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Minha casa minha vida: uma discussão sobre o modelo de cidade que queremos

“Conferência São Paulo Sua” debaterá modelos para uma cidade democrática, inteligente e inclusiva
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

O governo Bolsonaro anunciou que vai mudar o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) e inclusive o nome dele. Ainda não anunciou como passará a se chamar, mas disse que vai aumentar as faixas de contemplação. Difícil acreditar que a mudança será para melhorar a vida do povo. Porque nada que esse governo faz é para isso, só para aumentar o lucro das empresas.

Claro que o projeto, tal como foi criado no governo do ex-presidente Lula precisa ser melhorado.  

Um dos pontos mais graves é que os conjuntos residenciais são construídos longe dos centros urbanos. Milhares de casas minúsculas, todas iguais, quase geminadas, sem espaço para serem ampliadas, sem áreas para espaços públicos (praças, creches, escolas, centros artísticos, desportivos e de assistência à saúde, armazéns, transporte público.

Há também a modalidade que reúne edifícios de cinco andares, o que provoca um maior adensamento, nas mesmas condições: distantes de tudo, sem uma árvore.

Em dez anos, o MCMV, segundo a Caixa, construiu quatro milhões de unidades, a maioria para a chamada Faixa 1, famílias de menor renda e, portanto, casas com as características apontadas.

Essa faixa está paralisada desde o golpe de Estado que destituiu Dilma Rousseff e colocou Michel Temer no poder.

Faixa 1 – destinada à famílias com renda até R$ 1,8 mil, 100% com recursos da União e aporte local de infraestrutura. A família tem 120 meses para pagar com mensalidade que vai de R$ 80 a R$ 270, dependendo da renda. O imóvel fica alienado, ou seja, se não pagar eles tomam a casa. 

Faixa 1,5 – renda até R$ 2,6 mil, os moradores têm 30 anos para pagar, com juros de 5% ao ano, e a União dá um subsídio de até R$ 47,5 mil.

“Conferência São Paulo Sua” debaterá modelos para uma cidade democrática, inteligente e inclusiva

Wikicommons
Programa Minha Casa Minha Vida construiu casas em locais remotos e com poucos serviços públicos

Faixa 2 renda até R$ 4 mil, a União dá subsídio de até R$ 29 mil     que será reduzido da dívida.

Combinam recursos de subsídio às famílias dado pela União e FGTS, pagamento em até 36 meses

Faixa 3 – renda até R$ 7 mil, a União garante juros diferenciados.

É de imaginar que não funciona bem. Na medida em que as casas ficam prontas, eles sorteiam e os sortudos recebem primeiro. Muitos conjuntos paralisaram as obras por inadimplência dos moradores e por quebra da construtora, que não tinha capacidade para enfrentar questões não previstas, como da qualidade do terreno, falta de redes para saneamento básico, etc.

Como está longe de tudo, é o município ou o estado que têm que providenciar a extensão das linhas de energia elétrica, água, esgoto, telefonia, transporte público, e como falta dinheiro, tudo isso demora a chegar. Creche e escola para as crianças, nem pensar.

É óbvio que seria muito mais fácil fazer as casas onde tudo isso já está funcionando, em alguns lugares com capacidade ociosa, ou seja, com oferta superior à demanda.

Pobre é solução, não problema

Na ausência de políticas públicas para a questão habitacional, a população se vira e cria sua própria cidade. Começam com barracos e se transformam em bairros. O adensamento e a pressão social obrigam os governos a levar alguns dos serviços básicos como água e luz e transporte urbano.

Visite a periferia de São Paulo e verá que bairros que começaram como favelas e hoje são mais que bairros, são verdadeiras cidades. Com o adensamento o poder público foi obrigado a dotar a região dos serviços públicos essenciais. Uma outra cidade com sua cultura, seus costumes, com os moradores a exigir serem reconhecidos como cidadãos com direitos. 

Deveria ter sido ao contrário. A cidade inteligente, planejada, desapropriando áreas de especulação imobiliária e assegurando moradia digna. 

Na Venezuela, onde houve uma revolução, o governo Hugo Chávez desapropriou prédios e terrenos de pessoas que deviam impostos, demoliu e retirou o que havia ali e construiu dezenas de milhares de prédios e casas no centro da capital Caracas. É assim que deveria ser e não mandar os trabalhadores cada vez mais para mais longe para locais com pouca ou nenhuma infraestrutura.

A tragédia de Pinheirinho

Em janeiro de 2004, famílias sem teto ocuparam uma área abandonada de 1,3 milhões de metros quadrados, em São José dos Campos, a leste da Capital de São Paulo, traçaram um plano urbanístico, com ruas e praças, demarcaram os terrenos e construíram os primeiros barracos que logo se transformariam em casas de alvenaria. Cada casa construída de acordo com a imaginação e sonho do proprietário.

Em 2012, nesse bairro denominado Pinheirinho, já residiam umas cinco mil pessoas. Dia 22 de janeiro, dois mil policiais (PM de SP e Polícia Municipal de São José dos Campos), fortemente armados, com cães e carros blindados, entraram no bairro batendo e atirando para desalojar os moradores. Houve resistência, claro. No dia seguinte, voltaram com enormes bulldozers e começaram a demolir as casas.

Os moradores atônitos foram confinados em estádios e escolas, sem o mínimo de conforto e depois o governo tucano do Estado ofereceu uma merreca denominado aluguel social, que não aluga um quarto num cortiço. Quem tinha família foi dividir o espaço.

Vale recordar que o terreno pertencia à massa falida da empresa Selecta, de Naji Robert Nahas, que chegou ao Brasil para se enriquecer e quase quebrou a Bolsa de Valores de São Paulo com suas especulações e cheques sem fundo. Ele tinha esse terreno como garantia de empréstimos bancários e devia mais de R$ 10 milhões para a Prefeitura.

Os advogados dos moradores pediram a posse por usucapião e a desapropriação por interesse público dado ser área sem uso havia mais de 20 anos. Mas, aqui nesses Brasis Arlequinal quem pode mais chora menos, a justiça deu reintegração de posse ao estelionatário deixando ao relento 2 mil famílias.

Hoje, nesse espaço, tem um conjunto financiado pelo MCMV. São 1.461 casinhas, quase geminadas, destinadas à população da Faixa 1, 

Outro exemplo horroroso é o Residencial Espanha, na capital de São Paulo, em área de manancial, isto é, de proteção ambiental, à beira da represa Billings. São 3.860 unidades, ou seja, uma cidade que pode chegar a ser superior a 15 mil habitantes, poluindo visualmente e sob todos os demais aspectos uma área protegida.

Pode? Claro que pode. E continuará assim até que essa outra cidade se rebele e resolva se impor sobre os que a exploram e a marginalizam.

Nessa área imensa, longe de tudo, eles construíram edifícios de 5 andares, e tampouco há espaços reservados para os serviços públicos essenciais. Esse povo, como as demais vítimas da falta de políticas habitacionais, terá que gastar de quatro a seis horas por dia em transporte público para chegar a seu local de trabalho. Essa é a regra, é a normalidade.

A mais grandiosa política de Estado

A partir de janeiro de 2019, com a mudança ministerial que reduziu o número de pastas, o MCMV passou para a Secretaria de Habitação do Ministério de Desenvolvimento Regional. Celso Toshito Matsuda, o titular da secretaria, diz que o Minha Casa Minha Vida é “a política de Estado mais grandiosa do governo”. 

Celso T. Matsuda é formado em comunicação pela USP e se tornou empresário de sucesso. É dono de uma agência de publicidade e de empresa que presta serviço de iluminação pública (Hiperled) além de sócio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo – CDHU.

Esse novo governo de ocupação diz que vai expropriar e doar terrenos para a MCMV. Eita governo bonzinho. Vamos acompanhar para ver se será isso mesmo.

Qual a realidade por trás disso?

A realidade é que as políticas habitacionais estão sendo ditadas de acordo com o Sinduscon — o sindicatos das empresas de construção. Não é portanto política pública. É sacanagem dos construtores para tomar dinheiro público.

Um projeto como esse deveria ter sido planejado por arquitetos, urbanistas, engenheiros e sociólogos a serviço do Estado, e em áreas centrais providas de todos os serviços básicos e perto de tudo. Aí sim se estaria oferecendo melhor qualidade de vida.

Na Zona Leste de São Paulo, a Prefeitura, na gestão de Luiza Erundina, regularizou a posse da terra já demarcada, forneceu uma planta básica, assistência técnica de engenheiros e arquitetos, e a população construiu as casas em mutirão. Havia uma fábrica de tijolos e telhas no local tocada pela própria comunidade. Cada um construiu sua casa de acordo com o seu sonho ou necessidade. 

Erundina tinha assessoria de duas grandes figuras da nossa arquitetura, Herminia Maricato e Raquel Rolnik, eméritas professoras da USP.

Erundina fez a melhor gestão desta cidade e saiu odiada pela plutocracia porque se preocupou com as outras cidades que cercam o centrão expandido e os condomínios dos ricos. Assistente social, antes de ser vereadora e prefeita, conhecia seu povo e trabalhava pra ele. Hoje está em seu quinto mandato como deputada federal.

Sabe por que foi a melhor? Foi porque, depois de tantos desgovernos, aquilo era uma bagunça administrável. A primeira medida foi organizar a gestão e isso funciona até hoje.

Problema estrutural do subdesenvolvimento

Foi nessa época também que Roberto Capuano, então presidente do Conselho Regional dos Corretores de Imóveis de São Paulo (Crecisp) propôs o aluguel social como solução para alguns dos problemas do déficit habitacional, na época em torno de onze milhões de unidades. Hoje, segundo fontes governamentais, está em torno de nove milhões, porque o MCMV construiu quatro milhões de unidades. 

Essa ideia, de aluguel social, que hoje está sendo ventilada por Celso Matsuda, da Secretaria Nacional de Habitação, voltou à baila em 1998 e também não deu certo. Por que não deu certo?

Porque o problema é estrutural, não se resolve pretendendo solucionar um problema divorciado dos demais. Como o sujeito vai pagar o aluguel social ou a prestação se não tem emprego? 

Como ele vai melhorar de vida, subir da escala F 1 para F 4 se não evoluiu do analfabetismo funcional nem foi capacitado para geração de trabalho e renda? Educação, emprego e saúde em primeiro lugar, tudo o mais fica mais fácil.

Sairia mais barato, do que dar para uma construtora, o governo desapropriar uma área, dividir em lotes de 100 metros quadrados, e dar ou financiar o dinheiro para as famílias construírem suas próprias casas, como estava ocorrendo no Pinheirinho. Aí sim realizaria o sonho da casa própria, muito mais digno do que ser condenado a viver num pombal.

Esses são temas que serão debatidos na “Conferência São Paulo Sua”, organizada pelo Sindicato dos Engenheiros de São Paulo. O evento será no próximo dia 03 de junho, às 10h.

Serviço:

1ª reunião preparatória da Conferência São Paulo Sua

Data: 3 de junho de 2019

Horário: às 10h

Local: sede do SEESP (Rua Genebra, 25, Bela Vista – SP).


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1967. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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