Eros) ou, mais amplamente, o amor. O desligamento da extrema agressividade da amorosidade é sentido pelo psicanalista praticante, no seu trabalho cotidiano, através da transferência como desprezo e indiferença lançados pelo paciente imaturo.
Essa imaturidade, eventualmente, está associada à ignorância e deficiência intelectual. Existe uma população nas montanhas da Etiópia, estudada por antropólogos e psicanalistas para compreender mais diretamente no campo observacional o fenômeno da inveja destrutiva, os buda-anhara. Os buda se consideram superiores intelectualmente, moralmente e fisicamente, mas pertencem ao mesmo grupo étnico dos anhara, sendo o dispositivo destruidor acionado quando se encontram ocasionalmente para trocas comerciais.
O olhar invejoso de um homem ou mulher anhara sobre seu semelhante buda pode destruí-lo pela “magia” da projeção da maldade no interior da pessoa visada. Não é necessário disparar um tiro para que alguém adoeça e morra dentro desse sistema sócio-cultural que abunda em exorcismos e milagres salvadores, levando ao desenvolvimento de sacerdotes curadores encarregados desta tarefa.
O narcisismo negativo ou mortífero estudado por Green no livro O Discurso Vivo, que examina tanto o afeto invejoso quanto o amoroso, mostra como Freud desde o início, entendeu a inveja destrutiva através da paciente Elisabeth de R que desejava ocultamente a morte da irmã para tomar-lhe o marido. Coube, entretanto, a Melanie Klen, no clássico Inveja e Gratidão, mostrar o devastador papel que a inveja ocupa no cenário das relações humanas. O psicanalista experiente sabe como é difícil interpretar o paciente invejoso que esconde tal afeto debaixo de mil racionalizações, inclusive o fanatismo religioso, sendo sua dimensão sócio-cultural encontrada nas raízes históricas de um povo: o Sudeste, principalmente São Paulo e Paraná, historicamente influenciado através da sua imigração italiana, germânica e outras pelos apelos purificadores e branqueadores da Alemanha nazista. É sabido, pelos historiadores, que grupos do partido hitlerista se estabeleceram nessas regiões ainda nos anos 30.
Evidentemente, que isso não pode ser estendido a todos os descendentes dessa importantíssima imigração europeia, mas com certeza, certos traços culturais são perduráveis no inconsciente coletivo dessas populações. Além disso, é sabido que a antropologia brasileira, principalmente sudestina, foi muito influenciada pelas tendências racistas (Silvio Romero, Euclides da Cunha), explicando, em certa medida, o preconceito contra nordestinos, negros e índios.
É essa aliança entre a política, a história e o inconsciente coletivo que pode explicar a brutalidade com que Lula é tratado, tanto por parte minoritária da população quanto pelos poderes da República do Brasil, hoje tragicamente governados por um preconceituoso, violento e despreparado presidente.
(*) Médico, psicanalista do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Fortaleza, filiado à Associação Internacional de Psicanálise (Londres) e Coordenador da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza.