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"Não teremos uma verdadeira democracia enquanto Lula não estiver solto", diz Amorim

O diplomata alerta para o quadro interno, que está, na sua avaliação, se afastando cada vez mais do plano da lei, da Constituição e da própria democracia
Marco Weissheimer
Sul 21
Porto Alegre

Tradução:

Celso Amorim tem mais de 50 anos de carreira como diplomata. Do alto dessa experiência, que atravessa o período da ditadura e os governos da redemocratização, ele confessa que nunca viu algo como o que está acontecendo agora no governo federal e, em especial, na política externa brasileira.

“Nunca vi nada parecido nem na época da ditadura militar, que era muito ruim obviamente, por outros aspectos, mas a política externa, dentro de limites que eram estreitos, procurava manter um mínimo de decência. O que temos agora é algo impressionante. Você não sabe bem se é a loucura a serviço do oportunismo ou se é o oportunismo a serviço da loucura”, afirma.

No governo Lula, Amorim comandou uma política externa que levou o Brasil a uma posição protagonista como mediador de conflitos na América Latina e em outras regiões do mundo, como ocorreu no caso do acordo nuclear com o Irã. Além disso, junto com Rússia, China, Índia e África do Sul conformou os BRICS, um bloco político e econômico que vinha adquirindo crescente influência até o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff e os acontecimento subsequentes que culminaram com a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a eleição de Jair Bolsonaro.

Na semana passada, Celso Amorim esteve em Porto Alegre, participando de um debate, no Sindicato dos Bancários, sobre o novo cenário que o Brasil está vivendo.

Em entrevista ao Sul21, ele fala sobre a nova política externa do país, confessando que tem dificuldade para fazer um balanço. “A palavra (balanço) pressupõe que haja coisas positivas e negativas. Eu, sinceramente, por mais que queira procurar, não encontro nenhuma coisa positiva. Tudo o que eu vi até aqui foi negativo”, afirma.

Além do derretimento da condição de protagonista e parceiro confiável que o Brasil tinha no cenário internacional, Amorim alerta para o quadro interno vivido pelo país, que está, na sua avaliação, se afastando cada vez mais do plano da lei, da Constituição e da própria democracia. Para o diplomata, a prisão de Lula é um símbolo eloquente dos problemas que enfrentamos. “Estou convencido de que não teremos uma democracia verdadeira no Brasil enquanto o presidente Lula não estiver solto. Precisamos ter o Lula solto para ele participar de um diálogo nacional. Estamos com o país profundamente dividido”, defende

O diplomata alerta para o quadro interno, que está, na sua avaliação, se afastando cada vez mais do plano da lei, da Constituição e da própria democracia

Foto: Carol Ferraz / Sul21
Celso Amorim: “Estamos com o país profundamente dividido”.

Confira a entrevista

Sul21: Estamos chegando ao final de maio e completando cinco meses de governo Bolsonaro e de uma nova política externa. Qual o seu balanço desse período de cinco meses quanto à nova orientação que assumiu o Itamaraty?

Celso Amorim: É até difícil falar em balanço. A palavra pressupõe que haja coisas positivas e negativas. Eu, sinceramente, por mais que queira procurar, não encontro nenhuma coisa positiva. Tudo o que eu vi até aqui foi negativo. Para fazer justiça, parte disso já vinha do governo Temer, mas, mesmo no governo Temer, as coisas eram feitas dentro de padrões de normalidade. O Brasil, agora, adota uma política de submissão total aos Estados Unidos, inclusive em questões que nem são do nosso interesse, como no tema do Pacto de Migrações. Há muito mais brasileiros fora do Brasil do que refugiados estrangeiros que estão aqui. No caso do Trump, sem defender as posições demagógicas dele, é possível entender que ele está lidando com um problema que afeta seu país. Não é o caso do Brasil. É só uma submissão total mesmo, sem cabimento, apoiando coisas absurdas. Qual o interesse para nós em apoiar a construção do muro na fronteira dos Estados Unidos com o México?

Você não sabe bem se é a loucura a serviço do oportunismo ou se é o oportunismo a serviço da loucura.” (Fotos: Carol Ferraz/Sul21) 

Nunca tinha visto nada de semelhante na política externa brasileira. Fui embaixador do Fernando Henrique Cardoso, ministro do Itamar, dos governos Lula e Dilma. Fui diplomata de carreira durante cinquenta anos. Nunca vi nada parecido nem na época da ditadura militar, que era muito ruim obviamente, por outros aspectos, mas a política externa, dentro de limites que eram estreitos, procurava manter um mínimo de decência. O que temos agora é algo impressionante. Você não sabe bem se é a loucura a serviço do oportunismo ou se é o oportunismo a serviço da loucura.

Então, eu não consigo fazer um balanço, pois, repito, só vejo coisas negativas, desde a organização interna do Itamaraty, passando pelo Instituto Rio Branco. Não vejo nada que possa apontar de positivo. Até as coisas que seriam ganhos, mas que não se materializaram até aqui, como a entrada para a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), eu não acho positivo. É negativo o Brasil trabalhar pelo fim da Unasul. É negativo ouvir o presidente brasileiro dizer que está muito preocupado com o resultado da eleição na Argentina e que vai rezar para que não ocorra isso ou aquilo. É negativo que o Brasil tenha sido colocado à beira de uma guerra com a Venezuela. O chanceler brasileiro foi para a fronteira acompanhar um caminhão que ia entregar uma suposta ajuda humanitária. Se aquele caminhão atravessasse a fronteira à força, sem ter sido permitido e o chanceler leva um tiro, por exemplo, ainda que não fosse endereçado a ele, poderíamos ter entrado em guerra. Quantas guerras começaram desse jeito…

“O Brasil esteve à beira de uma guerra com a Venezuela”. (Fotos: Carol Ferraz/Sul21) 

O Brasil que tem na sua bagagem, em parte de seu ethos e inclusive em parte de seu poder o fato de ser um país pacífico esteve à beira de uma guerra sem ter sido provocado. Não houve tropas venezuelanas entrando no nosso país. Tudo isso porque o Brasil queria, supostamente, devolver a democracia a Venezuela, algo totalmente descabido e contra a nossa filosofia, não só na diplomacia, mas contra aquilo que está na Constituição, que é o princípio da não intervenção em outros países.

Não vejo o Brasil ser respeitado ou chamado para grandes discussões internacionais. Você vê o Trump telefonar para o Bolsonaro para alguma consulta, mesmo com toda a bajulação que ele recebeu? O Bush fazia isso com o Lula, frequentemente. Collin Powell fez comigo. Não estou inventando nada. Há documentação sobre isso. Em determinado momento, um funcionário de Collin Powell precisava ir ao Senado americano para falar sobre a Venezuela. Nós tínhamos criado naquela época o grupo de amigos da Venezuela procurando encontrar uma solução para a crise que envolvia o país. Não resolvemos o problema mais profundo da Venezuela, mas conseguimos sair da crise. Pois o Collin Powell submeteu a nós o discurso que o funcionário dele faria no Senado para ouvir a nossa opinião. Hoje não temos nada disso.

Qual o tamanho do estrago que essa nova conduta adotada pelo governo em relação aos Estados Unidos e aos organismos e tratados internacionais pode trazer para o Brasil?

O estrago é imenso e já está ocorrendo. Há um estrago material imediato que já está ocorrendo no comércio com os países árabes e com o Irã, em função das atitudes tomadas pelo governo Bolsonaro em relação à Palestina e à Israel. O investimento chinês no Brasil também já diminuiu. E há um estrago mais profundo que atinge a credibilidade do país. O Brasil sempre gozou de grande credibilidade internacional, pelo menos desde a redemocratização. O que está ocorrendo agora contraria não só o que ocorreu no governo Lula, do qual posso falar melhor, pois era ministro de Relações Exteriores. Naquele governo, foram tomadas muitas iniciativas que expandiram a ação do país no cenário internacional. Mas mesmo comparando com os governos Fernando Henrique, Itamar e mesmo com o governo Collor, o que está acontecendo hoje no Brasil é um desastre.

“O Brasil tinha um capital de boa vontade fantástico na América do Sul. Agora, as pessoas passam a olhar o país com desconfiança”. (Fotos: Carol Ferraz/Sul21)  

Eu era embaixador em Genebra quando o Brasil assinou uma convenção da OIT sobre trabalho indígena. O presidente, na época, era Fernando Collor de Mello. Isso demorou um tempão para ser ratificado no Congresso, o que só foi ocorrer no governo Dilma. Agora, a representante do governo brasileiro junto a OIT vai lá e o Brasil sozinho vota contra uma resolução sobre a implementação das medidas previstas nesta convenção. O Brasil que intermediava conflitos, por ser capaz de encontrar soluções, passa a viver uma situação de descrédito total. Eu fui presidente do Conselho de Administração da OIT e havia um conflito entre trabalhadores e o governo colombiano. Nós mediamos uma solução dentro da OIT. Não resolvemos o problema em profundidade, mas encontramos uma solução naquele momento. O Brasil pode fazer isso hoje? É totalmente impossível, pois está totalmente desacreditado.

O Brasil tinha um capital de boa vontade fantástico na América do Sul. Agora, as pessoas passam a olhar o país com desconfiança. Durante o governo Lula, enfrentamos uma crise interna na Bolívia, entre a Media Luna – região mais capitalista e conservadora, com muitos empresários brasileiros inclusive, sobretudo do agronegócio – e o altiplano, que é mais indígena. O Brasil tinha a capacidade de ajudar, junto com a Unasul, a resolver esses conflitos. Era um país pacífico e também provedor de paz. Éramos chamados para mediar conflitos, para chefiar operações de paz das Nações Unidas. O Brasil foi um dos pouquíssimos países, que não era nem árabe nem muçulmano, que foi convidado pelo presidente Bush para a conferência de Ananpolis, nos Estados Unidos, para debater o processo de paz no Oriente Médio. Você imagina agora o Evo Morales chamando o Brasil para mediar alguma coisa? Não existe essa possibilidade. Recentemente, dentro dos BRICS, o Brasil adotou uma posição contrária a dos outros quatro membros do bloco e favorável à posição dos Estados Unidos sobre o que deve ser feito com a OMC.

O senhor fez uma referência às missões de paz das quais o Brasil participou nos últimos anos, algumas delas em posição de comando, como foi o caso da missão no Haiti. Hoje, vários oficiais que participaram dessa missão ocupam posições no primeiro escalão no governo Bolsonaro. Há quem diga que essa missão no Haiti conformou um certo grupo dentro do Exército que acabou se envolvendo na política brasileira. Como vê essa questão?

Essa foi a maior operação da qual o Brasil participou em números gerais de tropa e de envolvimento. É natural que os oficiais que passaram por lá, sobretudo os generais, tenham ganhado destaque dentro das forças armadas. Há três ex-comandantes da Minustah que estão dentro do governo: o general Heleno, que está mais próximo do próprio presidente, o Santos Cruz e o Floriano Peixoto. Nem o Santos Cruz nem o Floriano Peixoto foram promovidos a general de quatro estrelas. Então, é meio relativo essa questão de um grupo. Considero esses dois muito bons militares. Aliás, a ONU considera isso também. O general Santos Cruz foi chamado para comandar a operação no Congo, a maior que a ONU já realizou, tanto em tamanho quanto em capacidade de ação, inclusive de ataque. Já o Floriano Peixoto foi convidado para ser uma espécie de ombudsman das operações de paz. Então, os dois são bons generais. Agora, uma coisa é você ser um bom general, outra é ser um bom governante. Não quer dizer que seja impossível, mas não é a mesma coisa.

“Quem faz a melhor campanha hoje para mostrar qual é a situação do Brasil é o próprio presidente Bolsonaro e o ministro Ernesto Araújo”. (Foto: Carol Ferraz/Sul21  

Qual sua avaliação sobre a posição dos militares no atual processo político brasileiro e dentro do governo de Jair Bolsonaro? O vice-presidente Hamilton Mourão vem sendo pontuando algumas diferenças em relação ao comportamento e às posições de Bolsonaro, sendo inclusive o protagonista de uma viagem a China para consertar estragos causados nas relações entre os dois países nos últimos meses. Como entender esse cenário?

Não quero generalizar sobre a posição dos militares. A maioria deles tem uma postura pragmática. Eles não gostam de um cenário muito ideologizado, nem para a direita. Para a esquerda, a gente já sabia que não gostam. Mas também não gostam para a direita. Acham que isso diminui o papel deles próprios. Não cheguei a conhecer bem o general Mourão, embora a promoção dele a general de quatro estrelas tenha a minha assinatura e a da Dilma. Goste ele ou não, foi com nossas assinaturas que ele foi promovido a general de quatro estrelas.

Mourão parece ser uma pessoa sensata, sabe que a China é um mercado muito importante e o país que mais cresce no mundo. Sabe que não é um país para ser hostilizado, contrariamente à atitude repetida do ministro de Relações Exteriores. Normalmente o ministro das Relações Exteriores procura estar atento em oportunidades para seu país. Lembro que, na época da ditadura militar, a diplomacia às vezes queria ampliar um pouco o espaço de atuação e os militares resistiam. Agora, como vemos neste caso da China, é o contrário. Para não falar do caso da Venezuela. Uma das razões pelas quais nós não tivemos uma guerra foi o pragmatismo dos militares que não quiseram participar de uma intervenção armada.

A Venezuela tornou-se um ponto crítico não só na América Latina, como em termos globais, em função do envolvimento das principais grandes potências. Qual cenário vislumbra neste caso?

Acho que as duas tentativas de derrubada de Maduro, uma por meio da “ajuda humanitária” e a outra por meio de um golpe explícito mesmo, foram um fiasco total. Trump, que pode ser tudo, mas bobo ele não é, usou recentemente a expressão “tough cookie” para se referir a Maduro, ou seja, já reconheceu que ele é um biscoito duro de roer. Ele parece já estar em uma linha um pouquinho diferente em relação a Venezuela. É claro que eles não vão passar a achar que Maduro é bonzinho. O próprio Grupo de Lima, que foi criado para combater Maduro e supostamente devolver a democracia a Venezuela, já quer chamar Cuba para participar das conversas. Não sei como é que nosso ministro Ernesto Araújo vai se sentir com isso. Houve também um primeiro diálogo entre o governo venezuelano e oposição, em Oslo. E o Brasil, cadê o Brasil, que é o maior país da região, que tem fronteira com quase todo mundo? O ministro deve ter lido a notícia pelos jornais. Já quando foi para apoiar o golpe na Venezuela, ele foi chamado para conversar com o Mike Pompeo e o John Bolton, nos Estados Unidos.

O ex-presidente Lula já completou um ano de prisão na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Neste período, ele recebeu manifestações de solidariedade de várias lideranças políticas e sociais de outros países. Em que medida, essa solidariedade internacional pode ajudar na sua libertação?

Quem faz a melhor campanha hoje para mostrar qual é a situação do Brasil é o próprio presidente Bolsonaro e o ministro Ernesto Araújo. São eles que fazem a campanha contra o atual governo, pois mostram o que aconteceu no Brasil e qual foi o sentido do golpe que foi dado no país. Quando o presidente brasileiro visita a CIA ou quando o nosso ministro de Relações Exteriores se coloca na linha de frente de uma possível invasão da Venezuela está claro qual foi o objetivo do golpe que acabou colocando o presidente Lula na prisão. Para completar, o juiz que prendeu Lula virou o ministro da Justiça de Bolsonaro. Todos percebem o que aconteceu e o que significa. Ninguém precisa fazer campanha sobre isso.

O que acontece fora do Brasil é que as pessoas têm muita confiança na Justiça. Ela parece algo inabalável. Lembro de uma conversa que tive com deputados do partido mais à esquerda na Alemanha, na qual eles disseram que era difícil entender que havia algo errado na atuação da Justiça brasileira. Quando Moro foi escolhido ministro da Justiça, todos entenderam. A partir daí não foi preciso dizer mais nada. Os jornais do mundo inteiro estamparam essas notícia em suas capas. O que é preciso seguir fazendo é um processo de esclarecimento voltado, sobretudo, para a inocência do Lula. Não é uma campanha contra o governo Bolsonaro. O nosso propósito é promover o esclarecimento em relação às razões e as não-razões pelas quais o presidente Lula está preso e pelas quais ele deve ser solto.

Não estou falando de ele voltar a ser presidente. Pode ser ou pode não ser. Ele próprio não tem contestado o mandato propriamente do Bolsonaro. Quem se ocupa de contestar o mandato de Bolsonaro é ele próprio com as suas ações. Precisamos ter o Lula solto para ele participar de um diálogo nacional. Estamos com o país profundamente dividido, com um ministro da Economia que quer acabar com todos os direitos trabalhistas, com a Previdência Social e quer transformar o Banco do Brasil no Bank of America. No meu tempo de criança isso era piada. Agora, a piada está virando realidade. Precisamos de uma pessoa como o Lula para participar desse debate e encontrar consensos. Ele tem uma capacidade muito grande de arregimentação, de reunir o país, como fez quando foi presidente.

Editoria: Entrevistas, z_Areazero

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Marco Weissheimer

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